O excedente em música: a alteridade na criação musical
João Marcelo Lanzillotti
UERJ/ProPEd
Para se fazer uma canção
Desfaço as malas do meu coração
Eu sobrevôo minha solidão
E encontro o fim de um deserto
[...] E quando é bom é tudo seu
E eu sou teu, você e eu
Na imensidão a sós
Essa é minha voz
Que é a sua voz também
E a canção é de ninguém
Essa é minha voz
Que é a sua voz também
E a canção é de ninguém
Para se fazer uma canção[1]
Na condição de professor de música atuante na educação básica que teve contato com as idéias de Mikhail Bakhtin a pouco mais de um ano venho apresentar uma reflexão sobre a ideia de excedente contida no conceito de exotopia de Bakhtin, alinhando-se à criação estética como um tipo de relação humana em que entre duas pessoas, por exemplo, uma delas “engloba inteiramente a outra e por isso mesmo a completa e a dota de sentido” (BAKHTIN, 1997, p.7). Algumas questões se revelaram ao pensar estes conceitos projetados no campo da música, especialmente na criação musical, instigando-me a escrever e dialogar sobre tal perspectiva.
A ideia de excedente pode nos revelar uma consciência de que nós teremos sempre uma visão incompleta de nós mesmos pelo simples fato de que a percepção de cada sujeito é singular, única, irrepetível, intransferível e inacabada, pois “é ainda em nós mesmos que somos menos aptos para perceber o todo da nossa pessoa” (ibidem, p.26). Sendo assim, “o excedente de minha visão com relação ao outro, instaura [...] um conjunto de atos internos ou externos que só eu posso pré-formar a respeito desse outro e que o completam justamente onde ele não pode completar-se” (ibidem, p.44).
Da mesma forma que eu tenho uma percepção singular sobre mim mesmo, o outro também terá uma percepção singular sobre mim que não nunca coincidirá completamente com a minha. Haverá sempre aquilo que o outro vê e que somente ele vê em função do seu lugar insubstituível, lugar este em que ninguém mais se encontra, a não ser ele mesmo. O que ele vê do seu lugar quando olha[2] para mim é o excedente de mim. Para minha pessoa, esse excedente consiste naquilo que não consigo contemplar a partir do meu lugar. Conseqüentemente, serei sempre um ser inacabado, pois eu sou, também, aquilo que os outros (singulares) percebem de mim, e esses outros são praticamente infinitos e de inúmeras possibilidades, constituições, formações...
Como um momento imprescindível da relação com o outro, a contemplação é considerada por Bakhtin como algo ativo, produtivo e constituinte da estética, também. O autor atravessa o processo da exotopia a partir deste aspecto contemplativo:
“Os atos de contemplação, que decorrem do excedente da minha visão interna e externa do outro, são, precisamente, atos propriamente estéticos. O excedente da minha visão contém em germe a forma acabada do outro, cujo desabrochar requer que eu lhe complete o horizonte sem lhe tirar a originalidade. Devo identificar-me com o outro e ver o mundo através de seu sistema de valores, tal como ele o vê; devo colocar-me em seu lugar, e depois, de volta ao meu lugar, completar seu horizonte com tudo o que se descobre do lugar que ocupo, fora dele; devo emoldurá-lo, criar-lhe um ambiente que o acabe, mediante o excedente de minha visão, de meu saber, de meu desejo e de meu sentimento” (BAKHTIN, 1997, p.45).
Propõe Bakhtin, que o tom emotivo-volitivo de um dado momento de um sujeito, deve ser contemplado, experimentado, coincidido, identificado e de certa forma e reprocessado pelo contemplador para que somente então o material recolhido com a identificação possa ser pensado nos planos ético, cognitivo ou estético (ibidem, p.45). Essa “devolução” do contemplador ao outro aponta para um sentido de englobar, integrar e ampliar o objeto contemplado, contudo na vida, dinâmica, ver o global não nos é suscitado. Pelo contrário, o mundo nos imprime unilateralmente uma estrutura na qual nossa consciência responde a reações isoladas, visões especificas e estreitas da realidade, e o próprio autor criticamente destaca este aspecto: “Na vida, o que nos interessa não é o todo do homem, mas os atos isolados com os quais nos confrontamos e que, de uma maneira ou de outra, nos dizem respeito” (ibidem, p.26).
Nesse sentido, um contraponto a essa estrutura é a abordagem que Bakhtin faz à obra de arte, especialmente a literária. Protelando um aprofundamento das especificidades de cada natureza artística, me aproprio de mais algumas de suas passagens para refletir sobre o universo da criação musical.
Na busca da relação autor-herói na obra literária, Bakhtin formula o princípio que marca a relação criadora, esteticamente produtiva, do autor com o herói, que consiste numa “relação impregnada da tensão peculiar a uma exotopia — no espaço, no tempo, nos valores — que permite juntar por inteiro um herói” (ibidem, p.34). Ao contrário do que acontece na vida, “na obra de arte, em compensação, na base das reações de um autor às manifestações isoladas do herói, haverá uma reação global ao todo do herói” (ibidem, p.26). O autor da obra está atento tanto às questões individuais quanto ao global, possível de ser apreendido pela exotopia ao herói. Responder a reações isoladas também passa a ser responder a uma reação global.
Guardando as devidas especificidades da criação literária, entendemos que no âmbito da criação em música um fraseado musical, uma “personagem”, um “herói”, também está interligado à obra por completo através das reações do seu autor. Ou seja, quando o autor responde a um fraseado musical, ele considera o todo da obra e sua inserção, sua participação nesse todo. E esse todo é delimitado pelo nosso olhar, que por sua vez torna-se um instrumento da cultura á qual foi formado. Cultura como experiência alheia no grande tempo de Bakhtin que nos apropriamos e que sobra em relação à nossa existência.
Se o excedente consiste naquilo que sobra, que está além do que consigo perceber, se consiste naquilo que complementa (mas que nunca vai completar), e complementa somente através da percepção do outro, na música, pensar o excedente parece ser pensar em direção a uma irrevogável riqueza musical e em inúmeras possibilidades tanto para um contemplador estético como para alguém no papel de criador propriamente dito, aquele que concretiza um pensamento sonoro e musical em música[3]. O processo de construção de uma melodia, por exemplo, necessariamente ocorre inserida numa cultura e dentro de um determinado contexto constituído de elementos como a tradição e os padrões musicais desta cultura, suas formas musicais, seus instrumentos musicais, algum tema inspirador extra musical ou musical, tempo para o processo, humor, “inspiração” ou aquilo que é inexplicável em palavras por parte daqueles que criam, etc. Finalmente eu acabo que por definir e fixar essa melodia, esse agrupamento sonoro, e objetivá-lo .
Ao escolher uma melodia, pensando em termos de excedente, que melodia dentro deste contexto singular deixamos de fora? Que outras maneiras de dizer o que queria também poderiam ser feitas através de outras melodias ou variações? No processo de criação escolhemos uma combinação melódica para objetivar e ao mesmo tempo podemos adentrar num conjunto de possibilidades que muito se aproxima à natureza do chamamos de excedente. Será que adentrar nessas possibilidades deflagraria e estimularia um processo criativo mais rico? Qual relação se estabelece entre o processo criativo e os excedentes? A pergunta parece ser incoerente já que o excedente é suscitado na alteridade e vem do outro. Seria um contra-senso admitir a possibilidade de evocar por conta própria, o seu próprio excedente.
Entretanto, a incoerência só se estabelece no caso de pensarmos a criação exclusivamente em seus termos individuais. Na alteridade, na relação entre dois excedentes, então, o meu e o do outro se tornam justamente o conjunto de possibilidades referidas anteriormente. Se o excedente impreterivelmente vem do outro, pode incitar não somente meu processo ou o do outro, mas sim de ambos. Identificar, se apropriar e oferecer o excedente do outro passa a ser uma forma de contribuir também para o processo criativo deste. Nesse sentido, o sujeito que se apropria passa também a fazer parte desse processo[4]. Então, o processo criativo ganha uma qualidade coletiva quando eu identifico o excedente do outro e o trago para o diálogo, e vice-versa, superando a individualidade do processo.
Pensar o excedente nestes termos parece ser uma alternativa fértil de propor um exercício de alteridade que não se esgota no exercitar por si só. A expectativa de se chegar a uma objetivação que revele a “marca” de ambos os sujeitos, a experiência de dialogar, de negociar, assim como descobrir-se pelo outro e poder trazer sua “nova” propriedade para o trabalho em conjunto, são algumas das contribuições que se pode observar a partir de então. Enfim, fazer emergir o frescor da música que só o outro pode desvelar, de nós, e saber que dessa forma pode ser dele também.
Referências Bibliográficas
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal / Mikhail Bakhtin. [tradução feita a partir do francês por Maria Ermantina Galvão G. Pereira. 2° ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
VIGOTSKI, Lev S. Imaginação e criação na infância: ensaio psicológico: livro para professores/Lev Semionovich Vigotski. Apresentação e comentários de Ana Luiza Smolka. Tradução de Zoia Prestes. São Paulo: Ática, 2009;
[1] Canção composta a partir de uma proposta do compositor e cantor Moska da qual participaram 26 compositores.
[2] Percebe, contempla, entende sobre mim.
[3] Faço a distinção aqui entre apreciador/contemplador e compositor em termos de papéis reconhecidos pela sociedade. Contudo, a criação também constitui a contemplação. “O que nos importa são os atos de contemplação - atos, pois a contemplação é algo ativo e produtivo” (BAKHTIN, 1997, p.44). Da mesma forma, o processo criativo pela perspectiva Vigotskiana envolve imaginação, experiência e realidade :“Esses produtos da imaginação consistem de elementos da realidade modificados e reelaborados” (VIGOTSKI, 2009, p.24).
[4] Porta aberta para a discussão sobre autoria.
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