terça-feira, 11 de outubro de 2011

Graziela Frainer Knoll

Bakhtin e seu método em uma análise da publicidade
Graziela Frainer Knoll[1]

Mikhail M. Bakhtin destaca-se no rol dos filósofos da linguagem possivelmente devido ao fato de que, por mais que estudemos sua teoria, não chegamos a um esgotamento: múltiplas são as formas de enfocarmos seus preceitos teóricos, de trabalharmos com seu pensamento, assim como são infinitas as possibilidades de aplicações. Referimo-nos a seu legado como uma Filosofia da Linguagem porque não se limita à reflexão sobre um objeto ou elabora uma perspectiva linguística ou literária, mas, sobretudo, desenvolve uma visão de mundo e, dessa maneira, provoca uma reflexão em nós mesmos, que temos contato com sua obra.
Em outras palavras, Bakhtin ultrapassa os limites do literário, do texto ou do estritamente verbal para alcançar praticamente todos os aspectos da vida cotidiana. Isso significa que todo o agir em sociedade pode, em algum grau, ser observado pelo prisma bakhtiniano.
Sobre a questão da autoria, convém explicar que há textos assinados por ele e outros a ele atribuídos, como é o caso de Freudismo e Marxismo e Filosofia da Linguagem, originalmente assinados por Valentin Voloshinov (1895-1936); e O método formal nos estudos literários, assinado primeiramente por Pavel Medvedev (1891-1938). A confusão surgiu nos anos 70, a partir de dúvidas levantadas pelo linguista Ivanov, o que nunca se comprovou (FARACO, 2009, p.11-2). Pelo contrário, existem fatos concretos que corroboram que ambos, Voloshinov e Medvedev, foram duas pessoas de fato, não apenas pseudônimos, mas intelectuais que dialogavam com Bakhtin, integrando, juntamente com outros teóricos, o que hoje denominamos o Círculo de Bakhtin.
O Círculo foi esse grupo de estudiosos que funcionou regularmente de 1919 a 1929, intelectuais de diferentes áreas, todos de orientação marxista e preocupados em promover uma discussão crítica e desenvolver dois grandes projetos:
- A Prima Philosofia que objetivava fazer uma reflexão filosófica oposta a qualquer abstração típica do racionalismo. Portanto, o objetivo era pensar na subjetividade, no individual e na singularidade, ao invés de buscar leis universais;
- A Teoria Marxista da Criação Ideológica cujo objetivo era estabelecer o vínculo intrínseco entre linguagem e ideologia.
A produção multiforme do Círculo, materializada no grande volume de textos, ensaios e livros, demonstra a existência de mentes fecundas e inquietas, interessadas em desvendar questões relativas à linguagem, à literatura, à arte, mas sempre em profunda ligação com a vida cotidiana. Vida e arte não se separam. Vida é criação, e a criação é humana.
No Brasil, os pesquisadores brasileiros entram em contato com Bakhtin principalmente a partir dos anos 70. Conforme afirma Guimarães (2001, p. 39), “A década de 70 é o momento em que no Brasil os estudos sobre significação se intensificam e se dão fortemente ligados à consideração das questões do sujeito”. Nesse contexto, os trabalhos de Julia Kristeva também contribuíram para a divulgação da obra bakhtiniana no ocidente. Na época, a linguística dividia suas perspectivas entre os estudos estruturalistas, os semióticos, os discursivos e os enunciativos.
O crescente interesse pela obra bakhtiniana nos círculos acadêmicos revela a atualidade de seu pensamento. Nesse sentido, Faraco (2001, p. 27) afirma que tanto tempo se passou desde a descoberta de sua teoria pelo ocidente e, contudo, Bakhtin continua atual. Sua relevância contínua “pode estar simplesmente relacionada ao fato de que Bakhtin responde, em certa medida, a muitas das demandas [...] nos estudos das questões humanas”.
Também podemos referir Miotello, o qual afirma:
Bakhtin não nos ajuda a explicar a modernidade, nem as mazelas contemporâneas, mas antes se coloca no lugar de um pensador da resistência, da transgrediência, que tem um pensar diferente do que está hoje posto pelas ideologias contemporâneas (MIOTELLO, 2009, p. 165).

Responsável por vários rompimentos ou revoluções teóricas, Bakhtin analisa a linguagem como um constante processo de interação, de maneira que a língua existe em função do uso que os sujeitos (locutores e interlocutores) fazem dela em um contexto de comunicação. Pelo fato de a realidade da língua não estar na estrutura, mas nas interações, a linguagem é analisada do ponto de vista da enunciação, o que valoriza sobretudo a função comunicativa da linguagem. É por uma intenção de estabelecer a comunicação com o outro que o sujeito mobiliza a língua em contextos sociais concretos.
Com a enunciação, Bakhtin vincula o sujeito humano à linguagem, destacando sua condição de ser sócio-histórico. Como afirma Charaudeau (2008, p. 19), “Com a Teoria da Enunciação, a presença dos responsáveis pelo ato de linguagem, suas identidades, seus estatutos e seus papéis, são levados em consideração”. Com o diálogo como metáfora da vida, e o dialogismo como princípio constitutivo, o sujeito se instaura mediante a alteridade e a intersubjetividade, ou seja, é através do reconhecimento do outro que o sujeito constitui a si mesmo.
A enunciação tem natureza social porque o sujeito, no momento em que elabora o seu enunciado, já tem em vista o outro, que será seu interlocutor, em outras palavras, ele elabora o enunciado já tendo em vista a resposta do outro. O ser humano não é um ser individual, é um ser social, e é na relação de um sujeito com outros sujeitos que ele se constitui.
Citando Ponzio:
A revolução de Bakhtin caracteriza-se por haver mudado o ponto de referência da fenomenologia, que já não se coloca no horizonte do “Eu”, mas no horizonte do “Outro”, uma mudança que não só põe em discussão toda a direção da filosofia ocidental, mas também a visão de mundo dominante em nossa cultura (PONZIO, 2008, p. 12).

O enunciado é um ato singular, irrepetível, concreto e vinculado a uma situação de enunciação, pois precisa situar os sujeitos e os enunciados produzidos por esses sujeitos no espaço e no tempo, ou seja, no meio social. O enunciado como objeto de estudo da linguagem deve ser analisado juntamente com o quadro situacional que o engendra. Isso significa que é através da análise de fatores contextuais que se recupera o sentido de um enunciado.
A constatação acerca da relevância das condições de produção, circulação e consumo dos enunciados nos estudos da significação ou dos sentidos abriu caminho às teorias da enunciação ou teorias enunciativas. Conforme Cervoni:
Merece o nome de linguística da enunciação toda linguística que, preocupada em não mutilar demais a análise do sentido, integra um ou outro desses aspectos, que não situa de saída o conjunto da problemática enunciativa à margem de seu próprio objeto (CERVONI, 1989, p. 19).  

A interação só pode ser compreendida e realizada porque existem tipificações no uso da linguagem, o que implica o conceito de gêneros discursivos como construções tipificadas de enunciados. São os gêneros que organizam as atividades de linguagem em determinada configuração espaço-temporal.
Também provém do pensamento do Círculo a idéia de que todo signo é ideológico, ou seja, uma língua não pode ser dissociada dos conteúdos ideológicos que veicula. Nesse sentido, a ideologia como um dado já pronto ou uma ideia individual não existe, ela está inserida no quadro da criação, ou seja, das atividades de linguagem que se expressam por meio de palavras e outras unidades sígnicas. O signo é plurivalente porque diferentes sujeitos de diferentes grupos sociais empregam os mesmos signos da língua, em contextos particulares, o que resulta na produção de sentidos diversos, até mesmo contraditórios. Assim, entende-se que não há transparência na linguagem que reflete e refrata a realidade conforme ressignifica o mundo.
A relação dialógica é determinante na análise linguística, uma vez que o sentido da língua é estabelecido na situação de interação entre interlocutores. Cunha (2005, p. 287) explica a centralidade do dialogismo no pensamento bakhtiniano: “Foi justamente a partir do conceito de dialogismo que Bakhtin elaborou uma teoria do discurso humano, que constitui a base da linguística pós-estrutural”.
Não há palavra que seja a primeira ou a última, mas uma rede dialógica em que enunciados respondem a outros enunciados, e a possibilidade de resposta já é uma forma de ação social, o que nos leva à questão da responsividade e do comportamento ético dos sujeitos. Sujeito ativo e dialógico, o sujeito bakhtiniano é, antes de tudo, o agente humano de um infindável processo social e histórico, a criação ideológica.

Orientações para uma análise da publicidade
Em suma, o legado de Bakhtin é importante especialmente no sentido de que enfatizou a relação entre a linguagem e a ação humana, definindo a linguagem como prática social. Sendo assim, toda pesquisa que se propõe a seguir o método bakhtiniano (BAKHTIN, 2009; 2010) deve abranger ambas as esferas da enunciação: a dimensão social e a dimensão verbal. Na dimensão social, consideramos o sujeito que participa da interação como histórico e social, observando o gênero discursivo, os participantes do gênero (os sujeitos da interação) e as relações entre eles, assim como o contexto cultural em que o gênero se constitui.
Já na esfera verbal, os componentes linguísticos jamais devem ser verificados sob o ponto de vista da abstração ou de aspectos estritamente formais, o que mutilaria a enunciação exatamente naquilo que faz dela um evento discursivo único e concreto, a sua realização como ação linguística e social. Em Bakhtin, a compreensão que o indivíduo tem da língua não está orientada para a simples identificação de elementos normativos, mas para a apreciação de seu uso contextual. Dessa maneira, a palavra enunciada está incluída no contexto histórico concreto de sua realização, enquanto que, para o formalismo, ela é apenas um elemento abstrato, sem os fios que a ligam a uma evolução histórica própria da linguagem.
A perspectiva bakhtiniana não tem como objeto a língua nem a fala, mas a enunciação, produto em que se fundem a linguagem, o sujeito e a história. O sujeito se constrói a partir da interação com o outro nas práticas sociais concretas, sendo tanto constituído, como constitutivo da sociedade. Com isso, o autor defende o vínculo indissociável entre o sujeito e a linguagem e insere esse sujeito na história.
Os componentes linguísticos devem então ser analisados levando-se em conta os aspectos contextuais ou socioculturais. Para tanto, a análise pode ser feita por meio de categorias como subjetividade ou intersubjetividade, signo ideológico, intertextualidade/interdiscursividade, entre outras.
Como afirma Brait (2006, p. 09), Bakhtin não chegou a estabelecer uma teoria ou análise de discurso em termos metodologicamente organizados ou sistemáticos. Entretanto, a teoria dialógica nos fornece uma ampla diversidade de vias de análise, servindo assim como base para os estudos discursivos e contemplando não só a Linguística, mas as Ciências Sociais e Humanas em geral, inclusive a Comunicação.
A publicidade, assim como outras práticas de comunicação midiática, pode ser pensada e analisada a partir da teoria dialógica. Conforme observamos, para Bakhtin o dialogismo consiste na propriedade fundamental da linguagem, constituindo os discursos, os sujeitos e a vida em sua totalidade, portanto, trata-se de um conceito abrangente. Partindo desse conceito, podem ser analisados os discursos produzidos e veiculados nos gêneros publicitários, assim como as relações entre os sujeitos que interagem, o continuum que configuram na esfera da comunicação verbal, os aspectos que se percebem e que se mascaram entre discursos e textos, ou seja, todo o processo ininterrupto ao qual chamamos comunicação.

Referências Bibliográficas
BAKHTIN, Mikhail M. Estética da criação verbal. 5.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
____ (VOLOSHINOV, Valentin N.). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. 13.ed. São Paulo: Hucitec, 2009.
BRAIT, Beth. Análise e teoria do discurso. In: BRAIT, Beth (org.). Bakhtin: outros conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2006, p. 09-31.
CERVONI, Jean. A Enunciação. São Paulo: Ática, 1989.
CHARAUDEAU, Patrick. Uma teoria dos sujeitos da linguagem. In: LARA, Glaucia Muniz Proença; MACHADO, Ida Lucia; EMEDIATO, Wander (orgs.). Análises do discurso hoje. vol. 1. Rio de Janeiro: Nova Fronteira: Lucerna, 2008, p. 11-30.
CUNHA, Dóris de Arruda Carneiro da. Bakhtin e a linguística atual: interlocuções. In: BRAIT, Beth (org.). Bakhtin, dialogismo e construção do sentido. 2.ed. rev. Campinas: Editora da UNICAMP, 2005, p. 287-294.
FARACO, Carlos Alberto. Bakhtin e os estudos enunciativos no Brasil: algumas perspectivas. In: BRAIT, Beth (org.). Estudos enunciativos no Brasil: histórias e perspectivas. Campinas: Pontes; São Paulo: Fapesp, 2001, p.27-38.
____. Linguagem & diálogo: as idéias linguísticas do círculo de Bakhtin. São Paulo: Parábola Editorial, 2009.
GUIMARÃES, Eduardo. O sujeito e os estudos da significação na década de 70 no Brasil. In: BRAIT, Beth (org.). Estudos enunciativos no Brasil: histórias e perspectivas. Campinas: Pontes; São Paulo: Fapesp, 2001, p. 39-57.
MIOTELLO, Valdemir. A crise contemporânea como uma crise do ato de pensar contemporâneo. In: MIOTELLO, Valdemir (org.). A arte de consertar locomotivas velhas e o mundo: discursos e palavras sobre crise. São Carlos: Pedro & João Editores, 2009, p. 161-165.
PONZIO, Augusto. A revolução bakhtiniana. São Paulo: Contexto, 2008.



[1] Doutoranda em Estudos Linguísticos no PPGL da Universidade Federal de Santa Maria. Pesquisa com apoio da CAPES.

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