terça-feira, 11 de outubro de 2011

Francisco Cláudio Alves Marques

Palavras “contadas”, risos incontidos: a sátira responsiva nos cem toques cravados de edson rossatto
Francisco Cláudio Alves Marques
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”

A primeira e imediata reação suscitada pela leitura dos nanocontos de Edson Rossatto, publicados diariamente no seu blog, é a do riso. Outras vezes, o riso explode após alguns segundos de hesitação. Podemos conceber o riso proveniente da leitura de um enunciado escrito como manifestação da compreensão responsiva ativa da parte do leitor/internauta? E esse riso poderia ser considerado uma forma de enunciado, já que responde a uma incitação da parte do autor?  Coloco esse questionamento em pauta com o fito de avaliar o alcance dos nanocontos escritos por Edson Rossatto, de entender a reação dos milhares de leitores que leram seus Cem toques cravados ou que acessam o blog do escritor todos os dias. E quanto ao fato de os nanocontos representarem proposta de um novo gênero? À luz da teoria de Bakhtin acerca dos gêneros e da responsividade, tentaremos aqui esclarecer alguns pontos relativos à criação desse novo gênero, o nanoconto, bem como da reação dos leitores/internautas frente aos escritos de Rossatto como uma manifestação da compreensão responsiva ativa de tais enunciados.
Com Bakhtin entendemos que os gêneros são meios de apreender a realidade. Nas formas tradicionais de composição, a realidade vem sendo traduzida e acomodada no interior de cápsulas narrativas prescritas pela escola e pela academia há séculos. Refiro-me aos gêneros romance, conto e crônica. Contudo, estamos vivendo numa época em que a velocidade, a correria e a pressa massificada requisitam novos meios de apreensão e tradução da realidade, do cotidiano. Lemos de relance, às pressas, de modo que mensagens escritas num out-door, se longas, não podem ser lidas na íntegra por transeuntes e passageiros que, aos milhares, todos os dias, transitam pelas ruas e vias das grandes metrópoles. Como, então, levar literatura para um público que tem menos tempo de absorver longas narrativas? Por que meios conduzir cultura e informação para essa massa veloz e itinerante?
Mesmo uma leitura apressada dos nanocontos de Rossatto leva os mais desavisados a perceber que a temática central de seus escritos repousa no cotidiano, destacando-se pelo fato de traduzir cenas e fatos da vida diária de forma bem humorada, muitas vezes beirando o humor negro e o sarcasmo, como podemos conferir neste conto intitulado EPITÁFIO: “Aqui jaz Zé Tonhão, que, em vida, nunca pediu desculpas (e morreu exatamente por isso!)”.
  Usando o mesmo esquema das tirinhas de jornal, mas sem o apoio das imagens para a compreensão do texto, Rossatto provoca a imaginação do leitor, pois, segundo ele, todas as suas micronarrativas têm imagens subliminares que são visualizadas apenas na mente do leitor/internauta. Às vezes, os contos apresentam-se como uma charada a ser decifrada, requisitando do leitor conhecimento prévio da matéria reelaborada literariamente. Por esse motivo nem sempre a risada vem imediatamente após a leitura dos contos. O leitor precisa de tempo para assimilar, processar e decodificar a mensagem, só então o riso responsivo explode. Vejamos: “Não e não! Tem que ser Josafá!. “Esse nome é feio! Só empresto a barriga se ele se chamar Jesus!”. A sátira ao mito da concepção divina e a disputa pelo nome da criança a ser gerada pelo método moderno da popular “barriga de aluguel” dessacraliza aquele e satiriza este pela aproximação e nivelamento no plano da sátira. Aposta-se na perspicácia do leitor para que a mensagem seja decodificada e o riso exploda como enunciado/resposta.    
Ao que tudo indica, o gênero nanoconto tem a função precípua de entreter, divertir, levar o leitor ao riso. E o riso porta consigo uma concepção de mundo. “Novos modos de ver e de conceptualizar a realidade implicam o aparecimento de novos gêneros” e, ao mesmo tempo, “novos gêneros ocasionam novas maneiras de ver a realidade[1]”. É desse modo que muitas pessoas hoje vêem a realidade, decifram o mundo: assim como cenas e fatos da vida são cotidianamente emoldurados artisticamente no formato de “cem toques cravados”, ao homem moderno, sem muito tempo para usufruir as coisas boas da vida, resta a opção de contemplar a realidade e o mundo pela janela do apartamento, do ônibus, do avião, também espécies de moldura.   
Acreditamos que o riso do leitor funcione como resposta aos enunciados cômico-satíricos produzidos por Rossatto, sinalizando para uma cumplicidade entre os interlocutores. Bakhtin assinala que, “o ouvinte, ao perceber e compreender o significado (lingüístico) do discurso, ocupa simultaneamente em relação a ele uma ativa posição responsiva: concorda ou discorda dele (total ou parcialmente), completa-o ...” [2] Com Bakhtin podemos conceber o riso suscitado pela leitura dos minicontos de Rossatto como uma forma de enunciado, que por sua vez, é também responsivo: “[...] toda compreensão plena real é ativamente responsiva e não é senão uma fase inicial preparatória da resposta (seja qual for a forma em que ela se dê)”.  Logo, poderíamos conceber no riso uma ação responsiva baseada na compreensão plena da mensagem codificada e emoldurada pelos “cem toques cravados” propostos pelo autor.
Outra questão que não pode deixar de ser abordada aqui, ainda à luz das teorias bakhtinianas, diz respeito à escolha pelo autor de palavras que condigam com a realidade a ser traduzida para o interior da obra/enunciado. Na verdade, encontrar palavras que caibam na moldura proposta requer muita habilidade e traquejo com a língua, porque os sinônimos escolhidos para adequar-se ao estreito espaço da micronarrativa não podem interferir negativamente no sentido global que o autor pretende dar a mensagem. No caso do gênero nanoconto, é preciso adequar toda a mensagem que se quer passar ao tamanho exato: uma troca de palavras por sinônimos, o uso de pontuação e/ou caracteres especiais como aspas e parênteses etc. Contudo, tais caracteres só entram na construção do enunciado sob a condição de significar e no caso dos textos de Rossatto, estes traços funcionam como recursos estilísticos indispensáveis para reforçar a expressividade, como no já citado EPITÁFIO: “Aqui jaz Zé Tonhão, que, em vida, nunca pediu desculpas (e morreu exatamente por isso!)”,. Aqui, os parênteses representam uma síntese conclusiva do fato de Zé Tonhão ter vivido sem nunca pedir desculpas. Toda a vida da personagem passa a ser recriada pela imaginação do leitor e o conto ganha a dimensão de um romance. É concedida ao leitor a liberdade de refletir, fazer suposições, interpretações e, assim, elaborar toda uma narrativa por trás dos interditos.
Nos nanocontos de Rossatto geralmente as palavras escolhidas para a composição do texto são desviadas do seu significado habitual, ganhando uma carga cômica e, portanto, mais expressiva. No exemplo anterior, embora as palavras “epitáfio” e “morreu” pertençam ao mesmo campo semântico de “morte”, elas suscitam o riso pelo fato de terem sido intencionalmente usadas com o fito de satirizar aqueles que, por falta de civilidade, acabam sendo vítimas da sua própria incúria no tratamento com o outro. No conjunto do enunciado, as palavras que remetem à idéia de morte tornam-se mais expressivas, justamente porque habitualmente não se prestam a ressignificações de tom jocoso. Em seu Estética da criação verbal Bakhtin nos oferece o seguinte exemplo: “Neste momento, qualquer alegria é apenas amargura para mim”. Ele observa que o tom da palavra “alegria”, determinado pelo contexto, não é típico dessa palavra. Assim, conclui Bakhtin, “Os gêneros do discurso, no geral, se prestam de modo bastante fácil a uma reacentuação; o triste pode ser transformado em jocoso-alegre, mas daí resulta alguma coisa nova (por exemplo, o gênero de um epitáfio jocoso)”. Daí concluímos que a palavra é expressiva mas essa expressão é determinada pelo enunciado que a engloba. Rir, então, é entender/responder essa expressividade que a palavra ganha no todo semântico.  

REFERÊNCIAS BILIOGRÁFICAS   
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal (Trad. Paulo Bezerra). 4. ed., São Paulo, Martins Fontes, 2003.
FIORIN, José Luiz. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo, Ática, 2008. 


[1] José Luiz Fiorin, Introdução ao pensamento de Bakhtin, p. 69.
[2] Mikhail Bakhtin, Estética da criação verbal, p. 271.

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