terça-feira, 11 de outubro de 2011

Danielle Patricia Algave

A concepção de linguagem em Bakhtin e suas contribuições para a Análise das Alterações de Linguagem nas Epilepsias
Danielle Patricia Algave
IEL/UNICAMP

            As alterações de linguagem podem ser decorrentes de quadros de epilepsia e ocorrer tanto no momento das crises – neste caso referidas como “afasias transitórias” - quanto em conseqüência das lesões cerebrais provocadas pela evolução da doença. Dentre as principais alterações identificadas destacamos as dificuldades para encontrar palavras (WFD – Word Finding Difficulties), a produção de parafasias lexicais e semânticas, dificuldades de leitura e escrita, além de alterações cognitivas, principalmente gnósicas (perceptivas), que se revelam por meio de alucinações visuais e/ou auditivas. Acreditamos que o estudo de tais fenômenos lingüístico-cognitivos pode contribuir para a compreensão de aspectos da organização semântico-lexical e, sobretudo, para esclarecer a respeito do papel dos lobos temporais no funcionamento da linguagem.
            Buscamos compreender o estatuto das alterações de linguagem nas epilepsias, tanto com relação aos aspectos do sistema formal da língua (produção de parafasias fonético/fonológicas, dificuldades de selecionar palavras, etc) como alterações pragmáticas e discursivas (em associação com outras alterações cognitivas – como memória, atenção, alucinações visuais ou auditivas) que possam acarretar atrasos na aquisição de linguagem, dificuldades de aprendizagem e, conseqüentemente, no desenvolvimento cognitivo, sobretudo na infância e na adolescência.
            Nossa fundamentação teórica está pautada na concepção de Sistema Funcional Complexo, de Luria (1973/1977), que considera o cérebro como um sistema dinâmico, plástico e como produto da evolução sócio-histórica e da experiência do indivíduo, nos postulados de Vygotsky (1984, 1987, 2004) sobre o conceito de desenvolvimento e mediação, nos conceitos bakhtinianos (BAKHTIN, 1995, 1997), com objetivo de melhor caracterizar os processos dialógicos e os enunciados dos sujeitos; e na Neurolingüística Discursiva (COUDRY, 1988, 1992, 2002) a qual assume a linguagem como trabalho e que se apresenta como a principal forma de relação dialógica, produzida em meio social (FRANCHI, 1977).
Tomamos, portanto, a perspectiva teórica na qual a linguagem se dá através das interações sociais e é constitutiva dos sujeitos. A linguagem está sempre inacabada e em movimento, susceptível de renovação pela dependência da compreensão que acontece no diálogo, onde se constitui a singularidade, pelo fato de a intersubjetividade ser anterior á subjetividade e de a relação entre interlocutores ser responsável pela construção de sujeitos produtores de sentidos (BAKHTIN, 1997).
Nessa perspectiva, o discurso não é considerado como um bloco uniforme, mas como um espaço marcado pela heterogeneidade, ou seja, diversas vozes vindas de outros discursos – o discurso de um interlocutor. De acordo com Bakhtin (1995, 1997) numa abordagem discursiva, só podemos nos constituir enquanto sujeitos ao tomarmos consciência de que não somos o outro. Cada sujeito só existe na relação com os seus interlocutores, ou seja, nas interações sociais. Esta consideração é de fundamental importância para nós e se constitui numa das razões pela qual optamos por uma metodologia discursiva. Nesse sentido, o sujeito traz em si todas as vozes que o antecederam.
Sobre isso, ainda podemos dizer que o sujeito e a linguagem são mutuamente constitutivos (COUDRY 1995, BAKHTIN, 1997; GERALDI, 1997) e estão ancorados nas condições de produção extralingüísticas. Desta forma, os sentidos construídos dentro das interlocuções vão sendo estabelecidos pelos indivíduos nas sucessivas interlocuções e decorrem do contato que cada um deles tem com diversos interlocutores.
Para Bakhtin (1997), a enunciação é o produto da interação de dois indivíduos socialmente organizados. Ela não existe fora de um contexto sócio-ideológico e sempre se destina a alguém, ao “outro”. Ao falar, o locutor considera o “outro” do diálogo: seu modo de ser, seu grau de informação, seus conhecimentos, opiniões, convicções, etc.
O sentido de um enunciado não está pré-definido no indivíduo e nem na palavra, mas é construído numa compreensão ativa e responsiva. É o efeito da interação entre o locutor e seu receptor, produzido por meio de signos linguísticos. A interação constitui, assim, o veículo principal na produção do sentido. Nesta concepção, o sentido se torna único, individual, não renovável e expressa a situação histórica no momento em que se dá a enunciação. Bakhtin (1997) ainda define o enunciado como a unidade real da comunicação verbal. Tais características do enunciado podem ser verificadas no trecho que se segue (BAKHTIN, 1997, p. 293-294):
“(...) A fala só existe, na realidade, na forma concreta dos enunciados de um indivíduo: do sujeito de um discurso-fala. O discurso se molda sempre à forma do enunciado que pertence a um sujeito falante e não pode existir fora dessa forma. (...) As fronteiras do enunciado concreto, compreendido como uma unidade da comunicação verbal, são determinadas pela alternância dos sujeitos falantes, ou seja, pela alternância dos locutores. Todo enunciado - desde a breve réplica (monolexemática) até o romance ou o tratado científico - comporta um começo absoluto e um fim absoluto: antes de seu início, há os enunciados dos outros, depois de seu fim, há os enunciados-respostas dos outros (ainda que seja como uma compreensão responsiva ativa do outro). O enunciado não é uma unidade convencional, mas uma unidade real, estritamente delimitada pela alternância dos sujeitos falantes, e que termina por uma transferência da palavra ao outro, por algo como um mundo “dixi” percebido pelo ouvinte, como sinal de que o locutor terminou.”

            O enunciado deve ser compreendido como qualquer manifestação de comunicação, seja ela oral, gestual ou escrita. O diálogo, por sua vez, é tomado como a forma clássica da comunicação verbal, na qual se torna mais evidente a alternância dos sujeitos falantes. A situação dialógica, ou interlocução é, portanto, constitutiva dos enunciados nas interações verbais.
Qualquer enunciação propõe uma réplica, uma reação, e necessita de um acabamento com a finalidade de expressar a posição do locutor e produzir uma atitude responsiva, uma vez que o homem é tido como um ser de resposta e ao evento é impossível de ser efetivado senão participativamente (GERALDI, 2004). Dessa forma, o locutor sempre espera por uma atitude responsiva que irá lhe dizer sobre a compreensão de um enunciado (BAKHTIN, 1997). Segundo Bakhtin (1995), o acabamento é de certo modo “a alternância dos sujeitos falantes vista do interior; essa alternância ocorre precisamente porque o locutor disse (ou escreveu) tudo o que queria dizer num preciso momento e em condições precisas”.
Ainda sobre o acabamento, Bakhtin (1995, p. 195) ressalta três fatores que são válidos para qualquer tipo de enunciado.
“A totalidade acabada do enunciado que proporciona a possibilidade de responder (compreender de modo responsivo) é determinada por três fatores indissociavelmente ligado no todo orgânico do enunciado – 1) o tratamento exaustivo do objeto do sentido; 2) o intuito o querer-dizer do interlocutor; 3) as formas típicas de estruturação do gênero do acabamento”

Para avaliar as alterações de linguagem, adotamos o segundo fator mencionado por Bakhtin que se refere ao querer-dizer. Percebemos que mesmo havendo alterações na linguagem que representem dificuldades para sujeitos acometidos pela epilepsia – principalmente quando nos referidos às dificuldades de encontrar palavras -, eles de alguma maneira tentam dizer aquilo que buscam. Nestes momentos, ao perceber o intuito discursivo de nosso interlocutor, nos antecipamos em oferecer um acabamento pra seu enunciado, a tentativa de ajudá-los a completar a sua idéia (NOVAES-PINTO, 1999).
Por fim, há um último conceito a explorar nas contribuições de Bakhtin para este trabalho, que diz respeito ao dialogismo. Para o autor, este conceito permeia todos os outros aqui explicitados e se constitui na alternância dos sujeitos falantes (BAKHTIN, 1997, p. 294): “o diálogo, pó sua clareza e simplicidade, é a forma clássica de comunicação verbal”
Bakhtin (1995; 1997) discorre bastante sobre a interação verbal, a enunciação no plano intersubjetivo e a questão da constituição subjetiva embasada nas relações dialógicas. Esta concepção de sujeito o remete a uma indeterminação permanente, que se reconstitui de uma maneira diferente a cada interação verbal. Todas estas questões se tornam relevantes tanto para a investigação quanto para a análise do processo terapêutico de pacientes com alterações de linguagem e das interações que ocorrem nos diferentes círculos sociais (CAMARGO, 2000).

Bibliografia
BAKHTIN, M. Marxismo e Filosofia da Linguagem, São Paulo: Editora Hucitec, 1995.
BAKHTIN, M. M. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
CAMARGO, E. A. A. Concepções da deficiência mental por pais e profissionais e a constituição da subjetividade da pessoa deficiente. Tese de Doutorado. Instituto de Estudos da Linguagem – Universidade Estadual de Campinas, 2000 COUDRY, M. I. H. Diário de Narciso. Discurso e afasia: análise discursiva de interlocuções com afásicos. Tese de doutorado. Unicamp, Campinas, 1988.
COUDRY, M. I. H. Diário de Narciso: discurso e afasia. São Paulo. Martins Fontes. 1986/88, Campinas – SP: Unicamp/IEL, 1992.
COUDRY, M.I.H. “Linguagem e Afasia: uma abordagem discursiva da Neurolingüística”. IN: Cadernos de Estudos Lingüísticos, Campinas, (42): 99-129, Jan./Jun., IEL,Unicamp. 2002.
FRANCHI, C. "Linguagem- Atividade Constitutiva". In: Almanaque, 5. São Paulo: Brasiliense. 1977.
GERALDI, J. W. Portos de Passagem. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
GERALDI, J. W. O texto na sala de aula. 3. ed. São Paulo: Ática, 2004. 
LURIA, A. R. Fundamentos de Neuropsicologia. São Paulo: Ed.Cultrix. Morsan. 1973/1981
NOVAES-PINTO, R.C. A contribuição do estudo discursivo para uma análise crítica das categorias clínicas.  Tese de Doutorado não-publicada, Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, SP. 1999
VYGOTSKY, L. A formação social da mente. Ed Martins Fontes. São Paulo, 1984
VYGOTSKY, L. Pensamento e Linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1987. 
VYGOTSKY, L. Psicologia pedagógica. São Paulo: Martins Fontes, 2004

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