segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Simone de Jesus Padilha

Resposta: um estudo bakhtiniano sobre uma canção
Simone de Jesus Padilha (UFMT/MEEL)
simonejp1@gmail.com

          Há muito tempo tenho utilizado, em minhas aulas, a canção do Skank, “Resposta”. Além de ter uma musicalidade incrível, uma bela letra intimista, o conteúdo dito é algo ao qual sempre faço referência quando estou tratando da temática da responsibilidade ou responsabilidade bakhtiniana.
       Além disso, entrevejo nela traços do que eu poderia chamar de uma referência ao dialogismo constitutivo da linguagem, do processo interacional em que pela/na linguagem constituímos e somos constituídos como sujeitos. E mais, traz ainda esse “eu” e esse “outro” que se fundem nesse processo, algo que Bakhtin postula e Ponzio reaviva em seus escritos sobre o pensamento do Círculo.
           Tendo as temáticas bakhtinianas como lentes para focar o meu olhar, este texto traduz a minha visão de contempladora desta canção/letra de canção, em diferentes níveis de leitura, até considerações sobre a criação artística, em termos da relação entre o autor e o herói na atividade estética. Assim, penso que meu projeto discursivo neste pequeno texto é o de compartilhar os sentidos que construí ao ouvir esta canção e analisar sua letra e, a partir daí, provocar, nos interlocutores, novos sentidos em novas leituras.

Conhecendo uma canção e sua letra
            A música “Resposta”, de autoria de Nando Reis foi gravada por Skank em 1998, no Álbum Siderado e por Nando Reis em seu álbum LUAU MTV – Nando Reis e os Infernais, em 2007. Segue abaixo a letra completa[1]:

Resposta

Bem mais que o tempo
Que nós perdemos
Ficou pra trás também o que nos juntou
Ainda lembro o que eu estava lendo
Só pra saber o que você achou
Dos versos que eu fiz
E ainda espero
Resposta

Desfaz o vento
O que há por dentro
Desse lugar que ninguém mais pisou
Você está vendo o que está acontecendo
Nesse caderno sei que ainda estão

REFRÃO

Os versos seus
Tão meus que peço
Nos versos meus
Tão seus que esperem
Que os aceite em paz
Eu
digo que eu sou

O antigo do que vai adiante
Sem mais eu fico onde estou
Prefiro continuar distante

Bem mais que o tempo
Que nós perdemos
Ficou pra trás também o que nos juntou
Ainda lembro o que eu estava lendo
Só pra saber o que você achou

REFRÃO

Desfaz o vento
O que há por dentro
Desse lugar que ninguém mais pisou
Você está vendo o que está acontecendo
Nesse caderno sei que ainda estão

REFRÃO

Viajando na letra
            Numa primeira leitura, podemos compreender que o “eu” que fala nesta canção se dirige a alguém que um dia foi próximo, mas que aparentemente esta proximidade se perdeu no tempo. Entretanto, havia alguns registros num caderno, registros em formas de versos, que são atribuídos tanto a um quanto a outro, e alguns desses versos ainda não foram lidos, não foram apreciados, o “eu” aguarda uma resposta do “outro”.
            O tipo de relacionamento não fica explícito, pode ser uma relação amorosa, entre namorados, pode ser uma relação forte de amizade, pode ser uma relação entre pai e filho, não há pistas que nos dêem a certeza da natureza desta relação. Assim, o que fica evidente, na letra, apenas, e para nós é o primordial, é que uma relação existia ali entre duas pessoas e que era marcada por uma prática linguageira, uma prática de escrever versos, que provavelmente registravam os sentimentos mútuos.
            Parece, ainda, que no verso da primeira estrofe “Ficou pra trás também o que nos juntou” lamenta-se o perder desta prática e assinala-se que ela era tal que os unia, ou consubstanciava os sentimentos entre os dois. E observemos ainda, nesta mesma estrofe, que houve um tempo perdido, um tempo de convivência, de relação. Ou uma relação em um dado tempo.
            Na segunda estrofe, de forma interessante, temos um lugar... um lugar que “ninguém mais pisou”, terra inerte, inóspita, inabitável, abandonada? E, para piorar a situação, o vento ainda vem desfazer o que há dentro deste lugar, ou seja, havia algo construído ali, erguido ali, que fora desfeito pelo vento... por ser muito frágil, como um castelo de areia, ou por ser um vento muito forte, que derruba muros? Mas, no caderno ainda estão os versos, que salvam o mundo desfeito, a relação eu/outro, a história de ambos. O registro em forma de poema refaz o mundo.
            Já o refrão procura dizer de quem são os versos, são de um, são de outro, são de ambos, ou ambos são pelos versos, ambos se constituem pelos versos, pela linguagem literária? Mas parece que a “aceitação” em paz é condição para esta existência mútua, para a continuidade da vida desta relação. De que paz se fala, uma paz de compreensão? De aceitação da palavra do outro? De compreensão de sentidos? De compreensão-resposta?
            É preciso ainda assinalar a musicalidade especialmente construída para este refrão[2], em que a troca de “seus” e “meus” constitui também a troca entre tons graves e agudos, como num entrecruzamento, em que a letra e a tonalidade vão a direções opostas, mas se cruzam na voz do intérprete, traduzindo musicalmente o sentido de troca de posições, de diálogo, de (con)fusão entre dois “eus”.
            Na segunda parte do refrão, temos uma virada deste “eu”, digamos, em termos de afirmação identitária: “sou o antigo do que vai adiante”, mas, pensemos, se este “eu” é o que é na relação com o outro, marcada a versos, ele ainda, em sua linguagem, preserva uma história, carrega uma história de um eu “antigo”, mas que “vai adiante”, e se renova, mas, “sem mais”, ou seja, “sem resposta”, prefere continuar distante, incompreendido, incompreensível, desfaz-se a proximidade, desfaz-se a relação. E é na releitura dos versos, no velho caderno, que se ressuscitam os sentidos, os sentimentos e se reaviva a relação (quase) perdida.  E nós, ouvintes contempladores da canção, a cada vez, passamos a (re)viver e ressuscitar da mesma forma, palavra sobre palavra, agora cantada, essa pequena história de um relacionamento humano.

Viajando com Ponzio e Bakhtin

             No livro de Ponzio, “Procurando uma palavra outra” (2010), precisamente na primeira parte do livro, Ponzio vai lembrar que “A palavra outra é a palavra do encontro” (p. 29). Vemos, nesta canção, Resposta, que o conteúdo trata de um encontro, um encontro em duas pessoas, e que foi, aos poucos registrado pela palavra literária, os versos. Ou, pensando além, os versos são eles mesmos encontros, ou provas de encontros. Neste caso, temos um herói (na concepção bakhtiniana do termo) que se dirige ao outro, e a canção/letra de canção é toda uma palavra (pensando no seu todo se sentido) que pede uma resposta, uma compreensão-responsiva, por um lado, e por outro, seguindo os passos da própria letra, pede uma resposta a uns versos escritos, ou seja, pede, através da resposta, a continuidade da relação pela linguagem. Se a resposta vem, esta “pede, à sua vez, um ato, um passo, uma tomada de posição” (p. 32).
É Bakhtin quem vai nos lembrar que não temos álibi na existência, ou seja, somos responsáveis e respondíveis (damos resposta) por nossos atos, sempre, ao outro, e não há como escapar disso, a não ser que esse “eu”, ou esse “outro” tenha, como bem disse a canção, se desfeito com o vento. No texto “Para uma Filosofia do Ato”, portanto, Bakhtin concebe a atividade ética como um ato responsável, no seu processo de “estar se fazendo” num momento único, concreto, de sua realização.  Sempre partindo de e se endereçando a um ser humano, envolvido neste evento, o ato pode ser entendido como uma ação de qualquer natureza, um pensamento, um enunciado verbalizado ou não, escrito ou não. Ao ato, ao evento único do Ser, Bakhtin alia, numa simultaneidade, num todo indissolúvel, os valores que são mobilizados por meio da relação eu e outro, num tempo e lugares também únicos.  Para a nossa leitura de “Resposta”, aqui, lembremos que houve um tempo e um lugar, um cronotopo diria o mesmo Bakhtin, e que este herói busca resgatar através da leitura de versos e na expectativa de resposta a estes.
Para Ponzio (2010)
O “não-álibi no existir” coloca o eu em relação ao outro, não segundo uma relação indiferente com o outro genérico e enquanto ambos exemplares do homem em geral. Trata-se, ao invés, de um envolvimento concreto, de uma relação de não indiferença, com a vida do outro, com o próprio próximo (tal proximidade não tem nada a ver com a distância espacial), com o próprio contemporâneo (em que a contemporaneidade não tem nada a ver com a atualidade), com o passado e o futuro de pessoas reais. (Ponzio, 2010, pp. 35-36)

            Refletindo sobre esta citação, gostaríamos de retomar os versos:

Bem mais que o tempo,
Que nós perdemos

Sem mais eu fico onde estou,
Prefiro continuar distante

Desfaz o vento
O que há por dentro
Desse lugar que ninguém mais pisou
           
            Quando este herói, este “eu” retoma a questão do tempo, da distância, e do lugar podemos pensar em termos de uma relação que se estabelece, portanto, entre dois centros de valores (duas pessoas), em um tempo e lugar únicos, e da mesma forma envolve valores/sentidos únicos. Entretanto, para um e para outro, este tempo, este lugar, esta distância e proximidade não são os mesmos. Conforme nos lembra Ponzio (2010, p. 35) “Do meu lugar único, que ninguém mais pode ocupar, somente eu sou eu, enquanto todos os outros são outros”. Haverá um encontro, no processo interacional, se o outro “aceitar em paz” os versos, todavia, sem isso e sem resposta, prefere o “eu” continuar distante, ou seja, tudo o que os une, o que os aproxima passa a ser apenas versos num velho caderno, versos como quaisquer outros, não únicos, não irrepetíveis, uma casca abstrata da língua, palavras de ninguém, encontro algum. Da mesma forma, em termos estéticos, não há nem este “eu”, esteticamente falando, o herói dissolve-se. Para Ponzio (2010), novamente:
Não há primeira outra palavra de cada um e em seguida o encontro com a palavra outra a qual se dirige e a qual requer a escuta. Não há antes o eu e o outro, cada um com o que tem a dizer, e em seguida, a relação entre eles. A relação não é entre eles, mas é justamente aquilo que cada um é no encontro da outra palavra com a palavra outra, e como não teria sido e provavelmente não poderá ser fora daquele encontro. (Ponzio, 2010, p. 40)

Abrindo para outras leituras
            As leituras que propusemos aqui não se esgotam neste pequeno texto, apenas sugerem, acreditamos, novos horizontes para que possamos discutir questões tão instigantes como são as questões da linguagem, da linguagem esteticamente realizada, e sobretudo, do papel nosso de contempladores deste universo artístico. Ao ouvirmos esta e outras canções, estamos vivendo esteticamente e respondendo a nós, aos outros, aos outros de nós através de letras tão belas quanto, por vezes, enigmáticas, e através da musicalidade, linguagem não menos fascinante.
            Podemos, além, pensar nesta canção da mesma forma que o fez Bakhtin em sua análise de poema de Pushkin[3] “Separação”, exemplificando a disposição arquitetônica do mundo na visão estética em torno de um centro de valores, em termos das relações entre autor-herói-ouvinte, sobretudo entre o autor, como participante e o herói, em seu ato responsável. Mas, como o espaço que nos permitem e o tempo são poucos, abrimos para nossos leitores/interlocutores a discussão destas e a possibilidade de outras leituras.

Referências bibliográficas
BAKHTIN, M. M. (1919-1921). Toward a Philosophy of the Act. Austin, University of Texas Press, 1993. Versão para o português com o título, Para uma Filosofia do Ato, para uso didático e acadêmico, com tradução provisória de Calos Alberto Faraco e Cristóvão Tezza, mimeo.
PONZIO, A. Procurando uma palavra outra. São Carlos: Pedro e João Editores, 2010.
TATIT, L. (1986).    A canção: eficácia e encanto. São Paulo: Actual.
________  ( 1998b) Musicando a semiótica: ensaios. São Paulo: Annablume.


[1] Letra retirada no site http://www.vagalume.com.br/skank/resposta.html#ixzz1X1UJfNu9, acesso em 05 /09/2011.

[2] Um estudo interessante sobre as relações de sentido entre música e letra de canções é feito por Luiz Tatit, em várias, obras, cito, entre outras, “A canção, eficácia e encanto” (1986) e “Musicando a semiótica: ensaios” (1998)
[3] Aleksander Pushkin, 1799-1837, grande poeta russo, fundador da clássica poesia russa.

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