terça-feira, 11 de outubro de 2011

Allan Pugliese e Valdemir Miotello

A Responsividade Bakhtiniana e os discursos sobre o futuro.
Allan PUGLIESE; Valdemir MIOTELLO

Quando falamos de futuro, imaginamos ou ouvimos histórias de um mundo totalmente diferente do que vivemos.  Ao articular esse conteúdo vemos, em sua produção estética, essa relação com o futuro, um não acabamento, como diria Bakhtin, uma relação pré-dada, pois o acontecimento existencial em seu todo é um acontecimento aberto (BAKHTIN, 1997:122).
Esse “não acabamento” mostra um futuro que poderá ser caótico, no qual existiria o fim da humanidade ou o sofrimento para os poucos que sobrarem. A comida seria escassa e as grandes corporações dominariam a agricultura, as doenças ganhariam dos remédios, as leis não seriam mais as mesmas. Essas falas são sempre relacionadas com textos antigos, como o de Nostradamus, as profecias Maias, e até com outros discursos sobre destruições em massa que já aconteceram anteriormente na terra. Alguns discursos são re-elaborados com as novas “tendências” apresentadas pela ciência, inclusive falam do trânsito chegando ao ponto máximo que uma cidade pode permitir, ou como uma explosão solar pode acabar com todo o sistema de comunicação do mundo.
 Parece até um filme de ficção científica, mas é um pequeno exemplo de milhares e milhares de discursos que compramos diariamente quando pensamos na nossa responsabilidade com o planeta. Os publicitários e marketeiros adoram utilizar desse discurso para criar produtos e propagandas que utilizam do nosso senso de responsabilidade para vender produtos “sustentáveis”, “ecologicamente corretos”. Mas qual a minha responsabilidade perante o mundo?
Cada um de meus pensamentos, com o seu conteúdo, é um ato singular responsável meu; é um dos atos de que se compõe a minha vida singular inteira como agir ininterrupto... Eu ajo com toda a minha vida, e cada ato singular e cada experiência que vivo são momentos do meu viver-agir. (BAKHTIN, 2010:44)

Na perspectiva de Bakhtin (1997: 279), “todas as esferas da atividade humana, por mais variadas que sejam, estão sempre relacionadas com a utilização da língua”. Essa repetição de discursos é muito parecida com a relação dos discursos antigos com os novos discursos, o que gera um pensamento lingüístico sobre essa construção: como essa manipulação do discurso hegemônico pode mudar ou não a superestrutura? A partir desse enunciado, podemos perceber indícios sobre as conversas do cotidiano influenciando o discurso hegemônico e vice-versa.
Alguns pensam que sua parte não precisa ser feita, ainda embasam esse discurso com falas como: “do que adiantaria eu fazer minha parte se ninguém faz?” Outros grupos já participam ativa e responsivamente de qualquer ideia que possa parecer uma resposta para um mundo mais sustentável, porém de forma superficial. Um exemplo disso seriam formas de energias que parecem limpas, mas na verdade, poluem mais para produzir o natural, como o carro elétrico, que em países que a eletricidade nacional tem base no carvão, poluem a mesma coisa que um carro movido a um combustível fóssil.
Na base da unidade de uma consciência responsável não existe um princípio como ponto de partida, senão o fato do reconhecimento real da minha própria participação no existir evento singular, coisa que não poder ser adequadamente expressa em termos teóricos, mas somente descrita e vivenciada com a participação; aqui está a origem do ato de todas as categorias do dever concreto, singular e irrevogável. Eu também sou – em toda a plenitude emotivo-volutiva atuante... de tal afirmação – e realmente sou – totalmente, e tenho a obrigação de dizer esta palavra, e eu também sou participante no existir de modo singular  um lugar único, irrepetível, insubstituível e impenetrável da parte de um outro. Neste preciso ponto singular no qual agora me encontro, nenhuma outra pessoa jamais esteve no tempo singular e no espaço singular de um existir único. E é ao redor deste ponto singular que se dispõe todo o existir singular de modo singular irrepetível. Tudo o que pode ser feito por mim não poderá nunca ser feito por ninguém mais, nunca. A singularidade do existir presente é irrevogavelmente obrigatória. Este fato do meu não-álibi no existir que está na base do dever concreto e singular do ato, não é algo que eu apreendo e do qual eu tenho conhecimento, mas algo que eu reconheço e afirmo de um modo singular e único. Basta o simples conhecimento para reduzi-lo ao mais baixo grau emotivo-volutivo de possibilidade. Transformando-o em objeto de conhecimento, eu o universalizo: cada pessoa ocupa um lugar singular e irrepetível, cada existir é único. (BAKHTIN, 2010:96-97)

O discurso sobre as memórias de futuro apocalípticas fazem parte do jogo em que manipular ganha relevo, pois, no cotidiano, existe uma valoração sobre ele. As pessoas sentem-se responsáveis pelo mundo, e gostam de “comprar” esse discurso apocalíptico, que fala como o mundo vai acabar, até para pensar novas estratégias para evitar esse fim. A própria irresponsabilidade de atos individuais destrutivos devem ser vistos pela ótica da responsabilidade pessoal e grupal. Esse é o grande jogo que Bakhtin enunciaria. O embate entre os discursos 

Alline Duarte Rufo

Algumas reflexões com um olhar bakhtiniano sobre uma perspectiva estética da obra "O Silmarillion" de J.R.R.Tolkien
 Alline Duarte Rufo[1]
adrufo@gmail.com
Universidade Federal de São Carlos – UFSCar

O Silmarillion (The Silmarillion) de J.R.R.Tolkien publicada em 1977 conta a história da primeira era de Arda -  nome dado ao mundo que Tolkien criou em sua obra - desde sua origem até as primeiras batalhas e o surgimento dos seres que vivem nesta.
John Ronald Reuel Tolkien (1892-1973) foi além de escritor, professor universitário e filólogo britânico. Teve uma influente carreira acadêmica mais ficou mundialmente conhecido pelas suas obras literárias entre elas a sua mais famosa O senhor dos anéis (The Lord of the Rings), publicada em 1954-5.
Desta obra podem se depreender várias formas de estudo com vários olhares e em diferentes áreas, mas com uma olhar bakhtiniano pode observar alguns aspectos em particular.
Pode-se pensar em uma relação de Mundo Primário e Mundo Secundário onde o Mundo Primário corresponde a realidade e o Mundo Secundário a imaginação. J.R.R.Tolkien em seu ensaio acadêmico Sobre História de Fadas (Tree and Leaf)  nos fala dessa relação que Bakhtin também trata em Questões de literatura e de estética: a teoria do romance.
Segundo Tolkien, quando estamos no Mundo Primário tentamos trazer o Mundo Secundário para este para poder compreende-lo para Bakhtin essa oposição é essencialmente normal mas seria mais enriquecedor perceber que a Arte não se encontra separada da vida, ela se encontra dentro dela, no seu interior, devemos apenas lhe dar uma valorização, se é bom ou ruim, bonito ou feio.
Nessa questão, podemos perceber que quando se faz uma leitura de O Silmarillion, muitos tentam comparar a obra a vida real, ou seja, quando se lê a obra tenta-se trazer o Mundo Primário para o Mundo Secundário porém devemos perceber que a obra em si já é uma refração do mundo real e por isso devemos perceber que a Arte não se separa da vida, que a obra faz parte da vida como um todo e deve ser apreciada.
Olhando por outro ponto, podemos tratar da relação do autor com a personagem, nesse caso de J.R.R.Tolkien com a personagem Lúthien, que segundo este é a representação de sua esposa Edith e ele a representação de Beren. Quando o autor diz o que estava pensando ao criar determinado personagem ou fato na história é algo do qual ele não pode ter controle ou responder, porque ele fez parte do ato criador e por isso não pode falar de algo que participou. Tudo que ele disser  em relação ao ato criador será incerto, porque ele terá apenas o seu ponto de vista e o seu objetivo para falar. Dessa forma, quando Tolkien diz que Lúthien é a representação de sua esposa, é do ponto de vista dele, e da sua vivencia como autor com poder sobre o destino da personagem que ele cria ,como representação de sua esposa e da continuação da história.
Esses são apenas dois olhares sobre a obra O Silmarillion, mas esta pode ser tratada de diversos pontos, os pontos em especial aqui levantados tratam-se de pontos que eu mesma trabalhei sobre eles, tentando aprofunda-los. Cada um que pegar a obra como trabalho para si, contemplara um ponto estético desta e será responsável por este ponto em questão. Uma obra não é vista apenas de um único ponto, com apenas uma única interpretação mas ela é um todo axiológico inacabado, com várias interpretações e diversos olhares.

Bibliografia:
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch, 1895-1975. Estética da criação verbal. [Estetika sloviesnova tvortchestva]. Paulo Bezerra (Ed.). 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch, 1895-1975. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do metodo sociológico na Ciência da Linguagem. Michel Lahud (Trad.). 7 ed. São Paulo: Hucitec, 1995.
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovich, 1895-1975. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Aurora Fornoni Bernadini (Trad.). 4 ed. São Paulo: UNESP, 1998.
TOLKIEN, John Ronald Revel, 1892-1973. O Silmarillion. [The Silmarillion]. Christopher Tolkien (Org.). Waldéa Barcellos (Trad.). 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
TOLKIEN, John Ronald Revel, 1892-1973. Sobre histórias de fadas. [Tree and Leaf]. R.Kyrmse (Trad.). S.Paulo: Conrad, 2006.


[1] Graduanda do 4º semestre do Bacharelado em Linguística da Universidade Federal de São Carlos  (UFSCar). 
Bolsista de Iniciação Cientifica pela PIBIC/CNPQ.

Amanda Rodrigues Figueiredo e Gabriela Brito de Freitas

MEMÓRIA DISCURSIVA E VIVÊNCIA ESTÉTICA: DO VER AO VIVER O OUTRO PARA A PRODUÇÃO DE SENTIDO
     Amanda Rodrigues Figueiredo (UFPa) – amandarf2004@yahoo.com.br
     Gabriela Brito de Freitas (UFPa) - gabrielabrito_2009@yahoo.com.br

        
Do ponto de vista da experiência, o importante não é nem a posição (nossa maneira de pormos), nem a “o-posição” (nossa maneira de opormos), nem a “imposição” (nossa maneira de impormos), nem a “proposição” (nossa maneira de propormos), mas a “exposição”, nossa maneira de “expormos”, com tudo o que isso tem de vulnerabilidade e de risco. Por isso é incapaz de experiência aquele que se põe, ou se opõe, ou se impõe, ou se propõe, mas se “ex-põe”.
(Larrossa - Retirado do artigo “A leitura de mundo pela leitura de generos discursivos enquanto atividade experienciada”, de Aline Maria Pacifico Manfrim, 2006.)
        
O ser humano é formado – e é formador – de inúmeros discursos constantemente. É um ser comunicativo, expressivo, capaz de emitir e atribuir conceitos, concepções, valores e juízos sobre alguém ou algo. O tempo todo estamos em contato com várias pessoas e com seus discursos, suas opiniões e seus pontos de vista. Esses discursos alheios são imprescindíveis para o processo de construção de sentido sobre o outro e sobre nós mesmos.
Esse intenso fluxo de troca de informações – seja por meio de uma conversa pessoal, virtual, um texto escrito, uma imagem – é uma parte muito importante do processo de construção de conhecimento, ou formação de opinião sobre alguma coisa ou algo. Somos constantemente induzidos a acreditar em pesquisas, reportagens, noticias... Nas várias as formas de tentar influenciar o outro a tomar um determinado posicionamento.
As inúmeras informações que recebemos diariamente são muito significativas para a construção do sujeito discursivo pelo processo da alteridade. Somos “compostos” pelas nossas concepções sobre o mundo e pelas concepções dos outros com que temos contato. Os discursos dos outros influenciam muito na formação das nossas opiniões. Segundo Silva (2007):
         (...) O outro se revela por meio de um papel ativo no processo da comunicação, pois não cabe a ele decodificar uma mensagem, ao contrário, ele é constitutivo do discurso do um. (...) p. 87.

Com isso, o processo de comunicação se dá em uma esfera em que eu sou um sujeito que produz e recebe informações ao mesmo tempo. Um sujeito necessita de um outro para esse processo. E essa troca é bem perceptível e mais ativa, de certa forma, na produção de textos escritos, em que se tem um sujeito que escreve para outros sujeitos, e que tenta, por meio do seu texto, influenciar esses outros. As crônicas que circulam em revistas, por exemplo, são textos escritos por alguém que tem certo prestigio, ou status na sociedade - até para dar mais “valor e credibilidade” ao texto – para uma diversidade de leitores, que provavelmente terão uma nova perspectiva sobre determinado assunto a partir da leitura de um texto desse gênero, vinculado em uma revista de grande suporte.
Essas informações absorvidas em textos como esse, formam a sua memória discursiva. Quando ele – o sujeito – é questionado, instigado a falar ou se posicionar – principalmente se ele não tiver nenhum contato propriamente dito, vivenciado, experimentado com esse objeto – ele recorre à sua memória discursiva para buscar informações guardadas sobre esse assunto. Segundo Guerra e Trannin (2006, p. 145),
Por sua materialidade repetível, determinada pela relação entre a prática discursiva e instituição, o enunciado produz um campo de estabilização, cristalizando sentidos na memória discursiva.

Ou seja, nossa memória discursiva é composta por uma série de informações e discursos cristalizados sobre vários assuntos. Geralmente, essas memórias estão apenas na esfera do discurso e não do ato vivenciado sobre o assunto. O que gera, na maioria dos casos, outros discursos ainda no campo do não contato com o objeto, discursos meramente informativos, por vezes preconceituosos.
Foucault (1971) afirma que, de certa forma, o sujeito teme aquilo que é exterior, aquilo que é externo. Pode-se dizer, com isso, que, ao emitir um juízo de valor sobre algo que não é da interioridade do “eu”, há uma tendência para se posicionar de modo mais informativo, objetivo, pouco específico, sobre aquele assunto. Uma opinião pouco particular, mais generalizada e enraizada em concepções vindas de outros.  
Isso implica dizer que para que a produção de sentidos e de discursos tenha mais validade, mais propriedade, subjetividade não é preciso – somente – ter contato com os discursos vindos de outros. Segundo Machado (2005, p. 141),
         Uma pessoa só vê aquilo que está fora dos limites da visão do outro. Assim, os pontos de vista simultâneos completam-se na formação do todo, o evento dialógico. A composição estética é determinada pela relação dialógica entre as visões complementares, não pela visão em si. 
 
Todo esse contato com o outro, como visto, influencia de modo inevitável nossas atividades estéticas, aqui, especificamente, nossas produções textuais. Se escrevo sem vivenciar esteticamente, o que “fala mais alto” são as minhas memórias discursivas, aquilo que adquiri no decorrer da vida, por meio de discursos do outro. Se escrevo após uma vivência estética relacionada ao meu objeto, minha produção desperta muito mais prazer estético; é muito mais profunda. É assim que o
primeiro momento da atividade estética é a vivência: eu tenho de viver (ver e conhecer) aquilo que está vivendo o outro, tenho de me colocar no seu lugar, como se coincidisse com ele [...]. Devo assumir o horizonte vital dessa pessoa tal como ela o vive; dentro desse horizonte, contudo, há lacunas que só são visíveis do meu lugar [...] (BAKHTIN, 1989, p.30).

Até que ponto pode uma vivência influenciar na vida de um indivíduo? Quando vivenciamos, quando saímos temporariamente de nós mesmos e nos colocamos sob a condição do outro, algo muda. Pouco ou muito, muda. Jamais enxergaremos a mesma situação de formas idênticas, antes e depois da vivência. Vivenciar nos faz, no mínimo, abrir os olhos e conseguir ver aquilo que outrora nos era vetado pelos limites do nosso próprio eu, de nosso próprio mundo, nossas próprias experiências. E talvez nossas experiências, por mais variadas que tenham sido, não consigam alcançar a dimensão que o olhar extraposto é capaz de atingir.
Quando consideramos o olhar que temos sobre os moradores de rua, exemplifiquemos, é incrível a variação de “olhares” que podem incidir sobre esses seres, ao mesmo tempo tão perto e tão distante de nós. Existem aqueles que apenas os olham, mas não os enxergam; não capturam uma essência maior neles que não a de inferioridade, pobreza, necessidade. Se falo ou escrevo sobre moradores de rua sem vivenciar é geralmente isso que acontece: escrevo sobre, a respeito de algo, como um texto informativo qualquer, que diz respeito a um ser ou um evento, sem nada de especial. Quando falo ou escrevo depois de vivenciar, no entanto, chega a ser palpável a diferença de visão que uma extraposição pode nos proporcionar. Pode ocorrer de toda uma concepção, toda uma idéia já formada a respeito dos moradores de rua vir abaixo num só momento em que me coloco no lugar desse outro. Posso alterar completamente meu modo de enxergá-lo, de compreendê-lo, num simples ato de assumir o horizonte dessa pessoa. O que vai alterar é individual, são as “lacunas que só são visíveis do meu lugar”.
Observemos, então, um texto produzido por uma aluna do projeto Entreletras, da UFPA. Observemos a carência estética:
Certo dia entrei em uma igreja muito conhecida e venerada no centro de Belém, a Igreja das Mercês. É um templo grandioso em estilo barroco construída entre os séculos XVII e XVIII praticamente no inicio da fundação da cidade. Podemos encontrar nessa igreja uma arquitetura que resplandece a beleza e a riqueza que a igreja ostentava naquele período.
            A igreja fica em frente a uma praça no centro comercial de Belém, onde encontramos vários prédios históricos, casarões antigos que representa e são registros arquitetônicos da memória da cidade. (...)
Entretanto, o que mais chamou minha atenção foi perceber que o cenário daquela praça foi significativamente alterado. Os prédios antigos – que são tombados – também são tomados pela influência do comércio e pelo descaso com o patrimônio publico e o pior, com pessoas. Uma praça que antes era freqüentada por pessoas de relativa posição na sociedade, agora abriga pessoas – consideradas por alguns indigentes - pessoas a quem foram negados quase todos os seus direitos, ou pelo menos os principais como o direito de viver uma vida digna com as mínimas condições para sobrevivência. Ou pessoas até tem onde morar, mas que vão diariamente para a porta da igreja para pedir esmola.
            Pessoas que não tem ou que preferem não ter contato com seus familiares e que estão expostas às piores situações de descaso, não tem um canto fixo e digno que possam morar, não tem um lugar com um mínimo conforto que possam dormir, sem contar que também não tem nenhuma assistência do estado no que diz respeito a acesso a saúde e a educação. Pelo contrário, são geralmente marginalizados, discriminados e vistos como pessoas que representam um risco à sociedade, por estarem vulneráveis ao uso de drogas e a pratica de ‘coisas erradas’ como roubar para terem com o que comer. (...)
            E o pior é saber que há tantas pessoas que necessitam do mínimo de recursos para sobreviver com o mínimo de dignidade, enquanto outras usam dinheiro publico para enriquecer suas contas particulares e manchar ainda mais a imagem da política no país.
(Texto escrito por aluna do projeto Entreletras – UFPA, 2011)

Ao lermos o texto acima temos a sensação do texto dissertativo, uma apresentação de opiniões sobre uma situação, aqui, sobre os moradores de rua em Belém. Por não ter havido extraposição, é possível perceber a carência de estética na produção, como se a aluna estivesse apenas contando o que viu num dia em que olhou um pouco ao seu redor. Ela olhou, mas só sob sua visão, sem sair de si e se colocar no lugar do outro, sem se aprofundar na vivência.
Agora, observemos os fragmentos abaixo, escritos por alunos do mesmo projeto e instituição, no mesmo período, após vivência com os moradores de rua:
“Pergunto para que serve a ciência e suas tecnologias, a caridade de algumas instituições religiosas e até mesmo de pessoas que se consideram religiosas, e quem realmente faz uso dos direitos humanos? Para que serve uma esmola dada as pressas, a esmola dada por pena? E será que essas pessoas que perambulam pelas ruas necessitam somente de comida e dinheiro?” (Ivone Lopes)

“Ele, aos nossos olhos, é visto, na maioria das vezes, como parte do concreto, do asfalto, do chão em que ele senta, do banco em que ele deita; respeitá-los, prover a eles a dignidade da pessoa humana é mudar essa visão, mas é tão mais simples permanecer com o que já estamos acostumados, de nos acomodarmos com o que não nos afeta diretamente, e o mendigo continua sendo o que sempre foi... Parte do ambiente em que não damos importância.” (John Müller)

“A minha escolha foi abrir meus braços para acolher meus próprios horrores. Afinal, resolvi me indagar: como poderia passar indiferente a um alguém que esqueceu ser gente? Será que isso aconteceu quando ninguém mais a olhou como tal? Ou melhor, será que de tanto os outros a olharem como animal ela acreditou?” (Alessandra Vasconcelos)

Os trechos acima recortados foram escritos por alunos que praticam a extraposição e buscam aprimorar seu olhar estético, de modo a aprimorar sua forma de escrever e ressignificar seu modo de olhar o mundo e dele extrair suas concepções.
A vivência estética, assim, propicia, ao leitor – autor, um contato maior – e “experienciado” – com seu objeto em questão. O que nos faz afirmar que para conhecer e ter habilidade para falar sobre o outro é necessário não apenas algumas considerações vindas de discursos alheios, mas também uma relação de extraposição. Um processo em que eu entro em contato – direto – com o outro e passo pela experiência dialógica de ser o outro, sem deixar de ser eu e retirar da vivência estética minhas próprias considerações sobre meu objeto – ético e estético – de assunto. Somente me colocando no lugar do outro poderei melhor enxergar o mundo, poderei melhor conhecer a mim mesmo, pois “não é na categoria do eu, mas na categoria do outro que posso vivenciar meu aspecto físico como valor que me engloba e me acaba” (BAKHTIN, op. cit. 39).

REFERÊNCIAS
GUERRA, Vânia Maria Lescano e TRANIN, Juliana Batista. Discurso midiático: a alteridade e a construção da identidade dos “meninos de rua”. In: Discurso, alteridades e gêneros. São Carlos: Pedro e João Editores, 2006.
MACHADO, Irene A. Os gêneros e o corpo do acabamento estético. In: BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin, Dialogismo e construção do sentido. São Paulo: Editora da UNICAMP, 2006.
SILVA, Michele Viana da. O principio de alteridade: a respeito da natureza dos enunciados e do sujeito. In: O espelho de Bakhtin. São Carlos: Pedro e João Editores, 2007.

Ana Clara Magalhães de Medeiros

Um romance polifônico entre a contemplação e a ação:
O ano da morte de Ricardo Reis, de José Saramago
Ana Clara Magalhães de Medeiros*

O gênero romanesco parece ser, desde a Modernidade, o que melhor possibilitou o equacionamento polifônico de vozes distintas, alcançando uma forma que, inacabada, permanece sempre plurisignificante. A trajetória do romance caminha no sentido de propiciar, cada vez mais, a inserção da voz do outro no discurso, como indicava Mikhail Bakhtin. O desembocar desse entrelaçamento utopista de vozes parece culminar no que a crítica latino-americana convencionou chamar de novo romance histórico[1].
O ano da morte de Ricardo Reis (1988) é obra de Saramago que se enquadra nessa tendência de fazer romance a partir de elementos históricos que, reconfigurados, transformam-se em matéria literária. Importa perceber como esse desdobramento romanesco – surgido a partir da década de 80 do último século, na literatura latino-americana e lusitana – compõe-se a partir de um todo dialógico possível somente a partir das condições criadas por gêneros antecedentes. A um só tempo, este novo tipo de romance dialoga com a tradição literária, com a cultura popular de que é reflexo, com o mundo prosaico em que se insere e com o passado que reconta.
O dialogismo começa no título e perdura por toda a obra: Ricardo Reis, poeta heterônimo criado por Fernando Pessoa, é aqui personagem que deambula por Lisboa sem encontrar modo de encaixar-lhe seus ideais de esteta neo-pagão. Saramago mantém o poeta em sua lírica e em sua biografia (inventada por Pessoa), mas recria as suas vivências e a ficção se reduplica:
Ora, Ricardo Reis é um espectador do espetáculo do mundo, sábio se isso for sabedoria, alheio e indiferente por educação e atitude, mas trémulo porque uma simples nuvem passou (...) Falta a Ricardo Reis um cãozito de cego, uma bengalita, uma luz adiante, que este mundo e esta Lisboa são uma névoa escura onde se perde o sul e o norte, o leste e o oeste, onde o único caminho aberto é para baixo, se um homem se abandona cai a fundo, manequim sem pernas nem cabeça (SARAMAGO, 2010, p. 87).

         O leitor, um pouco familiarizado com a poética de Reis, identifica com facilidade, nesse trecho, um dos mais célebres poemas do heterônimo: “Sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo”. O narrador – que é mais comentador que contador – joga com a possibilidade de relativizar a sabedoria de manter-se em posição contemplativa frente ao mundo. Lança as hipóteses de alheamento ou indiferença para os espectadores “do espetáculo do mundo”. Os trechos literais retirados das odes de Ricardo Reis invadem a narrativa de forma prosificada, em uma enxurrada discursiva que mescla narrador, poeta e quantas mais vozes o leitor consiga depreender.
         Falta, contudo, ao poeta que dá nome ao romance um cão guia de cego, uma bengala, alguma luz, algo que o guie no caminho enevoado de Lisboa. A capital lusitana é descrita como cidade sem direção “se perde o sul e o norte, o leste e o oeste”, que tem como sentido único um buraco ao fundo, em que se cai “se um homem se abandona”.
         A partir desse trecho, delimita-se a primeira grande problemática da obra, que é justamente o cerco político autoritário de Portugal à época Salazarista – mais precisamente, em 1936, ano da morte de Fernando Pessoa e ano do suposto retorno do heterônimo Ricardo Reis à capital portuguesa depois de longa estadia no Brasil – em contraste com a postura estoica, contemplativa, “sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz”[2] do heterônimo pessoano. Enquanto a matéria histórica denota o monologismo totalitário, a tessitura narrativa aponta para a polifonia democrática.
As possibilidades dialógicas no referido romance de Saramago são inúmeras. O leitor de Borges identificará uma pista no livro (não) lido por Reis, The god of the labyrinth[3]. A tradição literária portuguesa também é fonte de investidas dialógicas no livro, que tem no primeiro e no último parágrafo referência aos Lusíadas, além de aparecerem vestígios de Almeida Garret e Camilo Peçanha, como também dos outros heterônimos pessoanos Alberto Caeiro e Álvaro de Campos.
Embora essas relações com demais autores sejam abundantes e importantes no romance, aqui, a análise dos recursos polifônicos estará centrada no aparecimento de três vozes principais: a dos poetas Ricardo Reis e Fernando Pessoa e a das camadas populares representadas por Lídia. Esse recorte justifica-se pela tentativa de mostrar como duas poéticas distintas apontam para condutas ideológicas também discrepantes e como o discurso oficial pode ser desnudado pela fala popular autêntica, quando esta se redimensiona no espaço literário. O narrador apresenta-se como o elemento decisivo na garantia da permeabilidade de todas as vozes.
Ficou dito que, frequentemente, aparecem fragmentos de poemas de Reis. Com Fernando Pessoa a incidência não é menor. O ortônimo aparece como contraponto do poeta pagão, pois, na contramão do monarquismo sossegado e inerte de Reis, Pessoa é o poeta que já está morto. Condição que acentua seus traços de artista pensador, autoconsciente de Mensagem ou d’ “A Hora Absurda”. Os encontros entre os dois personagens são momentos privilegiados de dialogismo dentro da narrativa. Ressalte-se que os dois interlocutores são muito peculiares, pois um deles é heterônimo, e, portanto, existe apenas no âmbito ficcional. O outro, embora tenha sido poeta “real”, já se encontra morto. Saramago dá voz a quem não pode falar – o fictício e o morto – para criar, no romance, de forma exagerada e irônica, a utopia dialógica que parece esvair-se, ao longo da história:
 (...) é difícil a um vivo entender os mortos, Julgo que não era menos difícil a um morto entender os vivos, O morto tem a vantagem de já ter sido vivo, conhece todas as coisas deste mundo e desse mundo, mas os vivos são incapazes de aprender a coisa fundamental e tirar proveito dela, Qual, Que se morre, Nós, vivos, sabemos que morremos, Não sabem, ninguém sabe, como eu também não sabia quando vivi, o que nós sabemos, isso sim, é que os outros morrem, Pra filosofia, parece-me insignificante, Claro que é insignificante, você nem sonha até que ponto tudo é insignificante visto do lado da morte, Mas eu estou do lado da vida, Então deve saber que as coisas, desse lado, são significantes, se as há, Estar vivo é significante, Meu caro Reis, cuidado com as palavras, viva está a sua Lídia, viva está a sua Marcenda, e você não sabe nada delas, nem o saberia mesmo que elas tentassem dizer-lho, o muro que separa os vivos uns dos outros não é menos opaco que o que separa os vivos dos mortos, Para quem assim pensa, a morte, afinal, deve ser um alívio, Não é, porque a morte é uma espécie de consciência, um juiz que julga tudo, a si mesmo e à vida, Meu caro Fernando, cuidado com as palavras, você arrisca-se muito, Se não dissermos as palavras todas, mesmo absurdamente, nunca diremos as necessárias (IDEM, IBIDEM, pp. 278-279).
        
         O admirador das odes de Reis ficará surpreso com o acuamento do poeta e com sua visão limitada do existir humano. A percepção abrangente que dá conta das inquietações existenciais é justamente a de Fernando Pessoa morto. A atual condição de Pessoa – a de defunto – confere a ele uma visão mais ampla que o faz enxergar como tudo o que se valora em vida é insignificante. Mostra ao esteta pagão que crer no viver como algo “significante” e não conhecer nada da Lídia ou da Marcenda que o cercam, é existir de forma mesquinha. A discussão entre o poeta e sua projeção heterônima é longa e hermética, perpassa questões políticas, contudo as transcende, para problematizar a própria condição humana em um mundo que estabelece muros opacos entre os homens. O diálogo lembra a gravidade poética de um Pessoa ortônimo, que, personagem, proclama: “Se não dissermos as palavras todas, mesmo absurdamente, nunca diremos as necessárias” (IDEM, IBIDEM). Aqui, tem-se, em meio à discussão vulgarizada dos dois personagens, a sabedoria encontrada em sentença de pouco mais de uma linha. A frase justifica a falação de Pessoa, como consagra a prosa saramagueana, que é, consensualmente, a narrativa verborrágica: diz tudo para não deixar de dizer as palavras necessárias.
Neste trecho, flagra-se a conversação de dois poetas – sendo um projeção ficcional do outro – além do eco da voz do narrador que pode significar intromissão do que Bakhtin chamaria de “última instância autoral” (2006, p. 369), que é uma voz poderosa situada além dos limites formais do romance, entre o autor e a recepção no processo de validação da obra de arte.
Em Problemas da poética de Dostoiévski, Bakhtin, perscrutando a formação do gênero romanesco, afirma que o “diálogo dos mortos” é momento decisivo “no qual homens e ideias, separados por séculos, se chocam na superfície do diálogo” (2010, p. 127). Nesta ficção duplicada, acrescenta-se que, no limen dialógico, encontram-se não somente “homens e ideias separados por séculos”, mas também personagens emprestados, poetas reais ou imaginários e figuras históricas desautorizadas pelo nível de aterrissagem – outra expressão bakhtiniana, aparecida em Cultura popular na Idade Média e no Renascimento – que essa narrativa alcança.
No clima de “profundo utopismo popular” (BAKHTIN, 2008, p. 20), a silenciosa musa clássica Lídia, com quem Ricardo Reis liricamente enlaçava as mãos, transforma-se em figura genuinamente popular, mulher que se desloca com muita irreverência da posição de ninfa inspiradora para a de companheira amorosa do poeta. Lídia cria cenas e condições dialógicas possibilitadas somente por sua aproximação erótica, e o faz com a naturalidade de qualquer personagem folhetinesca:
[...] um hóspede de meia idade sorri, bem-disposto, e atrás dele, se não nos enganam os olhos, está uma mulher também a rir, mulher é ela, sem dúvida, mas nem sempre os olhos vêem o que deveriam, pois esta parece criada, e custa-nos acreditar que o seja mesmo e de condição, ou então estão a subverter-se perigosamente as relações e posições sociais, caso muito para temer repete-se, porém há ocasiões, e se é verdade que na ocasião se faz o ladrão, também se pode fazer a revolução, como esta de ter ousado Lídia assomar à janela por trás de Ricardo Reis e com ele rir igualitariamente do espetáculo que a ambos divertia. São momentos fugazes da idade de ouro, nascem súbito, morrem logo, por isso levou tão pouco tempo a cansar-se a felicidade (SARAMAGO, 2010, p. 55).
        
Lídia faz a revolução no sentido de que mantém, ao longo de toda a narração, uma postura ativa, que “subverte perigosamente as relações e posições sociais”, pois não se esgueira diante do iminente ativismo político. Mais que isso, Lídia revoluciona a tipologia da personagem quando, mesmo podendo “rir igualitariamente do espetáculo”, opta por redimensionar a musa neoclássica pela ação:
Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
Ouvindo correr o rio e vendo-o (PESSOA, 1986, p. 190)

         A Lídia romanceada recusa-se a ouvir e ver o rio correr. Querendo “trocar beijos e abraços e carícias”, o faz. Com um amor convulso, enlaça as mãos às de Reis e alça-se como o outro contraponto, ao lado de Fernando Pessoa, basilar na ambivalência ética que busca renovar a capacidade responsiva do heterônimo frente à vida.
         Essa conjuntura polifônica em que um todo de vozes se mescla tanto no âmbito ideológico como formal – gerando essa confusão discursiva ininterrupta que é a prosa saramagueana – não surge sem razão na literatura das últimas décadas. No esteio do pensamento bakhtiniano a respeito da trajetória literária que culminou na composição do romance, arrisca-se a dizer que o novo romance histórico é a reverberação máxima desse gênero que, como nenhum outro, trouxe a outridade para o mais alto grau de discussão estética.
         Ainda em Problemas da Poética de Dostoiévski, Mikhail Bakhtin encontra na sátira menipeia o principal embrião do romance moderno. “Aqui se forma um novo enfoque da palavra como matéria literária, característico de toda a linha dialógica de evolução da prosa literária” (BAKHTIN, 2010, p. 135). Englobando “elementos da utopia social”, “contrastes agudos”, “declarações inoportunas” (IDEM, p. 134), a menipeia foi alicerce poderoso na representação, a um só tempo, do inferno e da vida comum. Nesse sentido, criou condições para que se instaurassem os “diálogos dos mortos” e a literatura das “últimas questões” convertidas em fatos corriqueiros. São justamente os dois fenômenos representativos que configuram o romance de Saramago.
Fazendo-se brevíssimo percurso pelos modos de narrar apresentados pela literatura, percebe-se, com Auerbach (1994), que desde as narrativas bíblicas existia a representação realista. Cunhando o termo realismo moderno, o crítico húngaro apresenta o modo de narrar que faz do presente, história, ou seja, que eleva as trivialidades da vida comum à condição de motes narrativos tão importantes quanto fatos históricos tidos como grandiosos. Essa inserção da banalidade no literário refletirá, um século mais tarde, em uma narrativa lusitana em que sequer a forma literária escapou à prosificação da vida comum.
Possivelmente, o grande salto da representação realista do romance de Saramago e de outros romances contemporâneos portugueses seja a consumação de um processo literário de mimetização que leva aos últimos limites a polifonia alcançada anteriormente por um Cervantes, Rabelais ou Dostoiévski. Com o escritor português, o discurso polifônico se transforma em problemática máxima do romance e a autoconsciência faz com que o dialogismo salte a cada linha.
Segundo Carlos Reis, há uma espécie de “rearticulação da narrativa e das suas categorias fundamentais (...) uma espécie de desagregação do romance” (2005, p. 246) que é exatamente o que se vê em uma obra fragmentária como essa. Contudo, embora as categorias fundamentais desse gênero, como o narrador, sejam absolutamente transformadas em uma “dispersão discursiva”, o romance, seja ele de que período for, não perde a “correspondência entre obra literária e realidade que ela imita” (WATT, 2010, p. 11). Sendo assim, em um contexto histórico em que urge a polifonia na vida, a literatura fatalmente precisava de uma forma que trouxesse essa polifonia para o discurso prosaico, para assim, poder estar em sintonia com a realidade e transcendê-la.
“Nós não somos nada, porventura nascerá para nós o dia em que todos seremos alguma coisa quem isto agora disse não se sabe, é um pressentimento” (SARAMAGO, 2010, pp. 384-385). A arte é o pressentimento de que, pelo menos no instante do enlevamento artístico, todos podem ser “alguma coisa”. Ser no sentido de existir plenamente a ponto de cingir o nada prosaico a que a vida humana está condicionada.
O personagem Ricardo Reis não desiste da inação e opta pela morte por não mais conseguir contemplar o espetáculo do mundo. As Lídias permanecem vivas compondo a literatura que é responsiva à inércia conformista da vida comum. De um romance que deixa ressoar vozes múltiplas que consumam o anseio polifônico, faça-se ecoar a fala de um narrador que conhece o poder de sua palavra: “e ainda há quem duvide de que a arte possa melhorar os homens” (IDEM, p. 95).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 1994
BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. Tradução de Paulo Bezerra. 5. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.
______. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução Yara Frateschi Vieira. 6. ed. Brasília/São Paulo: Universidade de Brasília; Hucitec, 2008.
______. Problemas da Poética de Dostoiévski. Tradução de Paulo Bezerra. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Fernando Pessoa: aquém do eu, além do outro. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
PESSOA, Fernando. Obra Poética. (Org. de Maria Aliete Galhoz). 9. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986.
REIS, Carlos. História crítica da literatura portuguesa. Do neo-realismo ao post-modernismo. Lisboa: Verbo, 2005. Vol. 9.
SARAMAGO, José. O ano da morte de Ricardo Reis. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
SILVA, Teresa Cristina Cerdeira da. José Saramago entre a história e a ficção: uma saga de portugueses. Lisboa: Dom Quixote, 1989.
WATT, Ian. A ascenção do romance. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.


*Aluna do Curso de Letras da Universidade de Brasília – UnB. Pesquisadora do Grupo: Literatura e Cultura – CAPES. Bolsista REUNI. Trabalho orientado pelo Prof. Dr. Augusto Rodrigues da Silva Junior (TEL/UnB). E-mail: a.claramagalhaes@gmail.com. Eixo temático: “O contemplador: vivências estéticas e responsibilidade”.
[1] O termo “Novo Romance Histórico”, segundo Antônio Esteves (2010), foi utilizado primeiramente por Ángel Rama, em 1981, tendo sido aperfeiçoado por outros críticos como Seymour Menton e Fernando Aínsa.

[2] Trecho do mais difundido poema de Reis e que, possivelmente, melhor sintetiza a sua poética, “Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio”.
[3] Tal livro teria por autor Herbert Quain, o que remete às Ficções, de Borges, que analisa, em “Exame da obra de Herbert Quain”, a produção do irreal autor Quain. Borges faz uma reduplicação ficcional que aponta para a confusão identitária que aparece no Ano da morte. Esse diálogo é decisivo para o romance, entretanto, aqui fica inexplorado em função do privilégio que se dá, neste artigo, ao diálogo com a poesia pessoana e com a cultura popular ecoada na voz de personagens como Lídia. 

Ana Cristina Almeida Vilela

TODAS AS ALTERIDADES DE MARIA...
Ana Cristina Almeida Vilela
Universidade de Brasília (UnB)
ana.cris.vilela@gmail.com

Primeiro dia de ensaio. Tento me distanciar de mim para, em mim, ver Maria, em O Visitante, de Hilda Hilst. Primeiro, tento ver Maria além do que ela mesma pode ver em si, sua singularidade. Por que Maria é tão seca, tão sentida? Que dor ela sente por não poder gerar, ter um filho em seus braços? Tento ler a alteridade de Maria, filha da bela e falsa Ana. Maria além de Maria. Mas há também Maria em mim, que a interpreto, que a imagino. Preciso me afastar de mim e de Maria, ser outro para ver a própria alteridade de Maria em mim e a mim mesma esculpindo Maria.
Sou leitora-criadora de Maria e passo a ser leitora-criadora de mim mesma enquanto Maria. Sou responsável por sua cocriação, por Maria diante de mim e diante da plateia. Meu diretor cria também e pode ver a mim em Maria; Maria em mim; nós duas; nós uma. Preciso distanciar-me dessa mulher que não gera, tentar ver sua dor, seu ódio de Ana... Por que, Maria? Quem é você? E quem sou eu agora, com tantas respostas que me veem de você?
Quem sou eu em você, Maria? Nós duas. Também me afasto de nós para nos vermos. Minha alteridade construindo Maria e a mim mesma em Maria. Imagino sua vida, crio, mas eu estou presente, sou eu diante de você e de mim. Não trago em mim empatia completa por sua dor, por sua paralisia no tempo, por suas mentiras de autossalvação. Não posso, Maria. Ou seríamos uma. Precisamos ser duas. Precisamos ser três pessoas inteiras em uma. Eu, você, você-e-eu, tudo em mim recriado e, ao mesmo tempo, tudo diante de mim, desse meu eu distanciado.
O diretor me olha, atento. Constrói-me a mim; reescreve Maria; vê-me além de mim; vê Maria além de Maria; vê a mim coconstruindo Maria além de mim coconstruindo Maria.
As outras personagens – Ana, Meia Verdade, o Homem, os leitores dos poemas – me veem, nos veem: a mim, Ana Cristina, e a mim construindo Maria. E com quais olhos todos nos veem? Com os olhos reais, de seres humanos-fato, ou com olhos de personagens, já com os olhos de Ana, de Meia Verdade?
Quantas alteridades tenho? Quantas alteridades Maria tem? Quantas alteridades eu e Maria juntas temos? Cada um nos concede uma alteridade?
Penso que queria ler todas as repostas em cada uma das cabeças à minha frente, essa responsividade do outro diante de mim, esse ato-pensamento que deve – ao menos devia – ser responsável. Mas... já seria um ato estético? Ainda não somos arte, nós ali, ensaiando a arte. Mas sou arte para meus coautores-colegas-de-cena? Observam-me... Mas já sou arte?
Penso no dia da apresentação. Maria acabada por mim, inacabada em si mesma e em mim, diante da plateia cocriadora. Preciso do outro para ser. Preciso do outro para existir. Preciso do outro para ser arte.
A arte tem alteridade? Todos nós, juntos no palco, formando um todo-arte, como uma tela que se move, um quadro, existe aí alteridade? Cada par de olhos ali presente coescreve a cena, coescreve cada ato, obtém respostas, nos projeta na qualidade de arte, mas esse olhar nos concede, enquanto arte que somos, alteridade?
Agora, se esse olhar observa atentamente Maria, a mim e Maria em mim, isso concederia alteridade a cada uma de nós: eu, Maria, eu-Maria? Ou apenas por estarmos no palco, o ser-imaginário, o ser-ator e o ser-Ana, perdemos nossa alteridade e viramos quadro na parede, página de livro inacabada, dialógica, polissêmica?

Andréia Patrícia Barros e Ivone Leal Lopes

VIVÊNCIA: O APRENDIZADO DO OLHAR
Andréia Patrícia Barros
Ivone Leal Lopes

“Andando pelas ruas
Eu vejo algo mais do que arranha-céus
É a fome e a miséria
Dos verdadeiros filhos de Deus
Vejo almas presas chorando em meio a dor
Dor de espírito clamando por amor
Anjos das ruas
Anjos que não podem voar
Pra fugir do abandono
E um futuro poder encontrar
Anjos das ruas
Anjos que não podem sonhar
Pois a calçada é um berço
Onde não sabem se vão acordar
Às vezes se esquecem que são seres humanos
Com um coração sedento pra amar
Vendendo seus corpos por poucos trocados
Sem medo da morte o relento é seu lar
Choros, rangidos, almas pra salvar”.
Rosa  de Saron

Este trabalho tem como objetivo fazer uma reflexão sobre como a vivência influência na hora da produção de textos, com um diferencial estético, através do olhar extraposto - um novo olhar diante da sociedade, da vida, do mundo e, nos torna capazes de ver o que os olhos da maioria não veem - uma nova forma de aprender.
Iremos analisar trechos de redações produzidas por alguns participantes do projeto “Entreletras: aprendendo e ensinando a ler e a escrever o mundo a partir da atitude ética e estética no mundo” coordenado pela professora Rosa Brasil, da Universidade Federal do Pará. O projeto iniciou suas atividades em 2010 e já tem resultados positivos. A ação se dá basicamente por meio de vivências temáticas em espaços urbanos da capital Belém/PA. Depois de registrarem o local, por meio de fotografias, os participantes devem escrever um texto suscitado pela sensibilidade e pelas impressões que a experiência lhes proporcionou. A meta é promover o despertar do olhar estético e do agir ético.




Coletamos o corpus em uma das últimas vivência do projeto que aconteceu no largo da igreja das Mercês (foto). No entanto, antes de partimos para a análise dos dados, faz-se necessária a leitura de algumas teorias sobre o que é vivência  e extraposição numa perspectiva bakhtiniana






Nesse sentido, Irene Machado (2005, p.143) ao dissertar sobre a noção de acabamento chama a atenção para a vivência como extraposição:
É impossível ao homem construir valores para si unicamente a partir de si. O valor é o centro de acabamento da estética porque exprime significados que são construídos na unidade da cultura humana em que estão também as vivências. O estético - todo acabado – nasce da extraposição.

Entendemos que a vivência não faz apenas com que o ser humano observe o mundo a sua volta, mas também atende a uma necessidade profunda da alma: colocar-se no lugar do outro (pessoa, coisa, objeto). Bakhtin (1997, p.80) nos chama atenção:
Perceber esteticamente o corpo significa vivenciar os estados interiores do corpo e da alma a partir de uma expressividade exterior. Podemos formulá-lo assim: o valor estético se realiza quando o contemplador se aloja dentro do objeto contemplado, vivencia a vida do objeto de seu interior e quando, no limite, contemplante e  contemplado coincidem.

Percebemos que o valor estético mencionado por Bakhtin está bastante marcado na hora da produção das redações, antecedidas pelas vivências, ou extraposições, no Largo das Mercês. Surpreendemo-nos ao presenciarmos vários mendigos ao entorno do largo, até mesmo nas escadarias e dentro da própria igreja, onde um morador de rua dormia sendo desprezado pelos fiéis e visitantes. Essas cenas foram pontos de partida para a maioria dos textos que apresentaram um diferencial, mais precisamente estético, resultado do processo de aprendizagem do olhar. 

Alguns trechos produzidos pelos participantes como resultado da vivência.
1. “Há um céu nublado, há pingos de chuva nas nuvens e as Mercês a entoar sinos. Sinos de vozes que se propagam no silêncio e na multidão de pessoas que passam para admirar a estonteante construção da igreja que abriga imagens santificadas e imagens humanizadas. O metafórico grito surdo que é visto através do bordado físico e esquecido na existência da exclusão não é sentido, não é ouvido por quem passa por lá.” ( Auricélia Silva)

2. “Nas ruas e nas escadarias das igrejas do centro está a maior de todas as imoralidades humanas, expressa na forma de mendigos, os grandes escravos da esmola, seja pelo comodismo e costume de pedir, ou pela necessidade repentina. Um perfeito símbolo de nosso tempo e desta cidade. Vivemos em um sistema que nega comida e condena o ser humano por não ter um teto, um endereço certo e ainda nos faz pensar que a situação desses moradores de rua é um fator natural das coisas, fazendo com que essas pessoas sejam vistas como sombras e, alheias a qualquer um de nós.” (Ivone Lopes)

 3. “A minha escolha foi abrir meus braços para acolher meus próprios horrores. Afinal, resolvi me indagar: como poderia passar indiferente a um alguém que esqueceu ser gente? Será que isso aconteceu quando ninguém mais a olhou como tal? Ou melhor, será que de tanto os outros a olharem como animal ela acreditou?” (Alessandra Vasconcelos)

4. “Passamos por eles todos os dias, em alguns casos insipientes, com um olhar abjeto, o que de certa maneira tornou-se prosaico. Percebemos o quanto não os enxergarmos no “corre-corre” do dia-a-dia, pois nossas ocupações nos privam disso, da contemplação ou reconhecimento desse ser como pessoa - igual a nós.” (Lidiane Santos)

 5. “Há um conflito entre igreja e mendigos? Ou será que um é o complemento do outro? Só sei que ambos pedem, necessitam pedir para sobreviver. Esta relação é tão bela quanto curiosa, igreja e mendigos desenvolvendo a mesma atividade, vivem em constante cordialidade, aparentemente não há disputa pelo espaço. Sem valor, sem importância, essas pessoas e o prédio da igreja são encontrados aos pedaços. A impressão é que a dignidade de ambos ficou presa ao passado, ou até mesmo é que nunca tiveram dignidade, de forma que as circunstâncias da vida talvez os tenham impedido de tê-la.” (João Paulo Cordeiro)

 6. “Os homens que passam, sequer sabem seus nomes, nada sabem sobre eles. Desconhecem sua história, ignoram sua essência. Ignoram que, por trás do rosto assustador, do corpo cheio de marcas e da ameaça que exala de cada poro, existe um homem que pensa, sente, ama. Aqueles que ficam não são só perigo e maldade, mas são feitos de coração e sangue, são feitos de vida.
    Talvez até mais do que aqueles que passam...” (Amanda Rodrigues)

Ao analisarmos a postura do produtor de cada trecho com o uso de recursos linguísticos, como adjetivos – estes sendo essencialmente positivo – atentando para a originalidade e versatilidade com que se trabalha a palavra, constatamos que através do vivenciar se estabelece o olhar extraposto, o da contemplação. Novos caminhos estão sendo abertos através da vivência, por exemplo: muitas pessoas estão sendo questionadas sobre o seu papel na sociedade, o seu envolvimento com esta, e sua visão de mundo, tornando-se mais críticos. É o que ratifica Carbonell (2010, p. 114):
Sabemos que o olhar é inquieto e inquiridor, que o olhar pensa, que é a visão feita interrogação. O olhar requer uma intencionalidade e precisa ser educado para enfrentar a epopéia visual do nosso cotidiano. Sob essa perspectiva, a educação do olhar torna-se indispensável à sobrevivência, pois atua como uma forma de humanização e de cultivo, um dispositivo para a cidadania. A estética, em sua origem, liga o sensível à imagem. Hoje, na civilização de visualidade, a imagem surge como um vigoroso potencializador da experiência estética.

O diferencial de um trecho e outro é o que cada ser contemplador traz dentro de si, é também de suma importância sua experiência de vida, sua sensibilidade, seus valores, o agir ético sobre o mundo juntamente com o olhar estético. A “receita” para a produção de um bom texto escrito dá-se do princípio de que é imprescindível vivenciar os fatos. É preciso haver envolvimento do sujeito como objeto da escrita, pois é assim que o olhar modifica a palavra. Cada trecho possui uma maneira, toda singular, de se expressar, e imprime o que foi presenciado, apesar de todos terem contato com o mesmo evento.
O aprendizado do olhar é a forma de alterar a perspectiva que se tem do mundo e das coisas, uma vez que, mudando-se o olhar, muda-se o modo de aprender. 
A verdadeira viagem do descobrimento
não consiste em buscar novas paisagens,
 mas novos olhares.
  Marcel Proust


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
MACHADO, Irene. Os gêneros e o corpo do acabamento estético. In BRAIT, Beth. Bakhtin, dialogismo e construção do sentido. 2 ed. rev., Campinas (SP): Editora da UNICAMP, 2005.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
ALVARES, Sonia Carbonell. Educação estética para jovens e adultos: a beleza no ensinar e no aprender. São Paulo: Cortez, 2010.
BARTES, Roland. A câmara clara nota sobre a fotografia; tradução de Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.