segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Rosa Brasil

Homem e cristo: entrelaçamentos de Representação e extraposição
Rosa Brasil (Universidade Federal do Pará)

Apenas o amor, por ser aproximação ativa do outro, pode operar a combinação da vida interior (...) vivenciada de fora, com o corpo, em seu valor, vivido de fora, para fundi-los no homem singular e único, como fenômeno estético.
                                                                                          Mikhail Bakhtin

Há, após a “encarnação” de Cristo como homem, uma série de entrelaçamentos de corporalidade, que ora evidenciam 1) Cristo fundido ao homem (e vice-versa), em um processo interior, de dentro; ora 2) Cristo como contemplador do homem (e vice-versa), de fora, em um movimento de extraposição estética; ora 3) Cristo fundido ao homem (e vice-versa), em um processo interior, de dentro, por meio de um processo de empatia simpática, viabilizado pelo o que Bakhtin chama amor estético. Interessa-me clarificar essas questões teóricas que incidem sobre a introspecção e a extraposição do sujeito, utilizando o homem comum (representação da humanidade) em sua relação com a figura de Cristo, tanto na época em que se deu a crucificação e morte deste, quanto na atualidade, em eventos religiosos e culturais, como o Círio de Nazaré, em Belém, no Estado do Pará – maior manifestação religiosa católica do Brasil e maior evento religioso do mundo, que reúne cerca de seis milhões de pessoas em  cultos e procissões – onde homens (promesseiros) se transmudam em Cristo e realizam  pedidos ou agradecem a graças alcançadas.
Antes de tudo, importa esclarecer alguns postulados básicos da concepção a qual me apoio para efetivar tal feito. Um deles, alicerce teórico, diz respeito à noção de Eu e Outro como sujeitos que ocupam lugares únicos no mundo, mantêm suas cargas expressivas, vivenciais que, por si sós, já se formaram por influência do eco dos discursos alheios. São unos (no plural) e se autoformam. Esses seres mesmo no que apresentam de intra, já são inter. São seres intercambiáveis, que desenvolvem em todo momento vivenciado, experienciado, reações responsivas e responsáveis uns em relação aos outros. Esse processo é inclusive de natureza orgânica, ontológica – o homem apresenta-se “em artérias”. Tarantini et al (2005, p. 159 In Miotello et al, 2005) trata a responsividade – ação próprias desses sujeitos humanos – também sob uma perspectiva orgânica, biológica:
Uma das primeiras faculdades de um organismo pluricelular é a faculdade de recepção de estímulos. (...) Assim, é todo o organismo que sente um estímulo, uma excitação vinda através de um órgão específico (...) É por isso, por essa razão biológica, que quando duas mãos se entrelaçam por exemplo todo o corpo sente-se tocado, todo o corpo parece mobilizado, afetado: no ser humano a impressão, a excitação recebida por um órgão sensitivo viaja a cento e vinte metros por segundo por todo o organismo! Somos um amálgama de sensações.

De dentro, o sujeito não cria uma vida esteticamente significante sem deixar de ser ele enquanto realidade interior, assim, “o significante é a vida interior do objeto expressando-se a si mesmo; esta é a condição que permite vivenciar o objeto com empatia (...) o objeto estético da estética expressiva é o homem e todo o resto será animado e personalizado (BAKHTIN, 1997, p. 80). Por outro lado, “perceber esteticamente o corpo significa vivenciar os estados interiores do corpo e da alma a partir de uma expressividade exterior. Podemos formulá-lo assim: o valor estético se realiza quando o contemplador se aloja dentro do objeto contemplado, quando vivencia a vida do objeto de seu interior e quando, no limite, contemplante e contemplado coincidem” (idem). Ou seja, vivenciar o autor, nesse processo, é co-criar. Machado (2005, p. 141 In Brait, 2005) bem observa a visão de pontos de vista se interconectando e formando algo diferente delas próprias, fazendo referência ao “todo” construído esteticamente: “Uma pessoa só vê aquilo que está fora dos limites da visão do outro. Assim, os pontos de vista simultâneos completam-se na formação do todo, o evento dialógico. A composição estética é determinada pela relação dialógica entre as visões complementares, não pela visão em si. O valor, entranhado no posicionamento ético, que por sua vez é responsável pela composição do todo estético, é também o centro do acabamento estético. Bakhtin (1997, p. 101) sintetiza essa relação: “O que é indispensável para a criação de um todo artístico não é expressar sua vida e sim expressar-se sobre sua vida pela boca do outro”.
A partir desse olhar extraposto, é possível falarmos de outra verdade, uma “verdade alternativa”, tal qual se refere Nagai e Coelho (2010 In GEGE, 2010, p. 85), “que é aquela materializada pelo olhar dos sujeitos estéticos (...) Cada verdade alternativa, com sua singularidade garantida pelo personagem, entra na interação viva com outras singularidades, formando assim o todo acabado da verdade estética constituindo sua significação”.
Há, no decorrer da história, eventos culturais nos quais o homem “absorve” Cristo, ora de dentro na perspectiva interior de Cristo (representação da vida de Cristo no horizonte de Cristo), ora de dentro na perspectiva interior do homem (representação de Cristo tal qual o  homem o julgou, imbuído do amor que sentia por Cristo), ora de fora na perspectiva propriamente estética (composição do todo através de um processo autoral de criação). Alguns desses fenômenos, sobre os quais incidirei essa abordagem de “entrada” e “saída” referente ao eu-em-mim-mesmo, ao outro-para-mim e ao eu-para-o-outro, foram selecionados no Círio de Nazaré, na procissão ocorrida no segundo domingo de outubro anualmente, quando se realizava coleta de dados para o projeto Objetos e promessas do Círio de Nazaré: aspectos semióticos de ressignificação, por mim coordenado. 
Um desses fenômenos foi notado a partir de um homem que carregava uma enorme cruz nos ombros. Apresentava-se com uma “camisa do Círio” em homenagem a N. Sra. de Nazaré, sobre a qual caíam vários terços; um deles, de madeira, chegava próximo ao joelho.
Figura 01 e 02: homem com a cruz no Círio de Nazaré


Uma procissão religiosa, católica, por si só já suscita a imagem de Cristo, o Círio de Nazaré não foge à regra, pelo contrário, evoca Cristo desde a própria natureza penitencial do evento. Os milhares de pessoas que acompanham o traslado pedem ou agradecem a graças obtidas. Com o homem da cruz não foi diferente. Em meio a um percurso de 5 km entre a Catedral Metropolitana e a Basílica de Nazaré, ele se propôs a carregar nos ombros uma grande e pesada cruz, não por um milagre específico, disse ele, mas pela saúde da família, entre outras coisas, “principalmente para seu filho ser um cidadão, ter uma vida digna”. A proposta inicial desse homem era vivenciar a dor de Cristo por meio do sacrifício corporal. Para ele, quem faz esse tipo de penitência é provavelmente merecedor de graças, uma vez que se equipara a Cristo. Há, nesse processo, um fenômeno possível de representação, no qual o sujeito – como no teatro – situa-se no interior de uma personagem cuja vida vive por dentro. Nesse caso, não se tem diretor, nem espectador, nem autor. Bakhtin (1997, p. 88), ao tratar da relação entre representação e arte, comenta acerca da tragédia grega Édipo Rei:
No mundo de Édipo, apenas as outras personagens de sua vida são revestidas de carne externa, e esses comparsas, rostos e objetos, não o cercam, não constituem seu ambiente esteticamente significante, mas entram em seu horizonte, o horizonte do sujeito da ação. (...) Se eu me fundo com Édipo, se perco o lugar que ocupo fora dele, deixo de enriquecer o acontecimento de sua vida.

É assim que “o acontecimento-tragédia – no que a tragédia é gesto-ato artístico (e religioso) – não coincide com o acontecimento-vida de Édipo. (...) na tragédia, em seu todo concebido como acontecimento artístico, é o autor-contemplador que é ativo (BAKHTIN, 1997, p. 87-88). Dentro de si mesmo, através da empatia, um evento de vida não é nem trágico, nem cômico, nem belo, nem sublime. Para que seja revestido desses valores, é necessário o sujeito ocupar uma posição “de fora” e cercá-lo dos valores que são transcendentes a sua orientação no mundo das coisas. Bakhtin chama atenção para essa posição verdadeiramente estética que o sujeito ocupa, pontuando que a diferença entre a representação e a arte dá-se por um novo participante: o espectador. A sua perspectiva é a do contemplador, criador, que aglutina vários pontos de vista em torno do dado e cria, num vértice em que eles se tocam, um todo estético. 
No caso do homem com a cruz, no Círio, podem ter acontecido vários desses fenômenos. O homem pode ter vivido Cristo por dentro, representando outra vida, imaginária, por meio da qual “se passava por Cristo” para “tomar-lhe um pouco que seja da dor que sentiu antes da crucificação” a fim de ser merecedor das graças que rogava, ou ainda para ser merecedor dessas graças por ser “o filho de Deus”, ou o “filho de N.Sra.” evocada e homenageada na procissão. Essa representação é da natureza do devaneio. Nesse caso, o homem não interpretava a si mesmo, mas limitava-se a imaginar-se. É pelos olhos de Cristo que se propunha a vivenciar o mundo. Seu horizonte era o horizonte de Cristo.
Foi possibilitado, ainda, ao homem a vivência de Cristo entremeada por múltiplos olhares e posicionamentos. O fato de ter respondido “carrego a cruz para pedir a Nossa Senhora para que meu filho seja um cidadão”, pela ressignificação elaborada entre o mundo de Cristo e o seu mundo, na Amazônia contemporânea, construída sobre enormes abismos sociais, há grande probabilidade de o homem ter realizado também – ou exclusivamente – o movimento de extraposição, por meio do qual ele assumiria o papel de espectador, de contemplador, do sujeito que transmuda o dado em postulado. Cabe, ainda, abordar a extraposição sugerida do ponto de vista dos pesquisadores. Um deles comentou o discurso enunciado, impressionado: “imaginem um homem se propor andar 5 km com uma cruz, tal qual Cristo fez, para pedir o óbvio, aquilo a que todos deveriam ter acesso – a dignidade da pessoa humana. É como se Cristo agora, dois mil anos depois, morresse de fato”. Outro assim construiu sua “cena”: “Antes, Cristo pedia a Deus pela humanidade, era o filho de Deus, pedindo pela salvação de seus filhos, pela ascensão os homens a um nível espiritual superior; hoje, dadas as desigualdades econômicas e sociais, Cristo faz penitência num calor de 35%, com uma blusa de propaganda, uns terços enormes amarrados no pescoço e uma cruz pesada nas costas, para conseguir o milagre de os homens pobres serem pelo menos considerados gente, de terem direito às coisas mais básicas para o ser humano. Na verdade, esse Cristo é cômico”. Essas associações são do campo do estético, do campo da arte, na qual assumimos o papel de co-criadores, como espectadores, juntos ao “homem da cruz”.  Para Bakhtin (1997, p. 91), “O acontecimento voltará a ser uma representação se o participante, renunciando à sua função estética, deixar-se envolver por ela (...) embora seja necessário bem menos para anular o acontecimento artístico – basta que o espectador (...) identifique-se com uma das personagens em particular e que, formando um só todo com ela, trate de viver essa vida imaginária”.
Ao homem da cruz, no dia do Círio, são possibilitadas várias alterações de perspectiva, assim como aos pesquisadores ou outros espectadores de sua ação e de seu discurso. Inclusive, cabe ainda lembrar que a memória de discursos persistentes e insistentes, amparada em fontes de estudo que passaram a ser consideradas históricas com o advento da escola de Analles (1929, na França) – os Evangelhos Canônicos de Mateus, Marcos, Lucas e João constituem os quatro livros bíblicos sagrados para os seguidores de Cristo, escritos a partir de narrativas de pessoas que conheceram ou que ouviram falar de Jesus – reveste da crença de verdade o fato de Cristo ter morrido crucificado, após uma série de torturas físicas e humilhações, com a finalidade de salvar a humanidade de seus pecados. Ou seja, desde há muito tempo, Cristo enquanto signo foi processo dialógico; foi movimento entre selves; foi o Eu amparado no Outro. Cristo viveu os homens de dentro, experimentando seus sofrimentos, suas dores, a autoria de seus pecados, ao mesmo tempo em que também se “afastou” dessa introspecção empática e, a partir do amor dispensado a estes, transfigurou-os, converteu-os num objeto vivo, constituído de alma e corpo, resultado de o-que-é fundido a o-que-achamos-que-é-porque-amamos. Este movimento, de extraposição via o outro, está dentro da noção de empatia simpática, a respeito da qual Bakhtin (1997, p. 97) chama atenção:
Nessa, não está em questão o amor-próprio ou amor-de-si, e sim a criação de uma nova relação emocional com o todo da sua vida interior. Efetivamente o sentimento de amor parece penetrar no objeto, modificar sua aparência para nós, mas mesmo assim essa penetração difere totalmente da incorporação operada pelo ato de empatia, o qual faz passar para o objeto outra vivência na qualidade de estado interior próprio desse objeto, introduz o sentimento da alegria no homem com sorriso feliz, o sentimento da paz no mar calmo e imóvel etc. Enquanto estes últimos animam o objeto exterior, criando essa vida interior que dá sentido à sua exterioridade, o amor penetra tanto a vida exterior quanto a vida interior que foi incorporada ao objeto pelo ato de empatia e embeleza, transfigura para nós o objeto em sua totalidade.  

Situação semelhante deu-se com as três irmãs que carregavam – cada uma a um tempo – uma cruz muito maior e mais pesada que a do homem citado. Tratava-se de um agradecimento pela graça alcançada: a cura de câncer de uma delas. Provavelmente, suas intenções giraram em torno da proposta de se vivenciar Cristo a partir de seu horizonte. O sofrimento corporal a que se submetiam era enorme, de tal forma que as outras duas irmãs, enquanto uma delas carregava a cruz, precisavam ampará-la, dando-lhe água e fazendo compressas de água gelada no ombro ferido. Importante notar que elas “caminhavam” na procissão, sob um sol escaldante, de joelhos. 

Figura 03 e 04: mulheres com a cruz no Círio de Nazaré

As extraposições delas em relação a Cristo também devem ter ocorrido, mas não podem ser presumidas devido à ausência de dados no depoimento. Quanto à composição ativa do todo por parte dos pesquisadores, pode-se inferir a partir das observações: “Cristo era só um, agora temos uma santíssima trindade, composta por mulheres negras. É, a pós-modernidade dá seu recado: o Cristo se multiplicou na forma de excluídos sociais”. E mais; “Três irmãs agradecendo a cura de uma. Fico pensando quem é essa uma e quem são as outras duas. Será que se essa uma fosse uma das outras duas a cena do suplício aconteceria? Acho que Cristo não são três; são duas”.
Cristo, sob todas essas perspectivas, é signo, possui o sentido da relação Eu-Outro, com suas expressividades e extraposições. Enquanto signo essencialmente dialógico, ideológico, impregna nos atos do Eu os atos do Outro, como se estes se permutassem a partir da “engrenagem que se movimenta contínua e freneticamente, coando as vozes alheias que são sugadas a todo instante, no processo de experiência interacional, por uma consciência que se constitui no eu-a-mim-mesmo-que-não-posso-ver” (BRASIL et al, 2011, p. 38). Há, entretanto, nesse movimento reflexivo, de resposta, o paradoxo humano constituído pelo “fato de que o sujeito se constrói não só pela determinação do outro, mas pelo esforço para se diferenciar das formas desse outro que o reformula completamente” (DAHLET, 2005, p. 83). Portanto, é através das marcas de ruptura com o “nós-consensual” que o eu torna visível ou perceptível o que dele é expressivo, particular. Nessa espiral ontológica, na qual Eu e Outro dialogam assumindo posicionamentos e perspectivas diferenciadas, o credo dialógico que esclarece o mistério da santíssima trindade pode ser assim definido: homens-em-Cristo; Cristo-nos-homens; homens-em-Cristo e Cristo-nos-homens por meio do amor. 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
BRASIL, Rosa. Metatexto fílmico: a síntese simbólica. In BRASIL, Rosa; FILHO, José Sena; TAVARES, Mara (org.). Linguagem e imagem: entrelaçamentos indisciplinares (orgs). Belém (PA): L&A, 2011.
DAHLET, Patrick. Dialogização enunciativa e paisagens do sujeito. In BRAIT, Beth (org.). Bakhtin, dialogismo e construção do sentido. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2005.
MACHADO, Irene. Os gêneros e o corpo do acabamento estético. In BRAIT, Beth. Bakhtin, dialogismo e construção do sentido. 2 ed. rev., Campinas (SP): Editora da UNICAMP, 2005.
NAGAI, Eduardo Eide; COELHO, Francimeire Leme. In GRUPO DE ESTUDOS DOS GÊNEROS DO DISCURSO (GEGE). São Carlos (SP): Pedro & João, 2010.
TARANTINI, Vanessa et al. Em busca de conceitos fundantes. In MIOTELO et al. Triboluminescência: gegelianos e Bakhtin ainda à sombra. São Carlos (SP): Grupo de Estudos do Gênero do Discurso – GEGE, 2005.
SOBRAL, Adail. A estética em Bakhtin (literatura, poética e estética) In DE PAULA, Luciane; STAFUZZA, Grenissa (org.). Círculo de Bakhtin: teoria inclassificável. Campinas (SP): Mercado de Letras, 2010. – (Série Bakhtin: Inclassificável; v. 1) 

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