De Branca de Neve à Preta da Noite.
Quando as crianças transcriam a vida na narrativa literária.
Carmen Lúcia Vidal Pérez
Universidade Federal Fluminense
Toda história começa com era uma vez e acaba felizes para sempre... é assim que Luisy (5 anos) inicia a atividade de contação de história. As crianças concordam com ela, já definiram como começará e acabará a história que será contada por todos. Luisy comanda a narração – pois foi dela a idéia de contar a história diferente, proposta imediatamente aceita pelo grupo.
E lá vamos nós...
Luisy inicia a história, as crianças a interrompem com sugestões para o enredo, algumas são aceitas, outras não. Algumas pausas para discussões e opiniões divergentes. Momento coletivo de negociações sobre o conteúdo da história e a produção do texto final. A professora assiste e anota as decisões. Apaga, risca, não vai ser assim! Vai sim, quem está contando a história sou eu! Mas a história é de todo mundo! Então conta sozinha! É pra todo mundo contar junto! Conflitos. Negociações. Tensões. Momentos e movimentos de criação. Após algumas confusões o texto final está pronto e agora Luisy vai lê-lo para a turma....
Mais confusão...
Não é assim que está escrito! Você mudou a história! Não falamos nada disso! Você está inventando! Mentira! Luisy altera algumas passagens interferindo no enredo negociado. Tem que ler como está escrito. Não pode mudar! A gente não falou isso! Contra vontade Luisy retoma a leitura do texto ‘corrigindo” os ‘desvios’. Por fim todos ficam satisfeitos com a história criada. Conta de novo sem mudar a história!
Conta outra vez...
PRETA DA NOITE
Era uma vez Preta da Noite. Um dia preta da noite estava passeando na floresta e viu um caçador de lobsomen. O caçador estava procurando o namorado dela, que era o Lobsomen da Lua Cheia. Ele pegou Preta da Noite e levou para uma casa bem longe dali. Lá Preta da Noite tinha que fazer tudo para o caçador e os anões malvados. Ela era escrava deles. Um dia ela fugiu e encontrou uma árvore bem grande e se escondeu. Enquanto isso o caçador voltou e não encontrou Preta da Noite e mandou os anões procurarem Preta da Noite na Floresta. O Lobsomen da Lua Cheia também estava preocupado com o sumiço de Preta da Noite. Ele também foi para a floresta procurar por ela. De repente os anões encontram o Lobsomen da Lua Cheia. Os anões partem para cima, mas o Lobsomen se defende. Os anões jogam uma rede, mas o Lobsomen se solta. O Lobsomen mata todos os anões. O caçador chega e da um tiro no lobsomen, que cai no chão, morto. O caçador vai embora feliz, pois matou o Lobsomen. Mas é lua cheia. E o lobsomen se transforma num príncipe preto. Preta da Noite encontra o príncipe preto e beija ele. Cuida dos machucados e ele fica bom. Os bichos da floresta fazem uma casa para o príncipe preto e Preta da Noite morarem. Mas quando a lua cheia vai embora o príncipe preto vira lobsomen outra vez, por isso ele se chama Lobsomen da Lua Cheia. Preta da Noite se casa com o Lobsomen da Lua cheia, que é também o príncipe preto. E sempre tem festa na casa deles da floresta quando é lua cheia. Eles viveram felizes para sempre.
Crianças narradoras...
Imersas num mundo de histórias, as crianças escutam e produzem suas narrativas em suas brincadeiras e conversas. Pela narrativa de suas histórias, as crianças (re)organizam discursivamente sua ação sobre (e com) o outro. A narrativa possibilita o exercício da imaginação e de diferentes usos da linguagem. Ao “brincar” com a realidade, a criança concebe, pela linguagem, outras realidades e experimenta outras perspectivas de compreensão do mundo e de si mesma, num movimento contínuo entre o eu e o outro. Na narrativa infantil a palavra é verdadeira, no sentido bakthiniano do termo, ou seja, a palavra é sempre plural e, sendo plural é arena de luta e lócus de encontros. Encontro com o outro na narrativa, me desloco, me transformo – eu e o outro não somos o que éramos, estamos sendo. A narrativa potencializa o tornar-se, a criança não é, se torna e, se torna falando, contando suas histórias, narrando suas experiências. Na narrativa a criança experimenta novas possibilidades [muitas vezes fantásticas – como Preta da Noite] de viver e/ou transformar-se, de libertar-se de ser quem ela é, reconfigurando a vida – a sua vida.
As histórias como mapas de mundos possíveis...
A história de Preta da Noite é um texto inscrito num movimento compartilhado de produção de um processo de (re)existência que não sendo uma representação do real é o real de uma representação. A criança produz suas narrativas no contexto de sua vida cotidiana e nas interações que participa: escuta histórias, em que muitas vezes é ela mesma o personagem principal – seus atos, reações e características são ressaltados, enfatizados, elogiados, julgados, comparados, etc. A narrativa permite a organização da experiência (de si e do outro) numa sucessão de acontecimentos que situam personagens, ações, num cenário determinado. A narrativa surge do e, provoca o, encontro com o outro. A criança narradora identifica-se (ou não) com personagens (humanos, não humanos e humanizados) e vive experiências de confronto, negociação, alianças e sedução do e com o outro (na tentativa de envolvê-lo nas histórias que conta), num movimento aprendente de vir a ser.
A luta com as palavras
Na palavra existe o outro. Minha palavra é sobre a palavra do outro e a questão do outro é a questão do sujeito, pois é impossível ser, sem ser na palavra do outro, o que nos conduz as complexas relações linguagem-subjetividade. Somos tecidos numa rede de relações onde se entrelaçam as várias vozes do auditório de nossas vidas, ou como nos lembra Faraco, “nosso mundo interior é uma arena povoada de vozes sociais em permanente movimento” (1997, p.11). O sujeito constitui-se, nos processos interativos dos quais participa, nas relações intersubjetivas e no reconhecimento recíproco das consciências.
O sentido que atribuímos ao que somos, está intimamente associado às histórias que contamos e a forma através da qual construímos nossas narrativas pessoais – nas quais somos ao mesmo tempo autores, narradores e personagens principais. Os textos que construímos para nossas vidas encontram seu significado tanto nas relações de intertextualidade com outros textos pessoais como nos contextos sociais pelos quais transitamos (Pérez, 2003:34).
A linguagem que marca as trajetórias individuais de sujeitos e sua subjetividade é também lócus de compreensão. Crianças narradoras lutam com as palavras para compreender o mundo em que vivem. A concepção bakthiniana de linguagem nos coloca diante de um outro modo de compreender o mundo – vivo o mundo, sinto o mundo, sou (eu e outro) o mundo.
Crianças narradoras que exercitam a exploração das contrapalavras das diferentes compreensões de si, do outro, do mundo e de si no mundo. Compreensões que engendram o excedente de visão: “a visão do outro nos vê como um todo com um fundo que não dominamos” (1992, p.5), que torna inacessível para o sujeito, experiência do outro em relação a ele próprio, mas que dialeticamente possibilita ao próprio sujeito produzir suas contrapalavras - como fazem as crianças na história Preta da Noite - que mobilizam desejos, sonhos e ações potencializando as diferenças de modo a impedir sua transformação em desigualdades
Na narrativa a linguagem está imersa numa intrincada rede de relações dialógicas, o que nos permite conceber a realidade em permanente transformação. O acontecimento enunciativo é o lócus efetivo da produção narrativa, um espaço ampliado de formação da subjetividade.
A narrativa como contemplação estética
Segundo Bakhtin a comunicação estética engloba três elementos fundamentais: a obra de arte (o texto), o criador e o contemplador.
O que caracteriza a comunicação estética é o fato de que ela é totalmente absorvida na criação de uma obra de arte e as suas contínuas recriações por meio da co-criação dos contempladores e não requer nenhum outro tipo de objetivação. Mas, desnecessário dizer, esta forma única de comunicação não existe isoladamente; ela participa do fluxo unitário da vida social, ela reflete a base econômica comum, e ela se envolve em interação e troca com outras formas de comunicação (1992. p.5).
Concebo apoiada em Bakhtin a narrativa infantil como uma forma de comunicação estética, porque no caso da história da Preta da Noite, emerge de uma situação extraverbal presente nas relações cotidianas das crianças.
Na poética, como na vida, o discurso verbal é um ‘cenário’ de um evento.[...] O discurso verbal é o esqueleto que só toma forma viva no processo da percepção criativa e, conseqüentemente, só no processo da comunicação social viva (1992, p.14).
Para Bakhtin, no mundo estético o autor tem a possibilidade de olhar para o herói como um sujeito situado temporal e existencialmente dentro da obra (no caso a história Preta da Noite). No cotidiano da vida – mundo ético - as crianças, não são personagens que possuem um autor. Sujeitos da linguagem, as crianças, no mundo da vida, produzem sentido para sua existência na interação com outros sujeitos. A narrativa é um evento discursivo que possibilita através da interação, a interlocução de fatores extraverbais ao enunciado. Apoiada em Bakhtin, compreendo as narrativas infantis como uma “oferta de contrapalavras”que emergem do diálogo autor-narrador-ouvinte em que as palavras povoam o contexto cotidiano da vida das crianças.
Para finalizar trago uma outra narrativa, a de Harum, um menino que descobre que todas as histórias vem do grande Mar de Histórias e empreende uma fantástica aventura na busca das palavras, enfrentando as forças tenebrosas da escuridão e do silêncio.
E assim Iff, o Gênio da Água, contou a Harum sobre o Mar de Fios de Histórias, e embora o garoto estivesse se sentindo fracassado e sem esperanças, a mágica daquele Mar começou a exercer um efeito sobre ele. Olhou para a água e reparou que ela era feita de milhares e milhares e milhares de correntes diferentes, cada uma de uma cor diferente, que se entrelaçavam como uma tapeçaria líquida, de uma complexidade de tirar o fôlego; e Iff explicou que aqueles eram os Fios de Histórias, e que cada fio colorido representava e continha uma única narrativa Em diferentes áreas do Oceano havia diferentes tipos de histórias, e como todas as histórias que já foram contadas e muitas que ainda estavam sendo inventadas podiam se encontrar aqui, o mar de Fios de Histórias era, na verdade, a maior biblioteca do universo. E como as histórias ficavam guardadas ali de forma fluida, elas conservavam a capacidade de mudar, de se transformar em novas versões de si mesmas, de se unirem a outras histórias e assim se ornarem novas histórias; de modo que, ao contrário de uma biblioteca de livros, o Mar de Fios de Histórias era muito mais do que um simples depósito de narrativas.
Não era um lugar morto, mas, sim cheio de vida.
Salman Rushdie
Referências Bibliográficas
BAKHTIN, Mikhail (Voloshinov, V. N.). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1999
__________________. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
FARACO, Carlos Alberto. Bakhtin, dialogismo e construção do sentido. Campinas. Editora da UNICAMP, 1997.
GERALDI, João Wanderley. Leitura: uma oferta de contrapalavras. Conferência proferida no 13º Congresso de leitura do Brasil. UNICAMP – Campinas, São Paulo: 2001.
PÉREZ, Carmen Lúcia Vidal. Professoras Alfabetizadoras.Historias Plurais, Praticas Singulares. Rio de Janeiro. DP&A Editora, 2003.
RUSHDIE, Salman. Harum e o Mar de Histórias. São Paulo. Companhia das Letras, 2001.
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