segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Nicole Mioni Serni

O Artista-Contemplador: vivências estéticas na arte e suas reações responsivas
Nicole Mioni Serni[1]

           Ao discutir a questão do contemplador, na obra do Círculo, não se pode deixar de retificar a essência do indivíduo social que se constrói a partir do outro. Assim como Bakhtin não considera o sujeito separadamente do meio em que vive, tudo que é produzido por indivíduos sociais será ligado intrinsecamente à sociedade: “Corpos químicos e físicos ou substâncias existem tanto fora da sociedade humana quanto dentro dela, mas todos os produtos da criatividade humana nascem na e para a sociedade humana.” (BAKHTIN/VOLOSHINOV, Mimeo, sem referência, p.2). Assim, quaisquer produções de seres humanos, colocados aqui como sujeitos sociais, não devem ser consideradas alheias à sociedade na qual se inserem. Essas obras e seus sujeitos (autor-criador, locutor, interlocutor, enunciador) em ligação com o social é que são perceptíveis ao olhar do contemplador. O olhar de todo ser humano contempla sempre o mundo sob certo ponto de vista, sempre subjetivo, pois para se ter uma visão completa do todo seria necessário que todos os indivíduos se fundissem em um único ser.
Logo, ao se pensar na vivência do contemplador é preciso levar em consideração a particularidade de uma perspectiva. Afinal, segundo Bakhtin, “A contemplação estética e o ato estético não podem abstrair a singularidade concreta do lugar que o sujeito desse ato e da contemplação artística ocupa na existência” (2003, p.22). A singularidade do lugar que cada sujeito ocupa pode proporcionar, na contemplação de outro sujeito (por exemplo, na construção do “eu e “do “outro”), uma perspectiva do “eu” sobre o “outro” (e vice-versa) que este outro não pode ver do lugar que ocupa (refere-se aqui à concepção de exotopia e lugar extraposto de Bakhtin). Nenhum sujeito, nesse sentido, pode ser definido, conforme o filósofo russo, sem o foco de iluminação da perspectiva de um outro:
“Nesse sentido pode-se dizer que o homem tem uma necessidade absoluta do outro, do seu ativismo que vê, lembra-se, reúne e unifica, que é o único capaz de criar para ele uma personalidade externamente acabada; tal personalidade não existe se o outro não a cria; a memória estética é produtiva, cria pela primeira vez o homem exterior em um novo plano de existência.” (BAKHTIN, 2003, p. 33)

A contemplação é uma resposta ativa, uma vez que é a re-ação dos sujeitos da linguagem, vista, esta, em movimento, de maneira viva. Mais, no caso do enunciado estético, discurso não-acabado, mas com acabamento. A obra de um certo sujeito, por exemplo, exercerá sobre seus contempladores uma cadeia de respostas que, por sua vez, contribuem para a construção dessa obra, uma vez que parte do processo composicional da linguagem. A contemplação estética colabora na construção do objeto de contemplação porque o contemplador, ao responder ativamente ao discurso estético contemplado, passa a ser também produtor do mesmo, parte integrante da obra. Trata-se, aqui, da interação autor-obra-contemplador.
O contemplador discutido neste texto é aquele que contempla a arte. Ao pensar no discurso artístico, Bakhtin/Voloshinov afirma que
o ‘artístico’ na sua total integridade não se localiza nem no artefato nem nas psiques do criador e contemplador consideradas separadamente; ele contém todos esses três fatores. O artístico é uma forma especial de inter-relação entre criador e contemplador fixada em uma obra de arte.” (Mimeo, sem referência, p.4).

Desse ponto de vista, o discurso artístico, um tipo de gênero, logo, composto por forma, conteúdo e estilo, também se caracteriza pela interrelação existente entre criador-obra-contemplador, sendo que o contemplador não apenas contempla, mas tem sua visão de mundo modificada a partir do “objeto” contemplado, sendo possível então, reagir com uma resposta frente ao discurso da obra de arte, que, dada a sua estrutura material, representa, é representada e representativa de sujeitos, épocas e sociedades determinadas, ainda que construída de maneira atemporal.
            Ao se pensar que o contemplador é aquele que observa e, a partir do observado, emite uma resposta, que por sua vez, perpetuar-se-á em uma espiral infinita de respostas umas às outras, pode-se dizer que o contemplador responde àquilo que é observado assim como a natureza do diálogo acontece: um enunciado que gera outro em resposta, em constante interação enunciado-enunciado resposta.
            Com o propósito de se discutir a questão da vivência estética do contemplador e suas possíveis respostas ao contemplado, pode-se inserir, nesse contexto, as relações entre os trabalhos do pintor Johaness Vermeer (Holanda, século XVII) e as obras de diferentes gêneros construídas a partir de sua vida e produção artística. O pintor Vermeer trabalhou no século XVII em diversas obras, sob as quais certamente ele projetou uma resposta, porém os possíveis diálogos entre seus quadros e seus contempladores ocorrem em constante devir. Enquanto novos contempladores entram em contato com a arte de Vermeer, novos diálogos são estabelecidos. O resultado concreto de um deles foi o livro de Tracy Chevalier, Moça com Brinco de Pérola, em que, a partir da observação de um quadro de Vermeer, a escritora compôs um romance e a resposta para esse diálogo particular foi veiculada por meio da pesquisa para um conhecimento profundo da vida e da obra do autor daquele quadro que ela contemplara. A escritora-contempladora criou, assim, a partir de um ponto de vista particular, um novo pilar que se conecta à obra de Vermeer, um diálogo que confirma as idéias de Bakhtin/Voloshinov de que a arte “se torna arte apenas no processo de interação entre criador e contemplador , como o fator essencial nessa interação.” (Mimeo, sem referência, p. 4).
Após o livro ter sido escrito, em resposta ao quadro, uma outra resposta foi produzida no formato de gênero cinema.  O filme Moça com Brinco de Pérola, de Peter Webber, dialoga com o livro de Tracy Chevalier, que foi escrito como ato responsivo em relação ao quadro. O filme, portanto, também dialoga com os quadros reais e a história da vida de Vermeer, configurando uma série de interdiscursos e intertextos, projetados como produções responsivas às obras do artista Vermeer (que, por sua vez, possivelmente também construiu suas obras em resposta a outros discursos). A posição ativa do contemplador é a sua resposta. Assim, pode-se dizer que toda vivência estética gera uma re-ação, uma resposta frente ao contemplado. No caso do filme Moça com Brinco de Pérola, a responsividade é perceptível nos resultados da comunicação entre autor-obra-expectador. Ao assistir ao filme em questão, certos contempladores podem não reconhecer os diálogos entre este e as obras de Vermeer, entretanto, algum diálogo eles farão, alguma resposta eles emitirão, algum diálogo com o filme será estabelecido, uma vez que a contemplação é uma leitura ativa do “outro”. No caso do contemplador que possui conhecimento da produção artística de Vermeer, sua leitura/contemplação à obra será outra, pois ele produzirá junto com o filme, em diálogo com ele, em resposta a ele, outros sentidos, a partir do conhecimento de mundo que possui acerca daquilo que contempla.
Ao pensar na elaboração do romance realizada pela escritora a partir da sua vivência com as obras de Vermeer, percebe-se que o contemplador é também produtor. E isso não se restringe a um artista, intelectual, filósofo, escritor, etc. Todos somos responsivos. No caso de Peter Webber, ao entrar em contato com o livro supra-mencionado, respondeu a ele com a produção de um filme.
O contemplador re-age ao que foi visto/dito/lido/ouvido e torna-se, então, também produtor que, por sua vez, proporcionará vivências a outros contempladores, em uma seqüência ininterrupta de respostas.  Ao contemplar uma obra, esta age sobre nós da mesma maneira que o sujeito, em resposta, re-age e cria aquilo que assiste.

Referências Bibliográficas:
BAKHTIN, M. / VOLOSHINOV. “Discurso na vide e discurso na arte”. Tradução de Carlos Alberto Faraco e Cristovão Tezza para fins acadêmicos.
BAKHTIN. (1920-1974). Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.



[1] Graduanda de Letras da UNESP – Câmpus de Assis; FAPESP; GED; nicole_brass2@yahoo.com.br

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