segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Sarah Freitas Rabêlo

Monologismo dialógico: polifonia e responsividade bakhtinianas no discurso de Padre António Vieira
Sarah Freitas Rabêlo*

Todo mono-ato gera um diálogo-reação, e o dialogizar é um
convite a um posicionamento.”(Augusto Rodrigues, 2010)

Pensar a arquitetura dos sermões de Padre António Vieira é navegar na polifonia, no dialogismo e na responsividade de Bakhtin.
A polifonia pode ser sugerida nos sermões como resultado do constante dialogismo – aqui categorizado em monologismo dialógico –, demonstrando a responsividade entre o ato do pregador e o conteúdo do discurso a ser proferido. Trata-se do existir-evento presente em Bakhtin (2010): o ato do discurso dá-se de modo singular no existir-evento. Um discurso uma vez já proferido não poderá ser retomado para ajustes. Nesse sentido, tem-se a responsividade sobre o conteúdo-sentido conferido ao texto. O caráter transcendente que um discurso adquire deve-se exatamente à expectativa de responsividade empregada por seu autor, fato evidente nos sermões de Vieira.
Proposto por Bakhtin, o aspecto do conteúdo-sentido e seu caráter emotivo-volitivo (a entonação dada à palavra) elevam a concretude de um discurso responsável no qual interagem autor e ouvinte. Com isso, o conteúdo do discurso adquire valor: “Enquanto eu crio esteticamente, reconheço responsavelmente com isso o valor do que é estético [...] com isso se reconstitui a unidade do motivo e da finalidade, da realização verdadeira e do sentido do seu conteúdo.” (BAKHTIN, 2010)
Em “Sermão da sexagésima”, o autor tem como eixo temático primordial a responsabilidade do pregador com semear a palavra de Deus, atribuindo tal competência a ele próprio: “Sabeis, cristãos, porque não faz fruto a palavra de Deus? Por culpa dos pregadores. Sabeis, pregadores, porque não faz fruto a palavra de Deus? Por culpa nossa.”(VIEIRA, 1965, grifo nosso)
Neste sermão, Vieira faz uma análise profunda sobre a responsabilidade do pregador relacionada ao problema da falta de efeitos do Evangelho. Ele afirma que os pregadores não atingem os corações dos ouvintes porque já não há mais uma relação entre ação e discurso. Ou seja, o pregador não pratica – não age – de acordo com o que tenta semear nos sermões, havendo, assim, uma necessidade de se revisar o papel do pregador (semeador). Neste sermão-poética se dá a unidade do motivo com a finalidade. Logo, a responsabilidade não advém das atitudes dos ouvintes e, muito menos, da palavra de Deus, mas sim das obras do semeador.
É nesse contexto do responsável e do responsível que Bakhtin introduz sua noção de ética:
Cada pensamento meu, junto com o seu conteúdo, é um ato ou ação que realizo – meu próprio ato ou ação individualmente responsável [postupok]. É um de todos aqueles atos que fazem da minha vida única inteira um realizar ininterrupto de atos [postuplenier]. Porque minha vida inteira como um todo pode ser considerado um complexo ato ou ação singular que eu realizo. (BAKHTIN, 1993).

Paralela à noção bakhtiniana de responsividade do ato, bastante complexa é a ideia que Vieira atribui entre palavras e obras, em vez de palavras e pensamentos. O semeador deveria estar comprometido com o primeiro, quando sua vida é exemplo da prática da palavra de Deus. Todos estes fatores fazem parte da responsividade: o conteúdo-sentido do existir-evento dado em relação dialógica com o ouvinte.
Ao relacionar dialogismo e monologismo como partes estruturais do discurso, Bakhtin os apresenta de modo fronteiriço (apesar de maior observância no dialógico). O primeiro consiste na atenção dada ao discurso do outro, observar os pontos essenciais, para então dialogar com ele. Toma-se a posição de ouvinte/observador. Embora um sermão religioso seja considerado, à primeira vista, como estritamente monológico, não é exatamente desta forma que analisamos o discurso de Padre António Vieira. É notável sua preocupação em semear a toda criatura, fazendo inclusive críticas àqueles pregadores que montam um discurso exageradamente “ornamentado” que acaba por não atingir sua finalidade: “Que diferente é o estilo violento e tirânico que hoje se usa! Ver vir os tristes passos da Escritura, como quem vem ao martírio;” (VIEIRA, 1965, grifo nosso)
Da mesma maneira, Bakhtin concebe que o discurso deve estar em plena relação dialógica com os ouvintes:
Cada enunciado é pleno de ecos e ressonâncias de outros enunciados com os quais está ligado pela identidade de comunicação discursiva [...]. É impossível alguém definir sua posição sem correlacioná-la com outras posições. Por isso, cada enunciado é pleno de variadas atitudes responsivas a outros enunciados de dada esfera da comunicação discursiva.(BAKHTIN, 2003, p. 297 apud DIAS, 2010)

Sendo repleto de imperativos e interrogações, o discurso de padre António Vieira marca essa fronteira entre monológico e dialógico. Estabelece o monologismo dialógico que relaciona liberdade do autor com a vida cotidiana do ouvinte. Há de haver uma única matéria no sermão, mas isto não significa que não haverão opiniões diversas acerca desta: “Ao monologizar-se , a consciência criadora é completada com palavras anônimas.[...] Depois, a consciência monologizada entra com um todo único e singular em um novo diálogo.”(BAKHTIN, 2003 apud RODRIGUES, 2010)
Para melhor explorar esta ideia, vejamos a analogia que Vieira faz entre a estrutura de uma árvore e o poder da palavra de Deus – discurso:
Assim há de ser o sermão: há de ter raízes fortes e sólidas, porque há de ser fundado no Evangelho; há de ter um tronco, porque há de ter um só assunto e tratar uma só matéria; deste tronco há de nascer diversos ramos, que são diversos discursos, mas nascidos da mesma matéria e continuados nela. (VIEIRA, 1965)

Um mesmo discurso será interpretado de diversas formas por diferentes ouvintes que farão diálogos também distintos. Trata-se da polifonia: as várias vozes oriundas dos posicionamentos acerca do discurso.
Essa relação fronteiriça do “monologismo dialógico” permite contatos entre a cultura oral e a formalidade do sermão. O ponto de interseção entre autor e sociedade apresenta-se como ideal no semear de Vieira. Apreender polifonia às reações do ouvintes é primordial neste gênero híbrido. A finalidade do sermão não consiste em proporcionar prazer ao ouvinte, mas o contrário. O discurso deve gerar culpa, arrependimento e reflexão:
A pregação que frutifica, a pregação que aproveita, não é aquela que dá gosto ao ouvinte, é aquela que lhe dá pena. Quando o ouvinte a cada palavra do pregador treme; quando cada palavra do pregador é um torcedor para o coração do ouvinte; quando o ouvinte vai do sermão para casa confuso e atónito, sem saber parte de si, então é a preparação qual convém, então se pode esperar que faça fruto: Et fructum afferunt in patientia. (VIEIRA, 1965)

Esta passagem do “Sermão da sexagésima” explora a questão dialógica do discurso religioso. Seu resultado atribui reflexões profundas, onde o ouvinte vê-se como parte integrante daquele discurso e estabelece uma relação polifônica.
O que se pretendeu demonstrar foi a força de um discurso responsável. Por meio da sua estética monológica-dialógica e reverberações polifônicas e responsíveis, Vieira atraiu – e ainda atrai – multidões que assimilam suas verdades e se constituem como sujeitos dialógicos. Apresenta a simbiose entre ética e estética e nos mostra a necessidade da quebra de paradigmas com relação ao discurso aparentemente monológico.
Lança-se aqui um convite para melhor analisarmos esses “mono-atos” de Vieira e seu caráter responsável. E que permaneçam assim os seus ecos: o discurso inconcluso à espera de novas leituras e novos diálogos.

*Sarah Freitas Rabêlo é aluna de graduação do curso de Letras pela Universidade de Brasília – UnB. Este trabalho foi orientado pelo Prof. Dr. Augusto Rodrigues da Silva Júnior (TEL/UnB). E-mail: sarah.letrasunb@gmail.com

Referências bibliográficas
BAKHTIN, Mikhail M. Para uma filosofia do ato responsável. [Tradução de Valdemir Miotello & Carlos Alberto Faraco] São Carlos: Pedro & João editores, 2010.
____________________Para uma filosofa do ato. Tradução de Carlos Alberto Faraco e Cristóvão Tezza de Toward a Philosophy of the Act. Austin: University of Texas Press, 1993 apud DIAS (2010).
DIAS, Ana Beatriz Ferreira. Apontamentos sobre excedente de visão em relações de conflito: uma discussão ética. 2010. Disponível em:
RODRIGUES, Augusto. Literatura e cultura: o complexo problema do dialogismo e a metodologia do sistema crítico polifônico de Mikhail Bakhtin. Brasília: 2010. Disponível em:
VIEIRA, Padre António. Sermão da Sexagésima. Em: Sermões escolhidos. São Paulo: 1965. Disponível em:

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