terça-feira, 11 de outubro de 2011

Hélio Márcio Pajeú

CRIAÇÃO COLABORATIVA E TEATRO NARRATIVO: VEREDAS PARA UMA ESTÉTICA RESPONSIVA
Hélio Márcio Pajeú
heliopajeu@yahoo.com.br
Universidade Federal de São Carlos

O processo de criação colaborativo disseminado no Brasil desde a década de 1970, começou a se erigir como o é conhecido atualmente no começo dos anos 1990, em que se destacam a Cia. Teatro da Vertigem e a Escola Livre de Santo André como referências na busca de uma da quebra da hierarquia nas interações criativas na arte dramática entre os sujeitos que as integram. Esse caminho de criação estética se concretiza em uma forma de desenvolvimento de obras dramáticas que têm por alicerce a aproximação entre o dramaturgo, o diretor e o elenco, em um regime de liberdade que objetiva conceber textos dramáticos a partir da criação coletiva, obtendo-se, com isso, um envolvimento na criação de todos os integrantes do projeto, além se configurar como um processo de pesquisa.
O dramaturgo brasileiro Luís Alberto de Abreu (2003, p.33), a quem se pode atribuir parte da paternidade desde processo, o define como uma experiência criativa de natureza dialógica
e coletiva, que tem sido objeto de estudo e desenvolvimento na Escola Livre de Teatro de Santo André, com o nome de processo colaborativo (e não método colaborativo) não só para preservar o caráter vasto e intuitivo da criação, como pelo cuidado, nunca desnecessário, de não objetivar excessivamente o fim pretendido. Não era, e nem é, nossa pretensão estabelecer um conjunto de regras para levar a bom termo a criação de um espetáculo teatral. Sabemos por experiência que a criação artística, embora seja uma geometria racional possui elementos imponderáveis, e não queríamos proceder como se estivéssemos diante de um objeto de estudo apenas científico. Isso não significa que o processo colaborativo abra mão de alguns princípios norteadores, sem os quais os riscos do processo de criação cair num subjetivismo vazio são por demais evidentes.

Esse processo de criação reconhece no teatro uma arte por excelência coletiva e aposta na colaboração e no diálogo entre seus membros como o princípio fundamental da engenharia dramática, irrefutável, para o cabal da sua realização enquanto projeto estético. Destarte, é um caminho contemporâneo de criação que desponta da precisão de um maior contato entre seus criadores, em que todos podem colocar sua experiência, conhecimento e habilidades a disposição do projeto criativo, de tal modo que se desvaneçam os contornos da atuação de cada sujeito.
É por esse caminho que Abreu tem concebido ovacionadas obras dramáticas  que transitam entre a comédia popular e o drama. As obras que carregam sua assinatura, sem dúvida, aparecem coreografias de gestos, de vozes, de outros, dirigidas e ensaiadas sob melodias harmônicas e dissonantes, em que os discursos transitam sem fronteiras claras entre a voz do dramaturgo, a voz do outro e a voz do contemplador, e os atos da vida cotidiana aparecem apoiados pelo visual, verbal, musical, nos entremeios dos jogos cênicos e criativos da arte, do outro, do mundo, que são elementos norteadores do estilo que se materializa no arranjo deste dramaturgo. Assim, sua obra "parece envolver-se na música entonacional e valorativa do contexto em que é compreendida e julgada (este contexto, claro, varia conforme as épocas da percepção da obra, o que cria sua nova ressonância) (BAKHTIN, 2003, p. 411).
Grande parte das experiências de criação estética desse dramaturgo se consolida no seio da Fraternal Cia. de Artes e Malas Artes, da qual é dramaturgo residente, e o caminho percorrido em seus trabalhos de criação tem se fundamentado na possibilidade de instauração de uma horizontalidade entre a obra estética e seus contempladores, entre os artistas no palco e o público na platéia, isto é, tem sido 
do ver ao ouvir e imaginar. Esse conceito, cremos,  sintetiza o caminho que o grupo percorreu nesses anos de sua existência, pois partimos de um espetáculo cômico “dramático”, fechado pela quarta parede do palco italiano até chegar a uma comédia épica, aberta ao público, com a predominância do ator-narrador, inclusive, com algumas experiências fora do palco italiano, em praças públicas. Essa transição do teatro, digamos, de representação para um teatro de narração implicou, obviamente, em toda uma mudança não só na maneira de ver o fenômeno teatral, mas, principalmente, na própria proposta e nos elementos de construção do espetáculo.    (FRATERNAL, 2007, on-line).

É exatamente o teatro narrativo que dá a essa trupe a possibilidade de encenar espetáculos que escapulam do palco e entrem na imaginação de seus contempladores, que já não são meros passivos contempladores, todavia, sujeitos ativos que participam do projeto estético. É pelo percorrer do seu mundo, pela experiência, pela riqueza de sua sabedoria, que a figura do típico narrador passa a existir nas obras de Abreu, se tornando o responsável pela quebra desta quarta parede invisível. Seja no processo de criação, com a narração da história de sujeitos da vida real que são levadas a cena posteriormente, seja na configuração dos seus heróis, porque é ele que
pode recorrer ao acervo de toda uma vida (uma vida que não inclui apenas a própria experiência, mas em grande parte a experiência alheia). O narrador assimila a sua substância mais intima aquilo que sabe por ouvir dizer. Seu dom é poder contar sua vida; sua dignidade é contá-la inteira. O narrador é o homem que poderia deixar a luz tênue de sua narração consumir completamente a mecha de sua vida.(BENJAMIN, 1994, p. 221)

O que faz atrativo a narração ao teatro é a própria possibilidade desta integrar outras ações, é seu poder de fazer funcionar outros textos na ação dramática, pois do contrário seria apenas uma narração. Deste modo, partilho da mesma concepção que acredita Melo (2005, p. 182), isto é, que a
narrativa pode ser, raramente, um gênero homogêneo composto unicamente de sucessões de ações, mas, na maioria dos casos, combina verdades gerais, descrições, diálogos, relato de pensamentos, da mesma maneira que a força do discurso é poder colocar no mesmo espaço discursivo realidades que não podem ser dadas do mesmo modo, que pertencem a mundos diferentes. Assim, como não se podem contar realmente os gêneros, não se podem contar realmente os mundos.

                Vê se, pois, que o teatro narrativo não se trata de um gênero homogêneo, uma vez que nele se dá a possibilidade da integração de uma pluralidade de gêneros outros, como por exemplo, a própria imaginação do seu interlocutor. Logo, participação interativa é algo sine qua non essa perspectiva não se torna possível. Nela os espectadores passam de meros “assistidores” passivos pagantes de um ingresso para partícipes ativos daquilo que acontece no palco. E aí  Benjamin (1994, p. 87) esclarece que “o autocontrole do palco supõe atores que vejam o público com olhos essencialmente outros que aqueles com os quais o domador vê as feras em suas gaiolas: atores para os quais os efeitos não sejam fins, e sim meios”.
Embora, muitas vezes, essa participação não se concretize através de um ato físico, ela ocorre por interferência imaginativa, de modo que a trama não precisa ser encenada o tempo inteiro, no entanto, pode ser narrada, criada na mente do público, estabelecendo um contato mais intimo, mais próximo, mais humano e direto. É ao se passar de um princípio de encenação dramática tradicional, em que a mediação se personifica no herói fechado, aprisionado na cena, para uma outra vertente em que o mediador é também, e diretamente, o público que a cena se expande, se abre, ganha outros horizontes através do sujeito narrador.
Assim, o ator que se apresenta como narrador, é
um sujeito heterogêneo, que nos permite constatar a variação dos modos de organização da narrativa tanto em função dos conteúdos como das capacidades precoces de retomada/modificação dos modelos culturais. Não há apenas competência textual, mas várias. Recontar para nós supõe, então, uma mistura de tipos de usos da linguagem: é preciso apresentar os personagens, descrever, qualificar, introduzir discursos reportados, manifestar as intenções ou sentimentos dos personagens. Todos esses subgêneros vão dicionar a utilização de estruturas diversificadas, quando se tratar de relatar os atos mentais e as atitudes. (MELO, 2005, p. 178)

Deste modo, ao enveredar por uma perspectiva do teatro narrativo Abreu constata algo basilar da interação com seus espectadores: um contato livre, direto, rebento do narrador na visão do público, que faz circular experiências ficcionais, em que, para Melo (2005, p. 181), “as mudanças dos gêneros remetem a variações perpétuas de mundo, que não podem ser reguladas por um metadiscurso, que diria de uma vez por todas: “eis o que é real, eis o que é ficção”.
A Fraternal (2007, on-line) considera que o narrador “não apenas informa, mas transmite experiências vividas ou relatadas de quem as viveu. Sem esse partilhamento de experiências entre o narrador e o público não existe narração. O fato narrado torna-se desimportante e superficial”. A partir das falas de Freire e Abreu (2004, p. 15), respectivamente, diretor e dramaturgo da Cia., vê-se que o teatro narrativo tem importância basal dentro de seu projeto estético, ao afirmarem que ele os
fornece um campo extremamente amplo de pesquisa. Permite romper convencionalismos, dialogar diretamente com o público, fazer um teatro baseado fundamentalmente na imaginação e na relação do narrador com a platéia, eliminando todo o aparato teatral desnecessário. Consente, principalmente, uma liberdade de temas, gêneros e, principalmente, uma comédia reflexiva, mordaz e contemporânea.
               
É a faculdade de intercambiar experiências a partir do narrar que faz a função do ator ser variável, que seu modo de representar muda de acordo com sua função. Tal aspecto ascende do teatro épico, em que
para seu palco, o público não é mais um agregado de cobaias hipnotizadas, e sim uma assembléia de pessoas interessadas, cujas exigências ele precisa satisfazer. Para seu texto, a representação não significa mais uma interpretação virtuosística, e sim um controle rigoroso. Para sua representação, o texto não é mais fundamento, e sim roteiro de trabalho, no qual se registram as reformulações necessárias. Para seus atores, o diretor não transmite mais instruções visando a obtenção de efeitos, e sim teses em função das quais eles têm que tomar uma posição. Para seu diretor, o ator não é mais um artista mímico, que incorpora o papel, e sim um funcionário, que precisa inventariá-lo. (BENJAMIN, 1994, p. 79)

No teatro narrativo a ação teatral sofre um deslocamento. A ação dramática não necessita ser explicitada, não carece ser vista pelo espectador, entretanto, é impreterível que seja fantasiada, que tome forma na imaginação da platéia. Ao ter por baluarte esse ato do público, não mais interessa somente o que ocorre no palco, mas, maiormente, o que ocorre na imanência da fantasia dos apreciadores a partir da narração.
Para Benjamin (1994, p. 203) “o extraordinário e miraculoso são narrados com a maior exatidão, mas o contexto psicológico da ação não é imposto ao leitor. Ele é livre para interpretar a história como quiser, e com isso o episódio narrado atinge uma amplitude que não existe na informação”. Portanto, a arte da narrativa se consolida no aspecto de evitar dar explicações, e esse estudioso (1994, p. 221) explicita que ela “em seu aspecto sensível, não é de modo algum o produto exclusivo da voz. Na verdadeira narração, a mão intervém decisivamente, com seus gestos, aprendidos na experiência do trabalho, que sustentam de cem maneiras o fluxo do que é dito”.
Ao mudar o status do espectador, o ator também re-significa o contexto enunciativo em que ocorre a atividade discursiva, pois, ele já não tem a função, somente, de mostrar as ações dramáticas que dão corpo ao espetáculo, por outro lado, seu desempenho se desenvolve no intento de indicar ao seu espectador para que este fantasie, imagine e vivencie a ação naquele ambiente.
Machado (2010, p. 164) diz que “o ambiente é a condição sem a qual o diálogo simplesmente não acontece. A dialogia de um espetáculo [...] acontece entre signos que ele manipula para interagir com seus interlocutores ou espectadores que, por mais silenciosos que estejam, estão produzindo respostas que, por sua vez, alimentam o circuito da respondibilidade”.
Nesta diretiva os narradores que Abreu dá vida, ao construir uma interação com seus interlocutores, seja o público ou o próprio autor, se instauram eqüipolentes ao seu discurso, numa senda em que o
autor reserva efetivamente ao seu herói a última palavra. É precisamente desta, ou melhor, da tendência para ela que o autor necessita para o plano do herói. Ele não constrói a personagem com palavras estranhas a ela, com definições neutras; ele não constrói um caráter, um tipo, um temperamento nem, em geral, uma imagem objetiva do herói; constrói precisamente a palavra do herói sobre si mesmo e sobre o seu mundo. (BAKHTIN, 2008, p. 15)

                Isso atribui a Abreu, no meu ver, a prerrogativa de ser um autor que compõe uma dramaturgia plenivalente, assim como Bakhtin considera o romance de Dostoievski, o que me levou a observar de certo tempo para cá suas criações, por encarnarem tais características do romance polifônico.
Pensando nesse princípio, creio que a aproximação que tive com o dramaturgo me permita afirmar que no seu processo de criação, ele recorre a procedimentos metodológicos que se inserem na história oral, que segundo Meihy (2005, p. 28) trata-se de “uma metodologia de pesquisa e também uma ferramenta de trabalho que possibilita a coleta de depoimentos individuais ou coletivos estabelecendo posturas e atitudes na história coletiva”. E que na concepção de Montenegro (1994, p. 17) aparece “como um meio privilegiado para o resgate da vida cotidiana, tendo em vista, que esta se mantém firmemente, apesar de poder sofrer alterações como resultados de experiências posteriores ou mudanças de atitudes”.

Isso me leva a crer que o uso deste tipo de procedimento parece permitir ao autor não somente enriquecer seu processo de pesquisa e criação dramática ao desconfigurar uma hierarquia pré-estabelecida entre os sujeitos envolvidos na criação e delinear seu feitio autoral dando vida a heróis senhores de si dentro de uma dramaturgia plenivalente, como também ao permitir uma re-coloração volitivo-emotiva da ação do ator e dos contempladores do projeto estético, que têm a possibilidade de inserir sua singularidade, como ato responsável, na significação do todo arquitetônico da obra encenada no palco.

Referências
ABREU, L. A. Processo colaborativo: relato e reflexões sobre uma experiência de criação. Cadernos da Escola Livre de Teatro de Santo André, Ano I, Número 0, março de 2003, pp. 33-41.
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003. 476p.
BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução de Paulo. Rio de Janeiro: Forense Universitaria, 2008.
BENJAMIN, Walter.  Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. de Sérgio P. Rouanet.  São Paulo: Brasiliense, 1994.  (Obras escolhidas; v. 1).
FRATERNAL COMPANHIA DE ARTE E MALAS-ARTES. Breve histórico. 2007. Disponível em: < http://www.fraternal.com.br/articles.php?id=6>. Acesso em 15 jun. 2010.
FREIRE, E.; ABREU, L. A. As coisas nascem do desejo. p. 11-16. In: FRATERNAL. Bodandá: auto do migrate. São Paulo:Editora EME, 2004.
MACHADO, I. Gêneros discursivos. p.151-166. In: BRAIT, B. (org). Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2010. 4 ed. 3 reimpressão.
MEIHY, Jose Carlos Sebe Bom. Manual de historia oral. 4 ed. Sao Paulo: Loyola, 2002.
MELO, L. E. Estrutura da narrativa ou gêneros, mundos, lugares discursivos & companhia? p. 177-186. In: BRAIT, B. (org). Bakhtin, dialogismo e construção do sentido. 2ª ed. Ver. Campinas: Editora da UNICAMP, 2005.
MONTENEGRO, A. I. História e memória: a cultura popular revisitada. São Paulo: Contexto, 1994.

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