segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Thiago Rodrigues Lopes

Relendo bakhtin[1]: masculinidades e feminilidades: identidades delineadas na dialogia e na responsibilidade dos enunciados cotidianos e oficiais.
LOPES, Thiago Rodrigues[2] - thiagopsi_crchmt@yahoo.com.br
MeEL[3]/UFMT

Os gêneros discursivos não somente “estão” na vida, pois não foram “colocados” lá, eles são as próprias formas pelas quais as pessoas percebem e atribuem sentido à vida. Eles configuram-se e reconfiguram-se socialmente e historicamente nas mais diversas formas de interação e uso da linguagem, que nada têm de adâmicas, e sim, dinâmicas e contextuais. Desta feita, não podemos tomar o gênero como um produto, pois são enunciados que se equalizam dentro de alguma esfera de atividade.
Apesar de organizarem e categorizarem elementos linguísticos e de estabilizarem o reconhecimento de propriedades comuns, eles não se esgotam nas normas e estruturas que perfazem. Também não podemos falar em surgimento do “gênero” e sim, do início dos estudos de gênero, tal que, inicia-se na Era Grega. Os discursos e as declamações em praça pública são figurativos de como a oralidade era valorizada na Grécia Antiga. Assim, a voz, bem como a análise, classificação e hierarquização de suas formações poéticas e retóricas, estão no cerne da Poética de Aristóteles, basilar ao conceito de gênero nas teorias linguísticas clássicas. Para Fiorin (2008):
“Desde a Grécia, o Ocidente opera com a noção de gênero. Ele agrupa os textos que têm características e propriedades comuns. Assim, os gêneros são tipos de textos que têm traços comuns. Na medida em que eles eram vistos como um rol de propriedades formais, fixas e mutáveis, adquiriam um caráter normativo.” Fiorin (2008).

Os gêneros na verdade se realizam no cotidiano, na atividade humana, no dialogismo da interação. Sob a perspectiva bakhtiniana, a cisão entre a noção de gênero e as esferas de ação, ou seja, uma análise descolada dos processos de produção discursiva é um equívoco. No estudo dos gêneros, a mera tipificação, hierarquização e reprodução pela reprodução não imprimem a riqueza do “hibridismo, a heteroglossia e a pluralidade de sistemas de signos na cultura” (MACHADO, 2008).
As sociedades são como grandes teias discursivas/significativas, onde cultura, história e a interação comunicativa são seus elementos, tais interdependentes. Então o foco de Bakhtin, no diálogo e na interação mediada pela linguagem, e não somente na palavra unívoca e uníssona, “abriu caminho para as realizações que estão além dos domínios da voz” (MACHADO, 2008). No entrelaçamento desta teia, podemos encontrar as esferas, as formações ideológicas, as práticas e produtos sociais e todas as formulações discursivas mediadas, tais como o cinema, os animés, os telejornais, os HQs, os fanfics, as tirinhas, dentre outros. Neste sentido, e no intento de melhor compreender o conceito de gênero e esfera, lancemos mão da análise de uma tirinha de Ziraldo publicada ao longo de sua entrevista à Revista Brasileiros, de Junho de 2011. 


Muriel é uma personagem criada e retratada por Ziraldo dentro do gênero “tirinha”, cujo conteúdo entorna a questão da travestilidade no cotidiano. Geralmente é apresentada lidando com as ideologias oficiais, e por vezes subvertendo os pudores e tabus presentes em nossa sociedade e cultura. Analisando, sob enfoque bakhtiniano, a entrevista concedida por Ziraldo à revista Brasileiros de Junho de 2011, inferir que Muriel é Herói de Ziraldo. Ela representa tanto as fantasias transexuais do leitor e quanto as de Ziraldo, sua arte é a plataforma da sublimação de seu desejo.
A tirinha apresenta a interação entre Muriel e algumas pessoas. No primeiro quadro ela é reconhecida pelos interlocutores como Muriel, ou seja, sua identidade de gênero feminina é reconhecida pelo outro, em seguida ela é alvo de uma agressão física e criticada. Nos dois momentos temos atitudes responsivas e responsáveis. Apesar da responsividade não implicar necessariamente em uma atitude responsável, percebemos que os interlocutores de Muriel, ao explicitarem seus enunciados, assumem publicamente suas nuances ideológico valorativas, logo, são responsáveis no contexto comunicativo. Isto retrata que a sua travestilidade hora é aceita, hora não, remetendo-nos aos movimentos das forças centrípetas e centrífugas, ou seja, entre a infra-estrutura e a superestrutura. As forças centrípetas e centrífugas, concernentes ao ínterim da comunicação, traduzem-se em um intensivo movimento de assimilação e ressignificação. Durante a entrevista Ziraldo comenta:
“(...) as travestis ... não fossem também objeto de desejo, de procura comercial, já teria havido um massacre... Existe uma compreensão meio perversa de que é possível o homem se vestir com roupa feminina, desde que ele seja esteja em uma situação de prostituição, desde que haja comércio, serviços sexuais. Não se concebe uma travesti que seja médica ou advogada, compreende-se uma cartunista.

São as práticas de linguagem que fazem a interface entre o privado e o coletivo, o eu e o outro, o ser e o mundo. Schnewly, B. e Dolz (2004), ao discutir a utilização do gênero como meio de articulação entre as práticas sociais e os objetos escolares, alinham a noção de gênero à prática e atividade de linguagem. Eles apontam que as práticas de linguagem são fundamentais à maneira como as pessoas interpretarão os enunciados, e que estas interpretações dependem da “identidade social dos atores, das representações que eles têm dos usos possíveis da linguagem e das funções que eles privilegiam”. O que está em voga é que as inscrições ideológicas, o pertencimento social, a historicidade e o contexto comunicativo subsidiam a atividade da linguagem. Para eles a atividade de linguagem também pode ser considerada como uma ação de linguagem que “consiste em produzir, compreender, interpretar e/ou memorizar um conjunto organizado de enunciados orais ou escritos” (DOLZ, PASQUIER E BRONCKART, 1997 apud SCHNEWLY, B. e DOLZ (2004). Assim, a compreensão, ativa ou passiva, acontecem conforme as pessoas interpretam e dão sentido à suas vivências sociais, culturais e subjetivas, bem como, à medida que elas apropriam-se da história, da cultura, das ideologias oficiais, dos valores sociais e morais, empoderam-se e agem sobre o devir.  
Podemos dizer que Muriel é um projeto discursivo, um compose de signos ideológicos que dão pistas ao outro de quem ela é.  As pistas serão seguidas pelo outro conforme sua rede de valores, crenças e inscrições ideológicas. As expressões da masculinidade, feminilidade e transsexualidade são acima de tudo enunciações, semioticamente ricas, e que vão sendo tecidas desde o momento que são escolhidos os signos (a entonação da voz, as gírias, a cor do make-up, o modo de andar, dentre outros), até a situação concreta da interação, onde entram em cena virtualidades semióticas sob as quais nossa volição não opera com tanta precisão.
Ao longo do tempo, estabeleceram-se normas para ser homem e para ser mulher. A fisiologia figura a forma do ser, se nasce com pênis é automaticamente homem e se nasce com vagina, mulher. As modulações sociais figuram a entonação que esta pessoa expressará: o homem deveria ser bruto, rústico e sistemático e a mulher dócil, permissiva e submissa. Então, a transsexualidade é fronteiriça em relação à normatividade da masculinidade e da feminilidade. Movimento percebido nos processos de transformação corporal, via hormônios ou silicones, e que nos remete à ideia de que suas identidades estão sendo constituídas, não estão dadas, não são pré-discursivas. Conforme vivenciam as práticas sociais, logo, as práticas de linguagem, as pessoas vão aprendendo a manipular certos elementos das situações comunicativas, tal como driblar normativas e subverter nuances valorativas.
As identidades de gênero inscrevem-se no patamar da linguagem e acontecem dialogicamente na interação. Elas são discursivamente produtos e produtoras enunciativos, onde alguém faz e quer reconhecer-se e ser reconhecido, como homem, mulher, como transsexual, dentre outras. Então, as identidades de travestis e transexuais são delineadas por meio de suas transformações corporais voluntárias, de seus contextos sociais e fundamentalmente da contrapartida do olhar do outro, que sempre impele a novos formulações discursivas e novos sentidos. As identidades então, não são fixas ou estáveis. Apesar de reiterar determinadas ideologias ou circular preponderantemente em uma mesma esfera, elas são subversivas e deslocam-se entre as estruturas. É da tensão social e cultural oriunda do movimento das forças centrípetas e centrífugas que é eliciado o preconceito.
A discussão e o reconhecimento dos direitos das pessoas transexuais figuram o movimento das forças centrípetas, da ideologia do cotidiano em direção à ideologia oficial. Então, podemos dizer que algumas expressões do preconceito são movimentos hegemônicos que cristalizam as ideologias em torno das esferas, da superestrutura e infraestrutura. Movimentos pelos quais podemos compreender o preconceito como responsivo aos enunciados de gays, lésbicas, travestis e transsexuais, e também como uma resistência valorativa, logo responsável, que impede a legitimação afirmativa da transsexualidade.

Referências:
BAKHTIN, M. M. [1919]. Arte e responsabilidade. In:_______.Estética da Criação Verbal. Trad. de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
_________.[1952-1953]. Os gêneros do discurso. In:_______.Estética da Criação Verbal. Trad. de Paulo Bezerra, São Paulo: Martins Fontes, 2003.
MACHADO, Irene. Gêneros discursivos. In Bakhtin: Conceitos-Chave. Beth Brait, (org). 4. ed., 2ª impressão. São Paulo: Contexto, 2008.
FIORIN, J. L. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática, 2008.
SCHNEUWLY, B.; DOLZ, J. [1997]. Os gêneros escolares – das práticas de linguagem aos objetos de ensino. In: _______. Gêneros orais e escritos na escola. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2004.
SOLNIK, A. Eu sou uma travesti. Revista Brasileiros. Junho de 2011 Ed. 47. Pag. 60 a 67.


[1] Relendo Bakhtin (REBAK) é um grupo de Estudos coordenador pela professora doutora Simone de Jesus Padilha e que tem a participação de alunos da pós-graduação em estudos de linguagens do MeEL-UFMT.
[2] Aluno do Programa de Pós-graduação em estudo de Linguagens MeEL/UFMT, orientado pela professora Drª Simone de Jesus Padilha.
[3] Programa de Pós-graduação em Estudos de Linguagem/UFMT.

Um comentário:

  1. Pessoal, conforme errata enviada à coordenação do evento,explicitamos o equívoco em relação ao nome do autor da referida tirinha. Onde aparece Ziraldo, deveria aparecer Laerte.
    Atenciosamente, Thiago Rodrigues Lopes

    ResponderExcluir