segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Marina Haber de Figueiredo

A constituição dos sujeitos estéticos de Manoel de Barros
Marina Haber de Figueiredo
GEGe/UFSCar

O conceito de dialogismo pode ser entendido como o cerne de toda a teoria desenvolvida por Bakhtin e o Círculo; isto coloca a relação dialógica/ ideológica entre sujeitos responsivamente ativos como o centro da concepção acerca de dialogia e também dos estudos linguísticos sobre sujeito.
A dialogia é o embate de valores ideológicos presente em todo e qualquer signo, a palavra é entendida por Bakhtin como um signo, e por isso dotada de ideologia. A palavra é uma arena, um palco de lutas em que se instala a voz do outro. “A segunda voz ao instalar-se no discurso do outro, entra em hostilidade com o seu agente primitivo e o obriga a servir a fins diametralmente opostos. O discurso se converte em palco de luta entre duas vozes” (Bakhtin, 1997, p.194).
As palavras do outro, revestidas de uma nova valoração, tornam-se bivocais pela nova compreensão que recebem e instalam uma relação dialógica com as palavras do outro. Ao mesmo tempo em que se opera uma subversão da autoridade da palavra do outro, há a construção de novos valores de autoridade nos outros discursos.
“As palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios” (Bakhtin, 2006, p. 42).  Assim, é possível revolver camadas da vida social ao desfazerem-se supostas verdades e raciocínios, ao dessacralizarem-se valores instituídos e revelarem outras faces do mundo, como acontece nos discursos proferidos pelos sujeitos barrosianos.
Para Marchezan,
a palavra diálogo (...) é bem entendida, no contexto bakhtiniano, como reação do eu e do outro, como ‘reação da palavra à palavra de outrem, como ponto de tensão entre o eu e o outro’, entre círculos de valores, entre forças sociais (2006, p.123).

E é por meio dessa tensão que verificamos a presença do outro, daquele sujeito ou ponto de vista que é diferente do eu. Para o Círculo, o conceito de diálogo contempla a ideia de um sujeito inacabado e incompleto, pois é no movimento dialógico entre duas consciências distintas, no reflexo e na refração de valores ideológicos que o homem marca a sua assinatura na existência. E é na palavra, no signo ideológico, que se dá o embate de valores e se percebe toda sutileza de transformação, de transmutação e transgrediência.
Para Bakhtin, o uso que uma comunidade faz de um código, com suas nuances ideológicas, ou o que ele denomina de “código ideológico de comunicação”, forma uma “comunidade semiótica”. Nesse sentido, os discursos constituem os sujeitos que, por sua vez, tecem os discursos. Assim, pode-se dizer que a linguagem é tão construtora da “realidade” social quanto os elementos da ordem do sensível (e o que é sentido e percebido, é semiotizado, ou seja, quando há o homem, há semiotização. Se o homem percebe, o que é percebido é semiotizado), haja vista que as relações sociais são realizadas pela e na linguagem, bem como os lugares sociais adquirem existência na medida em que estão inscritos numa rede discursiva. Com a literatura não é diferente, uma vez que é linguagem. E linguagem elaborada.
A literatura permite ver na linguagem o que a linguística da comunicação direta, do seu ponto de vista totalizador, para o qual somente existe a língua como sistema unitário, não pode apreciar, isto é, a palavra outra, não somente a palavra outra-alheia, que requer, além da codificação, a compreensão respondente, mas também as outras vozes que ressoam na palavra de um “mesmo” sujeito. A palavra se dá como dialógica, interiormente dialógica (PONZIO, 2008, p.62).

De acordo com Paula (2008), sempre se deve considerar que o signo, para Bakhtin, é o “signo ideológico”, uma vez que a linguagem é plurissignificativa e se encontra sempre grávida de sentidos e valores ideológicos que servem a um dado sujeito e ao grupo social ao qual pertence. Logo, a linguagem não é estéril, abstrata, mas viva. Daí a responsabilidade e responsividade do sujeito do discurso, pois ele pode, com seu dizer enunciativo, construir representações veridictórias.
O signo representa (e organiza) a realidade (sígnica e não sígnica) a partir de um determinado ponto de vista valorativo, segundo uma determinada posição, por meio de um contexto situacional dado, por determinados parâmetros de valoração, determinado plano de ação e uma determinada perspectiva na práxis.(...) O ponto de vista, o contexto situacional  e a perspectiva prático-valorativa estão determinados socialmente: o ideológico, que coincide com a signicidade, é um produto inteiramente social (Ponzio, 2008, p.109).

O entendimento do Círculo sobre ideologia é bem diferente da noção de falsa consciência ou “pensamento distorcido” que perpassa a teoria marxista. Cumpre informar que este pensamento, formulado por Marx e Engels, refere-se não a uma definição geral de ideologia, mas a uma particular, a ideologia burguesa, no momento em que se percebe não mais como classe revolucionária, mas como classe dominante e, por isso, interessada em manter a divisão de classes e ocultar as contradições do modo de produção capitalista. 
“Por ideologia entendemos todo o conjunto de reflexos e das interpretações da realidade social e natural que têm lugar no cérebro do homem e se expressa por meio das palavras (...) ou outras formas sígnicas” (VOLOSHINOV apud PONZIO, 2008, p. 114). Assim, para Bakhtin e o Círculo, o signo sempre possui um acento valorativo e que não coincide somente com a expressão de uma ideia, mas com a expressão de um ato determinado. “O ser, refletido no signo, não apenas nele se reflete, mas também se refrata. O que é que determina essa refração do ser no signo ideológico? O confronto de interesses sociais nos limites de uma só e mesma comunidade semiótica” (BAKHTIN/VOLOSHINOV, 2006, p.47).
De acordo com Miotello (2007, p.167-172), a ideologia pelo viés bakhtiniano é entendida como a expressão, a organização e a regulação das relações sócio-histórico-materiais da humanidade, e, entendida desse modo, a ideologia oficial não existe, a não ser em jogo, em relação com a do cotidiano, intermediada pelos signos e pela capacidade de estarem presentes, necessariamente, em todas as esferas de atividade nas quais os signos se revestem de sentidos próprios a serviços de cada grupo social.
Em modelos de sociedade como a atual, com desigualdades e contradições, as ideologias respondem a interesses diversos e contrastantes, que oscilam entre os interesses do poder hegemônico e, neste momento, apresentam um caráter mais estável e reprodutor da ordem social, e entre os interesses de outros grupos sociais, que muitas vezes buscam romper com os ditames da ideologia oficial. Para Miotello (op.cit.,p. 173), pode-se entender a ideologia do cotidiano “como o nascedouro mais primário da ideologia, e onde a mudança se dá de forma mais lenta, pois os signos estão em contato direto com os acontecimentos socioeconômicos”. É a partir da ideologia do cotidiano que se efetuam algumas transformações parciais ou totais nos sistemas ideológicos oficiais. Já a ideologia oficial é o meio em que “circulam os conteúdos ideológicos que passaram por todas as etapas da objetivação social e agora são parte do poderoso sistema ideológico e, portanto mais estabilizado e aceito pelo conjunto social” (id,174).
Em suas formulações acerca do sujeito e de seu agir, Bakhtin (2006) mostra o valor da categoria da simultaneidade – a articulação dos momentos que constituem os fenômenos. No agir do sujeito estão integrados vários aspectos, explicitados por Sobral (2006, p. 107) como “aspectos psíquicos da identidade relativamente fixada (...) advindos da internalização de suas relações, desde sempre ideológicas, com os outros no mundo concreto.”, “aspectos sociais e históricos do ser-no-mundo do sujeito”, “avaliação responsável que o sujeito faz ao agir”.
            De acordo com Sobral (idem), se os aspectos psíquicos, sociais e históricos marcam certa primazia sobre (nunca dominância) o repetível, a avaliação responsável é o espaço por excelência da irrepetibilidade: cada ato (sempre enunciativo) é único, ainda que compartilhe com os demais uma certa estrutura.
A conceituação de sujeito para Bakhtin se aproxima da concepção de Vygotsky: o sujeito é agente de sua consciência e a consciência depende da linguagem para formar-se e manifestar-se. Na verdade, o sujeito (eu) se constitui por meio do eu, a partir do outro. Em outras palavras, os sujeitos se constituem por meio do(s) outro(s), dialogicamente, numa interatividade complexa e dinâmica, com suas próprias orientações ideológicas.
 Nesta perspectiva, os sujeitos dialógicos dos textos de Barros se constituem pelo que pode ser denominado por sujeito adulto-criança e é este sujeito que se compõe em embate com o sujeito adulto do universo hegemônico. Desse ponto de vista, pode-se dizer que o sujeito da arquitetônica barrosiana se constitui por três sujeitos num só: o sujeito adulto “eu”, deslocado do mundo adulto, projetado em sua infância; o sujeito adulto “outro”, representante do mundo hegemônico (a quem “Barros” contradiz); e o sujeito criança, um outro “outro” existente no interior do sujeito adulto “eu”, em quem ele se projeta, e a partir do qual afirma sua voz no texto, como “narrador-personagem” adulto e criança ao mesmo tempo – eu e outro em embate ao outro, mundo adulto hegemônico, como pode ser visto no seguinte trecho.
Mas eu estava a pensar em achadouros de infâncias. Se a gente cavar um buraco ao pé da goiabeira do quintal, lá estará um guri tentando agarrar no rabo de uma lagartixa. Sou hoje um caçador de achadouros de infância. Vou meio dementado e enxada às costas a cavar no meu quintal vestígios dos meninos que fomos. Hoje encontrei um baú cheio de punhetas ” (BARROS, 2003, XIV).

Neste trecho, o sujeito não é mais criança (“guri”). Seu tempo de infância se foi e ele diz que “Sou hoje um caçador de achadouros da infância. Vou meio dementado e enxada às costas cavar no meu quintal vestígios dos meninos que fomos.” Adulto “dementado”, assim é que ele se caracteriza. “Dementado” que, para sair de sua demência, entendida como a lógica cartesiana que rege o mundo racional, precisa lembrar o que viveu na infância, suas descobertas, o sujeito (feliz? livre? não-dementado) que foi num outro tempo-espaço. Em suas buscas, anuncia a de “hoje”: no final do texto, explicita que o que lhe importa (seu tesouro guardado, escondido e achado, agora, depois de adulto, pela memória) é o prazer (“Hoje encontrei um baú cheio de punhetas”).
O quintal que aqui se apresenta opõe-se ao espaço da cidade preconizado em outros textos, como é o caso de “Apanhador de Desperdícios”. A cidade representa o excesso de informação, de velocidade, de promessas tecnológicas e de inversão de proporções geográfico-espaciais, pois quanto maior a cidade menor o espaço disponível para a liberdade, a brincadeira, as (re)descobertas, a vida, os “achadouros” (as cidades urbanas se tornam verticais e com menos quintais, já que nas sociedades urbanas os espaços são cada vez mais institucionalizados). Vale ressaltar que essa característica institucional da sociedade urbana contemporânea encontra-se também presente nas áreas rurais, porque esse modus operandi e vivendi, valorado pela sociedade urbana, dissemina-se por vários grupos sociais. Uma forma de se prestar atenção a essa proliferação do pensamento ocidental é verificar os discursos sobre o agronegócio, que tentam, implantar, no campo a lógica administrativa dos grandes centros urbanos de negócios.
A relação sujeito, espaço e tempo do texto evidencia a forma como a construção de contradiscursos é composta por meio da elaboração estética/poética do mesmo, e, também como é constituída especificamente em Barros, na relação eu/outro. Nos textos apresentados, o que se tem é um discurso a atribuir utilidade ao que é inútil (para a sociedade ocidental atual), como fica nítido no texto “Sobre importâncias” (2006, IX):
Assim um passarinho nas mãos de uma criança é mais importante para ela que a cordilheira dos Andes. Que o osso é mais importante para o cachorro que uma pedra de diamante. E que um dente de macaco da era terciária é mais importante para os arqueólogos do que a torre Eifel.

Ao dizer que a importância de qualquer coisa é relativa e depende única e exclusivamente da relação EU/OUTRO para que se estabeleça uma “quantificação” ou uma verificação sobre o grau de importância tendo em vista a valoração de um sujeito ativo, se é que se pode pensar em quantificação de importância, é aí que reside o olhar transgressor desse sujeito, pois ao afirmar que um passarinho pode ser mais importante que a cordilheira dos Andes ou que um osso pode ser mais importante que um diamante, esse sujeito quebra um discurso valorativo que tende a ser monológico porque trabalha com viés que busca encobrir outras formas de se enxergar a constituição da vida em sociedade.
 E para se ter um maior entendimento de como se processa a refração e construção desses discursos alternativos, além de se trabalhar com as categorias bakhtinianas de cronotopoia, exotopia e carnavalização, faz-se necessário também trabalhar a concepção de infância, bem como a forma como o autor-criador busca construir modos de se transgredir a pluralidade constitutiva do discurso hegemônico, privilegiando o erotismo e a contemplação, na relação sujeito-mundo-sujeito e do/no texto literário, a partir da perspectiva de Bakhtin/Volochinov (mimeo, s/data), pois leva a refletir sobre a interação dialógica (responsiva e responsável) eu/outro.

Referências Bibliográficas
___. Memórias Inventadas: A Infância. São Paulo: Planeta, 2003.
­___. Memórias Inventadas: A Segunda Infância. São Paulo: Planeta, 2006
­­___.Memórias Inventadas: A Terceira Infância. São Paulo: Planeta, 2008.
___. Poesia Completa. São Paulo: Leya, 2010.
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___. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 2006.
BAKHTIN, M. Problemas da Poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.
___. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira, São Paulo/ Brasília: Hucitec/UnB, 1987.
___. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos: Pedro e João, 2010.
___. Questões de literatura e estética. São Paulo: UNESP, 1998.
___. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
MARCHEZAN, R. “Diálogo”. In: BRAIT, B (org.). Bakhtin: outros
conceitos chaves. São Paulo: Contexto, 2006, pp.115-132.
MIOTELLO, V. Ideologia. In: BRAIT, B(org.). Bakhtin: conceitos chaves. São Paulo: Contexto, 2007, p.167-176).
PAULA, L. de. “O dizer estético e (anti)ético da mídia: a veridictoriedade à luz da perspectiva bakhtiniana”. In: OSÓRIO, E. M. R. (Org.). Bakhtin na prática: leituras de mundo. São Carlos: Pedro & João Editores, 2008.
PONZIO, A. A Revolução Bakhtiniana: O pensamento de Bakhtin e a ideologia contemporânea. São Paulo: Contexto, 2008.
SOBRAL, A. “Ético e Estético”. In: BRAIT, B(org.). Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2007, pp.101-121.
___.Elementos sobre a formação dos gêneros do discurso: a fase “parasitária” de uma vertente do gênero de autoajuda.Tese de doutorado. Pontifícia Universidade Católica, PUC-SP, 2006.

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