segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Márcia Fernanda Carneiro Lima, Heloísa Josiele Santos Carreiro

Olhos de Criança: um convite a ver o mundo
Márcia Fernanda Carneiro Lima - UFF
Heloísa Josiele Santos Carreiro – UFF

 “Olhos de menino”.

                                                                         Foto: Márcia Fernanda Carneiro

 Este o chamado que gostaríamos de vos fazer nesta breve escritura. Convidar a desvendar e descobrir outras possibilidades de ver o mundo e as pessoas que nele se espalham, com seus diferentes modos de ser, de saber e de estar; revelando parte do que está coberto pelo manto de nossas experiências e que nos limitam a ver apenas o que conhecemos.
Nossa intenção é tentar articular as inquietações que nos provocaram este encontro - sobre esta nova maneira de ver e pensar os diferentes conhecimentos - , com os diálogos que pudemos tecer a partir dos conceitos Bakhtinianos sobre enunciados complexos e multifacetados que se articulam com as imagens que se constroem em outras artes, que são elas a fotografia e as narrativas.
Para tanto, nosso discurso terá como prato distintas imagens, impressões e sentimentos que se deram nos caminhos que percorremos através das diferentes formas de comunicação que as crianças tecem no mundo, dos professores e autores que em nós se inscreveram como um discurso coletivo de vozes que me tocam afetivamente.
Aceitar o convite a ver sob distintas perspectivas, de ver o que ainda não vemos implica em abrir mão de nossas certezas e assumir nossos ainda não saberes. É um processo coletivo, mas que nasce individualmente se cada um se permitir deixar ver com o outro.  Por isso trazemos a imagem: “Olhos de menino” e através dela tentamos trazer a cena tantos outros olhares lançados por tantos outros meninos e meninas que caminham para o momento do encontro pedagógico e que capturada, nos captura. O que vê o menino? Que olhares lança ao mundo? Esta imagem é como nos ensina Amorim (2011) uma foto quase grafia de um olhar que interroga e inquieta. É um olhar que se descola dele mesmo num movimento exotópico de distanciamento de si, para si.

Narrativas da cumplicidade: o não-álibi e a resposividade
A tarefa do dia era cobrir à lápis de escrever o contorno (previamente traçado pela professora) das formas geométricas...e aos poucos, nas folhas de papel ofício que as grandes mãos da professora sobrepunham, uma a uma ia surgindo: triângulo, retângulo, cubo... Enquanto as pequenas mãos da aluna se ajeitavam sobre a mesa, num misto de curiosidade e inquietação a espera do papel, que para ela parecia ser a promessa de algo novo. Depois de recebida a folha o próximo passo era contornar o já contornado [à lápis] com cola e barbante. Em seguida, quem fosse “merecedor” poderia colorir o espaço interno das formas com guache, vermelho ou verde. Aos não merecedores caberia apenas o uso do giz de cera. A essa altura as mãozinhas pareciam não se conter ao encontro da tinta geladinha e escorregadia. E a menina de cabelos negros impecavelmente presos como um “rabo de cavalo” que emolduravam seu pequeno rosto executou com presteza o comando, contornou e contornou novamente, e com afinco foi merecedora de colorir com tinta. O fez com habilidade e rapidez. Ficou bonito e caprichado. Mas em aproximadamente vinte minutos, tudo acabou... Esta era a única atividade do dia. “Essa turma é assim, você está vendo, eles não querem saber de nada, não adianta tentar nada de diferente” me dizia a professora enquanto eu fitava a menina que levemente movia seu olhar, aparentemente ao nada, e lentamente fechava suas pálpebras num profundo piscar de olhos, como se estes, naquele momento, fossem seus únicos poderes. Esta cena até hoje me atormenta. Lembro-me também dos seus longos e fartos cílios negros que imóveis protegia seus olhos de olhar um lugar, supostamente, nenhum.

Esta imagem se faz para mim através da narrativa uma grafia quase foto. Este movimento só me foi possível no sentido bakhtiniano de transcrição e transcriação (BAKHTIN,2010). O primeiro se aplica à reprodução escrita ou oral de algo que já existe e que reproduzimos sem inferir em sua forma, situa-se no campo da cópia. Já o segundo implica um movimento de apropriação da ideia e produção autoral que chama o sujeito a interferir no que já existe num movimento de deslocamento da transcrição para a narrativa na medida em que traz outras vozes ao diálogo. A transcriação abre às diferentes possibilidades de criação e intervenção na feitura dos saberes e através dela pude atribuir um sentido próprio ao que de desenrolou diante de meus olhos. Para além de transcrever a situação pude transcriá-la a partir das minhas percepções. Esse processo de criação em geral é bloqueado na e pela escola na medida em que quase tudo aquilo que se produz em seu interior está marcado pela lógica racionalista. Traçar sobre o já traçado, colorir dentro dos limites, escrever sobre o que já foi escrito.
Esta cena sutil causou em mim um grande impacto. No mesmo momento me lembro do que se passava em minha cabeça, ao olhar a menina, eu pensava: das quatro horas de aula – que na prática, se configuram em muito menos que isso, visto que delas, boa parte se subtrai em nome da manutenção da ordem e disciplina – apenas vinte ou trinta minutos justificaram sua presença. E se este não foi apenas um evento esporádico e sim o que representa o dia a dia naquela sala de aula? E se esse fazer “pedagógico”, mostra o que de fato acontece na maioria das escolas, todos os dias? Comecei então, a  imaginar essa menina revivendo esta história consecutivamente nos anos de escolaridade que ainda estavam por vir e a multiplicar o tempo perdido.
Episódios como este me fazem entender que na maioria das vezes não compreendemos a aprendizagem com uma fazer estético [no sentido bakhtiniano], ao contrário entendemos a aprendizagem como algo quase que mecânico e por isso, como aproximação nos balizamos nos estágios, nas fases e nos modelos. Estética nesse sentido serve a ideia de transformação, transgressão e ruptura, aprender a escrever pelo viés do domínio da codificação e decodificação dos caracteres é um fazer de ordem técnica, por outro lado apreender a escrita ao passo que interferimos nela, modificando, transpondo e reutilizando-a é um fazer estético.
Mas ao contrário de ser esta, uma triste história, a menina mostrou a mim uma beleza quase imperceptível. Uma beleza INvisível. Era linda a sua presença. Porque era a presença da resistência, da esperança e da coragem. Apesar de qualquer coisa, ela estava ali, disposta, a procura, a espera. Uma menina de corpo frágil, pele morena, de uniforme, com pulseirinhas de plástico coloridas ornando seu braço, com seu estojo e material escolar dispostos.
Estar no momento desta cena fez de mim cúmplice no ato. Neste momento Bakhtin nos chama à responsividade que para ele se configura no que fazemos com aquilo que nos acontece, com a resposta que damos aos chamados do mundo, pois nele estamos em meio a tudo mais e por isso não temos álibi.

Movimentos de exotopias: narrativas do vivido
            O que trazemos neste momento para a discussão é uma nota de campo de uma das pesquisadoras[3], co-autoras deste texto, onde sua proposta de investigação se debruça a estudar as vozes infantis e a dinâmica pedagógica. Nesta proposta a pesquisadora é interpelada a fazer o movimento de exotopia, tentando perceber quais são as múltiplas vozes que lhe atravessam ao dialogar com a criança e as tantas outras vozes que junto com ela lhe narram o mundo. 
            Logo após o horário de almoço de um dia nublado do mês de outubro de 2009, a professora Cristina, do grupo da Educação Infantil III, me trouxe Luna, uma menina de cinco anos, que pela manhã fica sob sua responsabilidade e pela tarde sob a responsabilidade da educadora Letícia. Cristina a trouxe em minha sala falando que a menina não a queria obedecer no refeitório e que jogou a cadeira no pé da educadora Letícia, contou ainda que quando foi chamada a sua atenção, Luna ficou dizendo que não iria obedecer ninguém e ficou socando a mesa e por isso estava sendo encaminhada a minha sala, segue abaixo o relato que fiz da situação vivenciada:
           
A professora Cristina a deixou em minha sala e saiu, perguntei a Luna por que ela estava socando a mesa e por qual motivo havia jogado a cadeira na Tia Letícia e estava dizendo que não iria obedecer ninguém.
                Luna contou-me que estava socando a mesa porque estava irritada com as tias, que não acreditavam nela e, que por isso, não as iria obedecer mais, pois ela estava do outro lado da cadeira e como iria jogar a cadeira na tia Letícia e que havia sido outro menino de sua turma de nome Thayllan. Como Thayllan é um menino bastante travesso tanto quanto Luna, fiquei na dúvida sobre quem havia de fato cometido o ato e pedi para que Luna chamasse o Thayllan. O menino chegou a minha sala rindo, perguntei do que estava rindo ele disse que era de uma coisa que o Gabriel, seu amigo de turma, havia lhe contado. Então, lhe perguntei se ele tinha alguma coisa a ver com história de acertar a cadeira no pé da Tia Letícia, ele disse que não.
                Luna falou que ele estava mentindo, pois ela estava do outro lado com os pezinhos juntos e, que não havia como ela derrubar a cadeira, mas que ele sim, estava perto da cadeira, e que ela havia visto que tinha sido ele. Os dois começaram uma discussão, um acusando o outro.
                Falei aos dois assim: acho que vou deixá-los aqui até que um dos dois resolva me dizer a verdade sobre quem derrubou a cadeira no pé da tia Letícia. Thayllan logo reclamou que isto era injusto, pois ele não havia feito nada e que Luna estava mentindo para ele ficar ali comigo e não ficar brincando com os colegas. Eu pedi, então, para que me dissessem qual dos dois havia feito o ato.  Pontuando-lhes que já estava feito e que eu queria, apenas saber o motivo, se foi sem querer ou de propósito, para podermos conversar, pedir desculpas, tentar resolver.
            Luna me disse que não havia sido ela, quando mentiu em casa para sua mãe, esta olhou bem nos seus olhos, e ela riu, porque não havia conseguido mentir. Ela me disse que sua mãe havia dito que para descobrir mentiras é só olhar nós olhos, pois se o outro rir é porque está mentindo. E me lembrou que Thayllan entrou rindo no começo de nossa conversa.
Eu fiquei pensando e falei que sim, era verdade, eu me lembrava de que ele estava rindo quando entrou na sala, mas já havia me dito o motivo de seu riso. Então, disse a Luna em um tom irônico de que ela poderia ter aprendido a segurar o riso e a mentir. Ela disse que não sabia fazer isto. Falei que iria experimentar o método de sua mãe, mas que iria começar por ela e, solicitei que a menina viesse bem pertinho de mim. Disse assim: Luna olhe dentro dos meus olhos e me diga se foi você ou não quem jogou ou derrubou a cadeira.
Enquanto  Luna caminhava para mim antes mesmo de me olhar nos olhos teve uma crise de risos que não agüentou segurar, na mesma hora repreendi a menina  dizendo que o método de sua mãe funcionava e perguntei por que ela estava rindo. Tive uma crise de riso junto da situação na qual a menina se encontrava e não consegui me manter no lugar de uma “autoridade séria”. Ela envergonhada, e agora entre riso e com expressões de quem estava se preparando para chorar, disse-me que havia sido ela. Mas que ela não havia jogado de propósito, que havia esbarrado sem querer e que caiu no pé da tia Letícia, que nem a deixou explicar de tão zangada que ela estava.
A conversa acontecia na presença do Thayllan, e disse-lhe mas você ia acusar seu amigo, estava colocando a culpa nele que coisa feia você estava fazendo. Comentei que ainda bem que o jeito de descobrir mentiras de crianças da mãe dela funcionava, senão o Thayllan iria ficar ali ganhando bronca minha sem ter feito nada. Falei que queria que ela pedisse desculpas ao colega, ela assim o fez, eu também  pedi desculpas ao menino, e pedi que ele saísse.
Dei uma bronca nela e a deixei em minha sala comigo, propondo que refletisse um pouco sobre o que havia feito, falando que eu estava muito zangada com ela. Enquanto isso, eu tentei ler alguns textos. Na verdade não consegui ler, estava pensando como eu quase fora enganada  pelo poder da palavra daquela menina que quase me confundiu; da situação em que Thayllan escapou pela autodenuncia de Luna.
Depois de alguns minutos, perguntei a Luna o que ela achava que eu deveria fazer com a situação de mentira dela comigo e desobediência dela no refeitório. Ela sugeriu que eu contasse a mãe dela, mas que também ensinasse as tias a acreditar nas crianças, pois ela ficou desobedecendo  porque as tias não quiseram acreditar nela, que havia sem querer que ela derrubara a cadeira. Falei que ficava difícil pedir para que alguém acreditasse nela  depois da mentirada que ela havia me contado, mas que iria pensar no assunto. E solicitei que voltasse ao seu grupo.

A voz da menina traz as tantas outras vozes que com ela compartilham a experiência de existir no mundo. E somente na pista das tantas vozes que com ela falam [como a de sua mãe], eu pude chegar a descobrir caminhos para melhor entender o seu movimento de exotopia, que ao contar um mentira se lança e leva a todos que com ela compartilham aquela narrativa ao anuncio de “grande-tempo”, onde cada um de nós pode se entender como autor de discursos, tenham sido eles reais ou não.
Algumas vivências cotidianas com as crianças, por exemplo, no caso entre Luna e Thayllan, revelam-me sobre como é fácil, a partir deste lugar ser envolvida pela palavra de uma criança, que tão bem já sabe pensar e falar sobre o mundo. Sinto necessidade de aprender a ser uma coordenadora diferente na minha relação com as crianças e com as educadoras. Pensar em uma relação que não se configure como alguém que faz parte de um tribunal, não quero ser parecida como uma juíza de pequenas causas, que procura dar conta de conflitos que os educadores não se sentem capazes de resolver, quero aprender a pensar com elas soluções e não ser o sujeito para quem se transfere o que elas não compreendem e que muitas vezes nem mesmo eu tenho uma resposta para o problema momentaneamente.  Diante desta constatação, nasce o desafio de construir uma relação que não seja hierárquica, para pensar os problemas cotidianos da creche organizados por outras dinâmicas onde eu não seja a juíza.
Assim, questiono-me sobre como construir um poder que seja compartilhado entre os sujeitos da creche, onde não haja constantes situações de “encaminhamentos judiciais”, simulações ao “ato de detenção temporária” ou algo parecido a um julgamento em tribunal, tirando o espaço da secretaria da creche deste o lugar primordial onde são convocados todos os envolvidos para serem argüidos, e então dada uma sentença.
O relato que faço sobre a vivência que tive com Luna se aproxima das reflexões que Wesley me possibilitou e que estão relacionadas sobre nossas intervenções pedagógicas para com as crianças no nosso cotidiano da creche.
Quando Luna conta suas histórias para tentar se livrar da situação de acusação das educadoras, a menina faz um uso manipulativo das palavras, construindo uma narrativa para se proteger das acusações, entra no jogo cotidiano de discursos, a partir de conversas que já ouviu ou vivenciou, mesmo não conseguindo sustentar sua própria trama discursiva e caindo em sua própria armadilha.
Luna denuncia uma intolerância com o ato de ouvir que estamos vivenciando em nosso espaço de educação infantil. A menina diz que criou toda trama, porque não lhe foi dada a chance de explicar-se. Partindo da lógica da menina toda sua análise discursiva se desenha porque não houve uma disposição se quer a sua escuta, uma oportunidade de que explicasse o que havia acontecido. Na lógica do adulto há uma construção moral de que a mentira não é aceitável, oficialmente, na relação intersubjetiva mesmo com as crianças, mas assim como os adultos, as crianças algumas vezes se utilizam dela, mesmo que socialmente isto não seja aceitável no processo de educação para o convívio social dos humanos. Contudo, nesta pesquisa é importante pensar um dos motivos pelos quais a mentira da menina, seu movimento de pensar exotopicamente se tece e que coisas eles no levam a pensar.

Uma arena de questões que não se fecham, mas se abrem para novas questões
                As experiências vividas e compartilhadas nestes relatos, seus atravessamentos teóricos e a polifonia de vozes que nos acomete e em alguns momentos nos assombram em nossas pesquisas, ficam mais evidentes quando compartilhamos o vivido. Fazer este movimento é adentrar em uma arena de questões que nos convidam a refletir, não somente o que trazem nossas notas de campo, mas também elementos que transcendem as vozes evidentes que nela se comunicam. Perguntar para nós é um passo para experienciar o movimento exotópico, que nos permite uma aproximação de narrativas do “grande-tempo”.
            As questões que nos abrem são: Como dialogar com as múltiplas vozes que atravessam os discursos da pesquisa com o cotidiano? Como se apropriar do movimento exotópico para se aproximar daquilo que sentimos mas que fica em um campo invisível, ou inominável? Como entender o movimento de responsividade em nossas pesquisas e seus atravessamentos éticos na pesquisa polifônica? Quais são as perspectivas estéticas que orientam nossas questões de pesquisa?

Referências Bibliográficas:
AMORIN, Marília. Cronotopo e exotopia. In: BRAIT, Beth (org). Bakhtin: outros conceitos-chave – São Paulo: Contexto, 2008. p. 95-114.
BAKHTIN, Mikhail. A arte e responsabilidade. In: Estética da criação verbal. São Paulo: WMF Martins fontes, 2010. 5ª Ed. P. 33-34.
________________. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
________________; VOLOSHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2006



[1] Professora-Pesquisadora da Pós-Graduação da Universidade Estácio de Sá – JF. Mestranda na Universidade Federal Fluminense – RJ.
[2] Professora da Rede Municipal de Petrópolis – RJ. Doutoranda em Educação pela Universidade Federal Fluminense – RJ.
[3] Heloisa Josiele Santos Carreiro, doutoranda em Educação na UFF.

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