terça-feira, 11 de outubro de 2011

Amanda Rodrigues Figueiredo e Gabriela Brito de Freitas

MEMÓRIA DISCURSIVA E VIVÊNCIA ESTÉTICA: DO VER AO VIVER O OUTRO PARA A PRODUÇÃO DE SENTIDO
     Amanda Rodrigues Figueiredo (UFPa) – amandarf2004@yahoo.com.br
     Gabriela Brito de Freitas (UFPa) - gabrielabrito_2009@yahoo.com.br

        
Do ponto de vista da experiência, o importante não é nem a posição (nossa maneira de pormos), nem a “o-posição” (nossa maneira de opormos), nem a “imposição” (nossa maneira de impormos), nem a “proposição” (nossa maneira de propormos), mas a “exposição”, nossa maneira de “expormos”, com tudo o que isso tem de vulnerabilidade e de risco. Por isso é incapaz de experiência aquele que se põe, ou se opõe, ou se impõe, ou se propõe, mas se “ex-põe”.
(Larrossa - Retirado do artigo “A leitura de mundo pela leitura de generos discursivos enquanto atividade experienciada”, de Aline Maria Pacifico Manfrim, 2006.)
        
O ser humano é formado – e é formador – de inúmeros discursos constantemente. É um ser comunicativo, expressivo, capaz de emitir e atribuir conceitos, concepções, valores e juízos sobre alguém ou algo. O tempo todo estamos em contato com várias pessoas e com seus discursos, suas opiniões e seus pontos de vista. Esses discursos alheios são imprescindíveis para o processo de construção de sentido sobre o outro e sobre nós mesmos.
Esse intenso fluxo de troca de informações – seja por meio de uma conversa pessoal, virtual, um texto escrito, uma imagem – é uma parte muito importante do processo de construção de conhecimento, ou formação de opinião sobre alguma coisa ou algo. Somos constantemente induzidos a acreditar em pesquisas, reportagens, noticias... Nas várias as formas de tentar influenciar o outro a tomar um determinado posicionamento.
As inúmeras informações que recebemos diariamente são muito significativas para a construção do sujeito discursivo pelo processo da alteridade. Somos “compostos” pelas nossas concepções sobre o mundo e pelas concepções dos outros com que temos contato. Os discursos dos outros influenciam muito na formação das nossas opiniões. Segundo Silva (2007):
         (...) O outro se revela por meio de um papel ativo no processo da comunicação, pois não cabe a ele decodificar uma mensagem, ao contrário, ele é constitutivo do discurso do um. (...) p. 87.

Com isso, o processo de comunicação se dá em uma esfera em que eu sou um sujeito que produz e recebe informações ao mesmo tempo. Um sujeito necessita de um outro para esse processo. E essa troca é bem perceptível e mais ativa, de certa forma, na produção de textos escritos, em que se tem um sujeito que escreve para outros sujeitos, e que tenta, por meio do seu texto, influenciar esses outros. As crônicas que circulam em revistas, por exemplo, são textos escritos por alguém que tem certo prestigio, ou status na sociedade - até para dar mais “valor e credibilidade” ao texto – para uma diversidade de leitores, que provavelmente terão uma nova perspectiva sobre determinado assunto a partir da leitura de um texto desse gênero, vinculado em uma revista de grande suporte.
Essas informações absorvidas em textos como esse, formam a sua memória discursiva. Quando ele – o sujeito – é questionado, instigado a falar ou se posicionar – principalmente se ele não tiver nenhum contato propriamente dito, vivenciado, experimentado com esse objeto – ele recorre à sua memória discursiva para buscar informações guardadas sobre esse assunto. Segundo Guerra e Trannin (2006, p. 145),
Por sua materialidade repetível, determinada pela relação entre a prática discursiva e instituição, o enunciado produz um campo de estabilização, cristalizando sentidos na memória discursiva.

Ou seja, nossa memória discursiva é composta por uma série de informações e discursos cristalizados sobre vários assuntos. Geralmente, essas memórias estão apenas na esfera do discurso e não do ato vivenciado sobre o assunto. O que gera, na maioria dos casos, outros discursos ainda no campo do não contato com o objeto, discursos meramente informativos, por vezes preconceituosos.
Foucault (1971) afirma que, de certa forma, o sujeito teme aquilo que é exterior, aquilo que é externo. Pode-se dizer, com isso, que, ao emitir um juízo de valor sobre algo que não é da interioridade do “eu”, há uma tendência para se posicionar de modo mais informativo, objetivo, pouco específico, sobre aquele assunto. Uma opinião pouco particular, mais generalizada e enraizada em concepções vindas de outros.  
Isso implica dizer que para que a produção de sentidos e de discursos tenha mais validade, mais propriedade, subjetividade não é preciso – somente – ter contato com os discursos vindos de outros. Segundo Machado (2005, p. 141),
         Uma pessoa só vê aquilo que está fora dos limites da visão do outro. Assim, os pontos de vista simultâneos completam-se na formação do todo, o evento dialógico. A composição estética é determinada pela relação dialógica entre as visões complementares, não pela visão em si. 
 
Todo esse contato com o outro, como visto, influencia de modo inevitável nossas atividades estéticas, aqui, especificamente, nossas produções textuais. Se escrevo sem vivenciar esteticamente, o que “fala mais alto” são as minhas memórias discursivas, aquilo que adquiri no decorrer da vida, por meio de discursos do outro. Se escrevo após uma vivência estética relacionada ao meu objeto, minha produção desperta muito mais prazer estético; é muito mais profunda. É assim que o
primeiro momento da atividade estética é a vivência: eu tenho de viver (ver e conhecer) aquilo que está vivendo o outro, tenho de me colocar no seu lugar, como se coincidisse com ele [...]. Devo assumir o horizonte vital dessa pessoa tal como ela o vive; dentro desse horizonte, contudo, há lacunas que só são visíveis do meu lugar [...] (BAKHTIN, 1989, p.30).

Até que ponto pode uma vivência influenciar na vida de um indivíduo? Quando vivenciamos, quando saímos temporariamente de nós mesmos e nos colocamos sob a condição do outro, algo muda. Pouco ou muito, muda. Jamais enxergaremos a mesma situação de formas idênticas, antes e depois da vivência. Vivenciar nos faz, no mínimo, abrir os olhos e conseguir ver aquilo que outrora nos era vetado pelos limites do nosso próprio eu, de nosso próprio mundo, nossas próprias experiências. E talvez nossas experiências, por mais variadas que tenham sido, não consigam alcançar a dimensão que o olhar extraposto é capaz de atingir.
Quando consideramos o olhar que temos sobre os moradores de rua, exemplifiquemos, é incrível a variação de “olhares” que podem incidir sobre esses seres, ao mesmo tempo tão perto e tão distante de nós. Existem aqueles que apenas os olham, mas não os enxergam; não capturam uma essência maior neles que não a de inferioridade, pobreza, necessidade. Se falo ou escrevo sobre moradores de rua sem vivenciar é geralmente isso que acontece: escrevo sobre, a respeito de algo, como um texto informativo qualquer, que diz respeito a um ser ou um evento, sem nada de especial. Quando falo ou escrevo depois de vivenciar, no entanto, chega a ser palpável a diferença de visão que uma extraposição pode nos proporcionar. Pode ocorrer de toda uma concepção, toda uma idéia já formada a respeito dos moradores de rua vir abaixo num só momento em que me coloco no lugar desse outro. Posso alterar completamente meu modo de enxergá-lo, de compreendê-lo, num simples ato de assumir o horizonte dessa pessoa. O que vai alterar é individual, são as “lacunas que só são visíveis do meu lugar”.
Observemos, então, um texto produzido por uma aluna do projeto Entreletras, da UFPA. Observemos a carência estética:
Certo dia entrei em uma igreja muito conhecida e venerada no centro de Belém, a Igreja das Mercês. É um templo grandioso em estilo barroco construída entre os séculos XVII e XVIII praticamente no inicio da fundação da cidade. Podemos encontrar nessa igreja uma arquitetura que resplandece a beleza e a riqueza que a igreja ostentava naquele período.
            A igreja fica em frente a uma praça no centro comercial de Belém, onde encontramos vários prédios históricos, casarões antigos que representa e são registros arquitetônicos da memória da cidade. (...)
Entretanto, o que mais chamou minha atenção foi perceber que o cenário daquela praça foi significativamente alterado. Os prédios antigos – que são tombados – também são tomados pela influência do comércio e pelo descaso com o patrimônio publico e o pior, com pessoas. Uma praça que antes era freqüentada por pessoas de relativa posição na sociedade, agora abriga pessoas – consideradas por alguns indigentes - pessoas a quem foram negados quase todos os seus direitos, ou pelo menos os principais como o direito de viver uma vida digna com as mínimas condições para sobrevivência. Ou pessoas até tem onde morar, mas que vão diariamente para a porta da igreja para pedir esmola.
            Pessoas que não tem ou que preferem não ter contato com seus familiares e que estão expostas às piores situações de descaso, não tem um canto fixo e digno que possam morar, não tem um lugar com um mínimo conforto que possam dormir, sem contar que também não tem nenhuma assistência do estado no que diz respeito a acesso a saúde e a educação. Pelo contrário, são geralmente marginalizados, discriminados e vistos como pessoas que representam um risco à sociedade, por estarem vulneráveis ao uso de drogas e a pratica de ‘coisas erradas’ como roubar para terem com o que comer. (...)
            E o pior é saber que há tantas pessoas que necessitam do mínimo de recursos para sobreviver com o mínimo de dignidade, enquanto outras usam dinheiro publico para enriquecer suas contas particulares e manchar ainda mais a imagem da política no país.
(Texto escrito por aluna do projeto Entreletras – UFPA, 2011)

Ao lermos o texto acima temos a sensação do texto dissertativo, uma apresentação de opiniões sobre uma situação, aqui, sobre os moradores de rua em Belém. Por não ter havido extraposição, é possível perceber a carência de estética na produção, como se a aluna estivesse apenas contando o que viu num dia em que olhou um pouco ao seu redor. Ela olhou, mas só sob sua visão, sem sair de si e se colocar no lugar do outro, sem se aprofundar na vivência.
Agora, observemos os fragmentos abaixo, escritos por alunos do mesmo projeto e instituição, no mesmo período, após vivência com os moradores de rua:
“Pergunto para que serve a ciência e suas tecnologias, a caridade de algumas instituições religiosas e até mesmo de pessoas que se consideram religiosas, e quem realmente faz uso dos direitos humanos? Para que serve uma esmola dada as pressas, a esmola dada por pena? E será que essas pessoas que perambulam pelas ruas necessitam somente de comida e dinheiro?” (Ivone Lopes)

“Ele, aos nossos olhos, é visto, na maioria das vezes, como parte do concreto, do asfalto, do chão em que ele senta, do banco em que ele deita; respeitá-los, prover a eles a dignidade da pessoa humana é mudar essa visão, mas é tão mais simples permanecer com o que já estamos acostumados, de nos acomodarmos com o que não nos afeta diretamente, e o mendigo continua sendo o que sempre foi... Parte do ambiente em que não damos importância.” (John Müller)

“A minha escolha foi abrir meus braços para acolher meus próprios horrores. Afinal, resolvi me indagar: como poderia passar indiferente a um alguém que esqueceu ser gente? Será que isso aconteceu quando ninguém mais a olhou como tal? Ou melhor, será que de tanto os outros a olharem como animal ela acreditou?” (Alessandra Vasconcelos)

Os trechos acima recortados foram escritos por alunos que praticam a extraposição e buscam aprimorar seu olhar estético, de modo a aprimorar sua forma de escrever e ressignificar seu modo de olhar o mundo e dele extrair suas concepções.
A vivência estética, assim, propicia, ao leitor – autor, um contato maior – e “experienciado” – com seu objeto em questão. O que nos faz afirmar que para conhecer e ter habilidade para falar sobre o outro é necessário não apenas algumas considerações vindas de discursos alheios, mas também uma relação de extraposição. Um processo em que eu entro em contato – direto – com o outro e passo pela experiência dialógica de ser o outro, sem deixar de ser eu e retirar da vivência estética minhas próprias considerações sobre meu objeto – ético e estético – de assunto. Somente me colocando no lugar do outro poderei melhor enxergar o mundo, poderei melhor conhecer a mim mesmo, pois “não é na categoria do eu, mas na categoria do outro que posso vivenciar meu aspecto físico como valor que me engloba e me acaba” (BAKHTIN, op. cit. 39).

REFERÊNCIAS
GUERRA, Vânia Maria Lescano e TRANIN, Juliana Batista. Discurso midiático: a alteridade e a construção da identidade dos “meninos de rua”. In: Discurso, alteridades e gêneros. São Carlos: Pedro e João Editores, 2006.
MACHADO, Irene A. Os gêneros e o corpo do acabamento estético. In: BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin, Dialogismo e construção do sentido. São Paulo: Editora da UNICAMP, 2006.
SILVA, Michele Viana da. O principio de alteridade: a respeito da natureza dos enunciados e do sujeito. In: O espelho de Bakhtin. São Carlos: Pedro e João Editores, 2007.

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