segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Luiz Marcelo Brandão Carneiro

Contemplação polifônica e dialógica no contexto das novas mídias
Luiz Marcelo Brandão Carneiro
Senac-SP (Pós-graduação em Roteiro Audiovisual)

Este artigo visa instaurar uma proposta de abordagem das novas mídias – considerando toda a problemática relativa à esta denominação – através dos conceitos de responsividade, de polifonia e de dialogismo, conforme Bakhtin os concebia. Além disto, dentro deste recorte, o universo dos games será apresentado como um universo antecipador, potencialmente instigador e responsivo às novas mídias, em termos de construção estrutural e conceitual e em termos da possibilidade da edificação de um pensamento sobre as novas mídias que tanto leve em consideração sua história de constituição quanto coloque em cena novos paradigmas de elaboração estrutural, conceitual e criativa.
              Atualmente, quando se fala em “novas mídias”, os objetos que se abordam são produtos concebidos e operacionalizados em aparelhos e ambientes marcados pela interatividade e pela imersão, dadas em grande parte pela utilização dos recursos da internet. Uma vez que os aparelhos nos quais as pessoas interagem/imergem nessas novas mídias são necessariamente gadgets tecnológicos e como o cenário no qual esses aparelhos vêm à tona é fundamentalmente marcado pela constante renovação e mesmo por uma ânsia – desmesurada – pelo novo (pelo mais novo, sempre), a fetichização configurada sobre esses aparelhos, suportes das novas mídias, torna o próprio conceito “nova mídia” problemático.
            Perde-se de vista o conceito de mídia como sistema de linguagem: são aparelhos como celulares, IPads, IPods e afins; notebooks e netbooks; consoles portáteis de games que são considerados novas mídias. Não é a linguagem e sua peculiaridade estrutural o que se apresenta, mas sim o suporte que emerge – erroneamente – como mídia. Nessas “novas mídias”, nesses gadgets, o que ocorre é a integração e a interação das mídias preexistentes, e é essa característica que deveria ser mais considerada quando se busca sua caracterização.
Portanto, chegando ao primeiro aporte bakhtiniano, pode-se considerar que essas novas mídias são mídias polifônicas: nelas, estão presentes as mais diferentes linguagens, integradas e em interação através de seus sistemas operacionais e através da capacidade que esses gadgets têm de operacionalizar a internet. A internet – intersemiótica em si – e esses aparelhos de natureza também intersemiótica, permitem cada vez mais a navegação por diversos sistemas de linguagens, de maneira mais ou menos fluída, dependendo das características dos aparelhos, de seus programas e até da experiência nesse tipo de utilização que tenham seus usuários.
Tomando a “voz” de cada sistema de linguagem como independente e dotada de características únicas, certamente reconhecíveis; e pensando que um grande amálgama dessas “vozes” é criado no ambiente das novas mídias, é interessante notar que, no universo supostamente em completa interação de linguagens que se oferece – mais como promessa do que como realização – o que assoma é, no meio da polifonia dos códigos, a manutenção da distinção dos mesmos.
Afinal de contas, nos gadgets intersemióticos das assim chamadas “novas mídias”, e em qualquer computador (por mais defasado que seja), as diferentes linguagens coexistem e interagem, mas muito mais isoladamente do que se quer e percebe. Basta lembrar que, via de regra, o acionar de processadores de texto, imagens e sons se dá em janelas retangulares que não são intercambiáveis. Abre-se um emulador de página de papel para digitar texto, abre-se um retângulo para ver uma foto, abre-se uma página recheada de retângulos para visualizar vídeos em aplicativos como o Youtube, abre-se outro retângulo para acionar um executador de músicas em MP3.
Tal processo, longe de criar a fluidez polifônica, cria um ambiente no qual se transita de maneira dialógica, uma vez que o acionamento das diferentes mídias se dá de maneira quase isolada. Acionar uma linguagem e em seguida outra cria um modelo de percepção no qual a integração se dá por uma espécie de proximidade geográfica: o programa que mostra os vídeos está no mesmo “lugar” que o programa que suporta imagens, mas são ferramentas distintas que tem de ser acionadas isoladamente. Sendo uma ferramenta/linguagem diferente da outra, há uma espécie de “dialogismo inter-mídias”, pois as linguagens embatem-se em um ambiente falsamente integrativo.
Além disto, há outro engano: a denominação “novas mídias”, além de carregar “mídias velhas” como o cinema e a televisão de uma clara noção de antiguidade, não põe em cena um fato básico: toda linguagem, em seu surgimento, é nova. Portanto, tanto as mídias antigas já foram novas mídias em seu tempo de nascimento, quanto nossas novas mídias serão um dia as mídias arcaicas de outros.
Resolver esse imbróglio pode ser extremamente complicado. Chama-se de mídia aparelhos que não são exatamente mídias; tem-se a falsa noção de que todas as mídias/linguagens estão integradas nesses aparelhos; e se considera esses gadgets como “novos” pensando-se que outras linguagens são “velhas” e descartando – pela nomenclatura solidificada – seu envelhecimento.
Como fator complicador dos mais sólidos e dos mais sérios, está a falta de formação intersemiótica dos usuários dessas mídias. É notável que, mesmo acionando com precisão e rapidez os aparelhos e seus aplicativos, as pessoas não processam o alcance de suas operações em nível simbólico e cognitivo. É como se o operar dos aparelhos criasse uma espécie de cegueira sobre a própria operação.
Isso pode ter sido ocasionado por uma busca que a linguagem desde sempre tem: a de tornar-se “transparente”, ou seja, a de não se fazer notar. Seja em uma pintura que quer ser tão realista quanto a própria natureza, seja em um filme que cria a ilusão aceita de uma realidade, seja em um programa/game de realidade virtual, o que se almeja é que a linguagem não seja notada, o que não é possível. Afinal de contas, o que o mais perfeito simulador de realidade poderia fazer é, no fim das contas, deixar evidente a perfeição do próprio simulador, e não fazer confundir realidade com simulação. Uma simulação é perfeita porque imita, e não porque toma o lugar da realidade.
É com essa conclusão que chego aos games, propondo-os como uma esfera na qual se pode trabalhar as linguagens e como um padrão de pensamento próprio. Utilizando palavras de Lucia Santaella, trata-se de pensar os games como “matrizes da linguagem e do pensamento. Explico: os games, desde seu início quase pirata nos fins dos anos 1950, são sistemas intersemióticos. E, desde seu tenro início, games necessitam de abstração e de processamento simbólico.
Pensar o game como sistema intersemiótico é notá-lo como arena na qual os mais variados códigos coexistem e interagem. Hoje é muito fácil notar isso, uma vez que a produção dos games é cada vez mais apurada, ancorada em um crescente poder de processamento dos consoles. Os games apresentam qualidade de som e imagem muito desenvolvida, valem-se de técnicas de cinema e fotografia (não apenas) e, além disso, muitas vezes ancoram-se em obras de outras áreas para constituir seu eixo narrativo, como facilmente se pode notar nos recentes “Alice Madness Returns” (Electronic Arts, 2011) e “Red Dead Redemption” (Rockstar, 2010). O primeiro vale-se do universo de Lewis Carrol (Alice no país das maravilhas e Alice no país do espelho), e o segundo vale-se de uma vasta rede referencial histórica e cinematográfica.
A abstração nos games é primordial porque temos de nos sentir representados pelos avatares e porque temos de interagir com outras representações. Nos games mais modernos tal abstração é facilitada porque o índice de fidelidade com a imagem real é alto, mas, como se evidenciou, isto só fortifica o fato de que se trata de representações. Em “Pong” (Atari, 1974) era necessário controlar um avatar que nada mais era que uma barra retangular vertical. Para que o jogo fosse jogado, tinha-se que assumir que tal barra vertical nos representava.
Esse assumir a representação é o próprio processamento simbólico dos games. É através dele que nos colocamos na pele do “outro”, mesmo que esse outro seja algo tão diferente de nós, como um elfo (como na série Zelda da Nintendo), tenha outro sexo (um jogador que controla um avatar mulher ou uma jogadora que controla um avatar homem) ou como a supracitada barra vertical de “Pong”. E nós lutamos a luta dos personagens, nós os somos e eles são nós. O outro realizado, talvez alguma ideologia do cotidiano em ação.
O mais impressionante no universo dos games é que todo esse processo intersemiótico, de abstração e de pensamento simbólico se dá em um contexto de interação e de imersão bastante desenvolvidas. O game é a única mídia na qual a integração de linguagens e a imersão andam juntas e estão ligadas de maneira profunda e indissociável: nós entramos na linguagem, jogamos a linguagem, a acionamos de uma maneira que não fazemos em nenhuma outra mídia.
O game é polifônico pela linguagem, é uma relação de empatia pela identificação com os avatares-outros, é a construção de linguagem e a noção de que a linguagem é viva e em movimento evidenciada. Enfim, os games tem em si, desde seu nascimento e cada vez mais, uma série de pressupostos que podem ser tomados pelos pontos de vista bakhtinianos.
Mais que isso: os games podem oferecer, via essa sua constituição típica e sui generis, uma arena para pensar as novas mídias e mesmo as “velhas mídias” sob o prisma da polifonia (sua intersemioticidade natural), do dialogismo (como evidenciadores do que poderia ser nas novas mídias as interações de linguagem), da responsividade (pois são enunciados que respondem, em linguagem ou em herança narrativa a outros enunciados), da presença do outro (assumir o avatar) e de alguma ideologia do cotidiano (pois é perceptível que, ao lutar contra um gigantesco titã ou ao pular sobre cabeças de crocodilos, estamos simbolicamente e veridicamente vencendo gigantescas tiranias).
Os games, evidenciando a interação de linguagens em um ambiente de imersão necessária e tornando evidente o processo de simbologização, podem fornecer respostas muito interessantes para se pensar as novas mídias. Talvez a principal delas seja que as pessoas desejam manejar as novas mídias tendo consciência das linguagens que, nelas, estão acionando. Quando se joga um game, não se imerge nele porque ele se torna verdade, mas sim porque a abstração e o processamento simbólico que ele promove em seu sistema intersemiótico é a nós muito atraente, seres formados por signos que somos.
Pensemos. Joguemos. É a proposição dos games como tábua de códigos que fica aqui registrada, com tudo aquilo que, neste breve espaço, se conseguiu a ele e às novas mídias se relacionar.

Referências
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da Poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005.
GEGE, Grupo de estudos dos gêneros dos gêneros do discurso. Palavras e contrapalavras. Conversando sobre os trabalhos de Bakhtin. São Carlos: Pedro e João Editores, 2010.
LUZ, Alan Richard da. Video games. História, linguagem e expressão gráfica. Do nascimento à consolidação do vídeo game como linguagem. São Paulo: Blucher, 2010.
SALEN, Katie; Zimmerman, Eric. Rules of play. Massachusetts: MIT Press, 2004.
SANTAELLA, Lucia. Matrizes da linguagem e do pensamento. Sonora visual verbal. São Paulo: Iluminuras, 2009.
_______________. Navegar no ciberespaço. O perfil cognitivo do leitor imersivo. São Paulo: Paulus, 2004.

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