segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Pedro Guilherme Orzari Bombonato

Catarse e carnavalização: o jogo de futebol como experiência estética[1]
Pedro Guilherme Orzari Bombonato[2]

Introdução
Mais do que simplesmente o esporte mais praticado e admirado do Brasil, o futebol se constitui como um dos elementos culturais e identitários mais importantes da cultura de nosso país. E tal como qualquer manifestação da esfera da cultura, esse esporte imbrica uma quantidade infinita de relações sociais e linguísticas que o constituem ora como esporte altamente competitivo e atrativo (comercial e ideologicamente), ora como espetáculo, metonímia da sociedade. Nesse sentido, o futebol pode ser encarado como uma das principais formas de dramatização da sociedade brasileira, tal como considera o antropólogo brasileiro Roberto DaMatta (1982).
Levando em conta o protagonismo desse esporte perante o cenário cultural brasileiro, que o caracteriza como forma de dramatização, neste texto, pretende-se analisar o futebol na globalidade de elementos que o constituem, como experiência estética, para além de sua esfera ética e de seu status esportivo, ou seja, para além do simples conjunto determinado de regras responsáveis pelo andamento adequado de uma partida enquanto simples embate entre duas equipes.  Nesse sentido, buscar-se-ão fatores que aproximem uma partida de futebol de uma manifestação artística, a partir de aspectos como a relação espectador (torcedor)/espetáculo (jogo) e de conceitos como catarse (Aristóteles) e carnavalização (Bakhtin).

O futebol como gênero literário: drama, prosa e poema
Em que o futebol se assemelha à arte? De que maneira esse esporte, tomado como signo, reflete e refrata a sociedade brasileira? De acordo com José Miguel Wisnik, no livro Veneno remédio: o futebol e o Brasil (2008), o futebol se assemelha a manifestações culturais e artísticas, tais como a ficção e a música, na medida em que se caracteriza como uma “instância capaz de catalisar a experiência coletiva e dar-lhe um foco”, concentrando “questões que envolvem o cerne recorrente das interpretações do Brasil, e que se manifestam, de múltiplos modos e perspectivas, no ensaísmo, na ficção, na música.” (WISNIK, 2008, p.175).
Não é raro, por exemplo, depararmo-nos com termos provenientes do domínio das artes plásticas, cênicas ou musicais, quando falamos sobre futebol. Bons exemplos disso são: elenco (quando nos referimos ao grupo de jogadores de um time); clássico (quando falamos de uma partida entre grandes clubes, historicamente rivais); pintura (ao descrevermos um gol bonito); palco da partida (campo de jogo); maestro do time (geralmente o camisa 10, meio-campista que organiza a maioria das jogadas de ataque da equipe), entre muitos outros.
Wisnik leva adiante essa questão ao citar o texto “Il calcio ‘è’ un linguaggio con i suoi poeti e prosatori”[3], publicado por Paolo Pasolini, em 1971, no jornal italiano Il Giorno. Nele, o ensaísta-cineasta italiano defende que o futebol pode ser encarado como uma linguagem, ou seja, pode ser tomado, analogamente, como discurso literário. A partir dessa perspectiva, haveria o futebol jogado em prosa e aquele jogado em poesia:
na prosa, a vocação linear e finalista do futebol (ênfase defensiva, passes triangulados, contra-ataque, cruzamento e finalização), e na poesia a irrupção de eventos não lineares imprevisíveis (criação de espaços vazios, corta-luzes, autonomia dos dribles, motivação atacante congênita). (WISNIK, 2008, p. 13)
Influenciado pela recente conquista do tricampeonato mundial pela seleção brasileira comandada por Pelé, na Copa de 70, no México – em cuja final o Brasil derrotou a Itália por 4 a 1 –, Pasolini associou esse futebol jogado “em poesia” ao estilo brasileiro, cuja individualidade dos jogadores, com seus dribles e atitudes inesperadas, possibilita(va) uma gama imprevisível de eventos não lineares no decorrer das partidas. Em contrapartida, o futebol jogado “em prosa” era associado à maneira europeia de se praticar esse esporte, uma vez que se caracteriza(va) pela ênfase defensiva, assim como por uma certa busca pela linearidade, a partir de um conjunto de jogadas friamente calculadas.
Diferentemente de esportes como o vôlei e o basquete, em que não há brechas para momentos de improdutividade, uma vez que há uma necessidade constante de se atacar o adversário (inclusive com limite de tempo para se efetuar a jogada, como no caso do basquete), o futebol dá margem para uma alternância entre momentos produtivos e improdutivos ao longo de uma partida. Segundo Wisnik, esse é um dos fatores que possibilitam o universo de gêneros literários, que incluem a prosa e a poesia, na dimensão do jogo, que se abre “num leque teatral de possibilidades narrativas” (WISNIK, 2008, p. 113-114).
Com relação ao drama e à tragédia, é possível arriscarmos uma aproximação do estádio de futebol com o palco grego, que, por volta do século V a.C., dividia-se em proscenium (proscênio) e skené (skene, a partir de agora). No proscênio, os atores, já transformados em seus personagens, encenavam as ações possíveis e necessárias (ARISTÓTELES, Poética apud AZEVEDO, 2001, p. 76-77), acessíveis à visão do público. Já a skene era o lugar onde os atores poderiam “se despir de suas vestimentas mundanas e paramentar-se com roupas, máscaras e coturnos condizentes com a estatura das personagens que estavam por representar.” (AZEVEDO, 2001, p. 77). Ainda de acordo com essa autora, além dessa função pragmática da skene, havia também uma função simbólica, que marcava a transfiguração dos cidadãos comuns em deuses e figuras semidivinas.
As quatro linhas que demarcam o gramado e tudo o que se dá a ver ao público ao redor do campo é o proscênio do espetáculo futebolístico. Já os vestiários e tudo o mais que compõe os bastidores do jogo de futebol fazem parte da skene da partida, ou seja, do espaço limítrofe que separa o jogador enquanto “pessoa comum”, do craque, elevado a figura semidivina dentro do espaço de jogo.
Nas arquibancadas e, por que não, em frente aos televisores ou rádios, encontra-se talvez a figura mais emblemática dessa obra dramática: o torcedor. Tal como diz Martin Esslin, citado por Bernardo Buarque de Hollanda no texto “Futebol, arte e política: a catarse e seus efeitos na representação do torcedor” (2009), “O autor e seus intérpretes são apenas metade do processo total: a outra metade é composta pela plateia e sua reação. Sem plateia não existe drama. Uma peça que não é encenada é apenas literatura.” (ESSLIN, 1976, p. 21 apud BUARQUE DE HOLLANDA, 2009, p. 126). No estádio, teatro do drama futebolístico, o público se caracteriza por sua não passividade diante do proscênio. Nas palavras poéticas de Eduardo Galeano em Futebol ao sol e à sombra (2009), o torcedor, como décimo segundo jogador da equipe, “sabe muito bem que é ele quem sopra os ventos de fervor que empurram a bola quando ela dorme, do mesmo jeito que os outros onze jogadores sabem que jogar sem torcida é como dançar sem música.” (GALEANO, 2009, p. 14-15).
Nesse sentido, recuperando a metáfora do teatro grego, talvez a analogia mais adequada para a torcida nos estádios seria com o coro da tragédia, que se constitui como “um outro tipo de personagem, que ocupa uma similar posição mediadora e ambivalente nas narrativas trágicas.” (AZEVEDO, 2001, P. 89). Tal como o coro da tragédia, que participa da narrativa, muitas vezes intervindo nas ações dos personagens, também os torcedores, para além de uma simples relação de assistência com relação ao espetáculo, participam do enredo do jogo, intervindo direta e indiretamente na atitude dos jogadores, árbitros e treinadores; personagens do drama futebolístico. Os gritos de “Olé!”, que conduzem e cadenciam uma troca de passes desconcertante do time que vence a partida; o grito desordenado ou em uníssono de “ladrão!” para o jogador pelo qual se está torcendo, que serve de alerta sobre um jogador adversário que, sorrateiro, almeja roubar-lhe a bola; os pedidos em coro pela entrada de um atleta querido que iniciou o jogo no banco de reservas; tudo isso faz parte da intervenção direta da torcida nas ações que ocorrem em campo. Aliás, as palavras “torcida” e “torcedor”, de acordo com Toledo (2000) e Buarque de Hollanda (2009), apareceram após os anos 30, pois que, até então, as imprensas carioca e paulista utilizavam o termo “assistência” para se referirem ao público do futebol.
Sobre a origem do termo “torcer”, a versão mais aceita é a de que no início do século XX, era comum as pessoas acompanharem as partidas de futebol abanando lenços durante o jogo. Em determinados momentos, dada a tensão de certas jogadas, esses pedaços de panos eram torcidos e retorcidos, como resultado do extravasamento dos sentimentos do público. Metonimicamente, o próprio torcedor, assim como o lenço, torce, contorce-se e se retorce por seu time. Em outros países, palavras como fan/fanatic [fã/fanático] e supporter [aquele que dá suporte, apoio], na Inglaterra; tifoso [aquele que é acometido pelo tifo], na Itália; hincha [do verbo “hinchar”, em português, “inchar” ou “inflar”], na Espanha, na Argentina e no Uruguai; assim como as palavras torcida e torcedor, refletem uma relação que extravasa a simples assistência por parte do público de futebol (BUARQUE DE HOLLANDA, 2009).
No que se refere à relação público-espetáculo e às peculiaridades do jogo que o caracterizam como um grande conjunto sígnico, o universo de uma partida de futebol configura-se na “arena de um ‘diálogo’ polêmico e plural, corporal, não verbal, onde valem prosa e poesia, leveza e força, argumento e parábola, silogismo e elipse. Batalha dos gêneros pela posse do significante e pelo seu transpasse em gol.” (WISNIK, 2008, p. 120). Nesse sentido, dentro dessa grande esfera enunciativa marcada pela temporalidade da partida, para além da assistência passiva, o torcedor participa ativamente do espetáculo, ou seja, apresenta uma atitude responsiva ativa – aproveitando a expressão bakhtiniana (Estética da criação verbal, Martins Fontes Editora, 1997) – perante esse diálogo; verbal e “não verbal, projetado no terreno da disputa lúdica, que atualiza a necessidade de que haja um outro para que eu seja, de que um outro me afirme ao me negar.” (WISNIK, 2008, p. 51).

Futebol: catarse e carnavalização
 Retomando a relação do futebol com as tragédias gregas, ainda do ponto de vista da relação público-espetáculo, é possível enxergar uma analogia com o conceito aristotélico de catarse, finalidade da tragédia na Grécia, que consistia em “uma manifestação eminentemente purgativa e purificadora, capaz de provocar no espectador a liberação de determinadas sensações e de fazer com que aflorassem nele sentimentos como os de compaixão, de temor ou de humor incômodo.” (ARISTÓTELES, 1997, p. 232-235 apud BUARQUE DE HOLLANDA, p. 126, 2009).
No jogo de futebol, o gol representa o ápice do extravasamento catártico do torcedor. De acordo com a prosa poética de Eduardo Galeano, “o gol é o orgasmo do futebol” (GALEANO, p. 16, 2009). Com ele, “a multidão delira e o estádio se esquece que é de cimento, se solta da terra e vai para o espaço.” (Idem, p. 17).
Essa ideia do campo de futebol como espaço catártico de “escoamento do excesso de emoções” dialoga com a concepção bakhtiniana de carnavalização. Em sua análise das festas populares do contexto rabelaisiano, em que o homem medieval se libertava momentaneamente da seriedade do “mundo real” outorgada pelo Estado e pela Igreja, Bakhtin menciona os jogos como um desses espaços carnavalizados que, ao lado das manifestações festivas, libertavam o homem dos “trilhos da vida comum”, criando uma espécie de “vida em miniatura” (BAKHTIN, 2008, p. 204).
Bakhtin não falou específica e diretamente do futebol. Entretanto, essa citação vai ao encontro do que viemos desenvolvendo ao longo deste texto, ou seja, o futebol encarado como signo/linguagem, tal como a arte e as festividades medievais, desenvolve uma espécie de “vida em miniatura”, que reflete a sociedade, mas também a refrata, uma vez que desenvolve “uma linguagem dos pés, do hemisfério corporal menos especificado e, em princípio, cego para os controles sutis e a precisão objetiva mais acurada, e reduzindo as mãos à intervenção de última instância, possível só ao goleiro” (WISNIK, 2008, p. 98-99). Destarte, o futebol “reverte o hábito corporal e instaura uma espécie de ‘mundo às avessas’ em que a posse da bola é muito mais frágil e transitória do que nos esportes manuais.” (Idem). Wisnik, no entanto, ao aproximar o futebol das manifestações artísticas, colocando-o como elemento de dramatização da sociedade brasileira, alerta para o fato de que não se pode considerar esse esporte como metáfora direta da sociedade, mas como índice interno do processo social. Nesse sentido, não se pode relegar o futebol exclusivamente ao âmbito das superestruturas sociais – no sentido marxista da expressão – uma vez que ele “não é um reflexo superestrutural da economia nem uma ideologia maniqueísta da dominação, mas um feixe de relações interdependentes com o universo político, econômico e jurídico no qual se inscreve.” (ELIAS, Norbert, apud BUARQUE DE HOLLANDA, 2009, 137). Assim, tal como as demais manifestações culturais, os esportes, como metonímias da sociedade, “estão em interação dinâmica com as diversas dimensões da realidade, influenciando e sendo influenciadas pelas mesmas.” (Idem).
O antropólogo brasileiro Roberto DaMatta dialoga com essa concepção, ao criticar a visão marxista do futebol como “ópio do povo”, em um texto publicado no início da década de 80, sob o título “Esporte na Sociedade: Um Ensaio Sobre o Futebol Brasileiro”. Nesse texto, DaMatta defende que “esporte e sociedade são como as duas faces de uma mesma moeda e não como o telhado em relação aos alicerces de uma casa.” (DaMATTA, 1982, p. 23). Dessa forma, relações expressivas e dramáticas, assim como os atores que compõem o jogo, tornam possível, tal como tentamos defender ao longo deste trabalho, considerar o futebol enquanto um drama (Idem, p. 31), isto é, enquanto experiência estética.

Referências Bibliográficas
AZEVEDO, Ana Vicentini de. A estrutura triádica do palco grego. In: A metáfora paterna na psicanálise e na literatura. Brasília: Editora Universidade de Brasília; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2001.
BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo/Brasília: Hucitec/Editora Universidade de Brasília, 2008.
BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
DaMATTA, Roberto da. Esporte na Sociedade: Um Ensaio Sobre o Futebol Brasileiro. In: Da Matta, Roberto et al. Universo do futebol: esporte e sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1982.
GALEANO, Eduardo. Futebol ao sol e à sombra. 3ª ed. Porto Alegre: L&PM Editores, 2005.
BUARQUE DE HOLLANDA, Bernardo B. Futebol, arte e política: a catarse e seus efeitos na representação do torcedor. Organizações & Sociedade, Bahia, v. 16, n. 48, p. 123-140, jan./mar., 2009. Disponível em: <http://www.revistaoes.ufba.br/include/getdoc.php?id=710&article=578&mode=pdf>. Acesso em: 18 jul. 2011.
TOLEDO, L. H. No país do futebol. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 2000.
WISNIK, José M. Veneno Remédio: o futebol e o Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.


[1] Texto enviado como pré-requisito de inscrição no I Encontro de Estudos Bakhtinianos (I EEBA).  Eixo temático: “O Contemplador: vivências estéticas e responsividade”.
[2] Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal de São Carlos (PPGL-UFSCar).
[3] Em tradução livre: O futebol é uma linguagem com seus poetas e prosadores.

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