terça-feira, 11 de outubro de 2011

Edwiges Zaccur

Interação em múltiplas linguagens: responsividade, ética e estética
Edwiges Zaccur
edwigeszaccur@gmail.com
Universidade Federal Fluminense

Poderia começar esse texto ensaiando uma definição de interação verbal, que seria sempre muito limitada e simplificadora. Nem mesmo um conceito, por mais amplo que fosse, poderia traduzir em palavras o alcance da interação verbal que constitui,  segundo Bakhtin, “a realidade fundamental da língua”. Nesse sentido, quando muito, podemos enfatizar as circunstâncias em que uma interação acontece; os interlocutores que nela se implicam (no mínimo dois socialmente organizados ou, pelo menos, um interlocutor virtual); os efeitos que a interação produz; os atos responsivos ativos que gera; a ressonância que seguirá produzindo. Nesse sentido, mesmo o grito de um recém-nascido se lança em direção a outro. Sem a responsividade desse outro, como a vida que principia poderia realimentar sua atividade mental ou como encontraria nutrientes afetivos para desenvolver-se (cyrulnik, através da expressão, realimentar sua atividade mental? 
Sendo o humano um ser de resposta, o ato responsável já é uma resposta. E que dizer da interação em múltiplas linguagens, em que os interlocutores implicam na dimensão de responsividade-responsibilidade? Mais do que um jogo de palavras, esse binômio traduz o ato responsivo de quem não só responde ao outro, como de algum modo, também  emite uma resposta responsável. Nessa relação de alteridade em que o eu e o outro se constituem, é que se embasa a arquitetônica bakhtiniana. Como sublinha Geraldi, somos cada um com o outro na irrecusável continuidade da história. (Geraldi, 2004, 229)
Não por acaso, Bakhtin, além de questionar o objetivismo abstrato que absolutizava a língua como coisa em si mesma, apartada dos interlocutores respondentes e replicantes, também refutou a orientação do subjetivismo individualista que absolutizava o EU, com seus desejos e emoções, acionando a centelha subjetiva e individual da criação. E, sobretudo, se contrapôs aos mais exacerbados idealistas românticos que chegaram a rejeitar a faceta externa da expressão como “deformação da pureza do pensamento interior”(1989, 111). Para Bakhtin, ao contrário, não é a atividade mental que organiza a expressão, mas é expressão que organiza a atividade mental e a modela segundo uma orientação (1989, 112).
No entanto, ao considerar que a palavra falseia o que se passa no âmago da alma, o exacerbado idealismo individualista atirou no que viu e, mesmo tendo errado o alvo, acertou no que ainda não podia  ver: uma compreensão difusa de que a expressão oral ou escrita pode não ser suficiente, por si só, para dizer de  emoções e desejos que perpassam uma situação social imediata.
Eis que a invenção do cinema tornou possível expressar o indizível de situações sociais vividas em interação. Não por acaso, escolho o filme de Almodóvar, “Fale com ela”, para retomar bakhtiniamente o diálogo, considerando a impossibilidade de um álibi que nos proteja da relação vida-morte que atravessa o filme.  Em “Fale com ela”, os closes sublinham olhares, gestos e expressões fisionômicas, expressando o binômio responsividade-responsibilidade em múltiplas linguagens perpassadas de sentido ético. Acresce que o cineasta consegue ainda tornar apreensível uma aura estética que, nas interações cotidianas,  costuma ganhar visibilidade, quando um toque de paixão passa a  colorir o ato mais banal.
Logo às primeiras cenas do filme, o espectador é convidado à contemplação de um espetáculo de balé que, por sua vez, é visto de dentro do filme por dois personagens que ocupam poltronas vizinhas no teatro. Na condição de contemplador ativo e respondente, tanto Benigno como Marco se emocionam diante do balé em que duas mulheres se debatem, até que  responsivamente um homem as socorre, retirando da cena  objetos em que, aturdidas, esbarravam. Seriam sonâmbulas? Seriam dementes? Seriam cegas?  A resposta a essas perguntas  pouco  importa. Mais importante é o impacto da situação-limite que as bailarinas encenam, instigando o contemplador (na tela e fora dela) a experimentar vivências estéticas que acordam sua responsividade. Na platéia do teatro,  Benigno, emocionado, se comove ainda mais  ao ver a emoção boiando no olhar de um ainda desconhecido Marco. Esse excedente de visão de Benigno em relação a Marco se revela prenunciador de uma amizade que viria a se consolidar quando, ao se encontrarem num hospital cuidando de duas mulheres em coma, se tornam confidentes.
Inclusive, o instigante título do filme “Fale com ela” expressa o conselho dado pelo enfermeiro Benigno ao escritor Marco que, à cabeceira da amada, vivia uma situação aparentemente similar, mas tão diferente da que era experimentada por ele. Similar, pois o escritor acompanhava a  toureira Lydia em coma, enquanto o enfermeiro Benigno se ocupava, com extrema dedicação, da bailarina Alicia. No entanto, mesmo em face de situações sociais assemelhadas, suas interações eram muito distintas. Embora capaz de se expressar tão bem que ganhava a vida valendo-se das palavras, Marco emudecia diante do que a racionalidade levava seus olhos a ver apenas um corpo inerte, no umbral da morte. Benigno, ao contrário, movido pela compreensão que ia além do que chamamos de realidade objetiva, a partir do modo como compreendia a situação, conseguia ver uma vida que teimava em sobreviver (Von Foerster , 1996). Marco não conseguia elaborar aquela vivência que o impactava. Benigno  transformava tal vivência na experiência mais radical de sua vida. Não por acaso, repetidas vezes provocava o novo amigo com um conselho banhado em sua experiência: “Fale com ela”. 
A preposição ganha força nesse contexto em que suas conversas combinam com os interesses de Alicia: balé, cinema mudo, viagens, músicas. Nos dias de sua folga, é por ela que Benigno vai ao teatro, é por ela que vai ao cinema, é por ela que se mantém antenado com os programas culturais. Em sintonia com Benigno, a professora de balé também investia na conversação, mesmo sem esperar uma resposta imediata, apostando num horizonte de futuro que apenas ela e Benigno conseguiam vislumbrar, ao falarem com Alícia. Diriam os descrentes que Benigno monologava diante  da bailarina inerte. Mas quantas vozes ressoavam na sua, dialogizando-a?
Sua palavra é função de sua interlocutora privilegiada.  Nesse sentido, as enunciações de Benigno são sulcadas pela ressonância senão da voz, da presença de Alicia, desde o tempo em que, de sua janela contemplava siderado seus passos de dança na academia em frente à sua casa. Após o acidente que a deixou em coma, na condição de enfermeiro, ele se excede em cuidados dispensados à paciente: associa ao toque de quem cuida, a palavra derivada do mundo dos interesses dela, a música  que  ritmava os movimentos de sua dança, o aroma  dos óleos utilizados. Enfim ele cria com ela  e para ela uma ambiência de múltiplas linguagens encharcadas de  uma estranha sinergia: o que dela provém,  a ela retorna, numa espécie circuito comunicante.
Pode-se perguntar, se essa ênfase em falar com ela não inscreve a palavra num lugar hierarquicamente superior? Mas a palavra, como ensina Bakhtin, se faz acompanhar de acentos que sublinham as mais variadas oscilações das emoções presentes nas situações sociais. Como exemplo, Bakhtin recorre ao diálogo criado por Dostoievski no “Diário de um escritor” envolvendo  seis amigos bêbados que se valem da mesma palavra outra, ressignificada a cada fala, a cada  entoação expressiva ditada pelo contexto. Palavras  são, assim,  signos camaleônicos: palavras sussurram, palavras urram, palavras tocam, palavras repelem,  palavras adoçam, enfim,  revestem-se de novos sentidos como bem sabia Mario de Andrade ao conclamar em seu Prefácio Interessantíssimo: “versos não são para ser lidos com olhos mudos”.
As palavras, muito frequentemente, se fazem sublinhar e até contestar pela linguagem não verbal que as dialogiza. No filme, como na vida, tudo dialoga, recursiva e projetivamente. A  subjetividade de Benigno é intersubjetivamente alimentada ao longo do tempo em que contempla de sua janela os passos de dança de Alicia e platonicamente se apaixona, ou diante das cenas daquele balé que abre o filme. Eis que dentro filme a inserção do filme “O amante minguante”, não por acaso mudo, precipita os acontecimentos. Tendo como de costume assistido ao filme para contar o que viu à Alicia, Benigno percebe que o filme  mexera com seus sentimentos e desejos. Ao sentir-se “esquisito” e estranhar  o que sentia,  o que viu materializado na tela replica  o que sua mente, ainda confusa, desejava. Teria se aproveitado das circunstâncias para extravasar sua sexualidade reprimida? Seria uma tentativa desesperada de animar aquele corpo exangue? Seria um ato execrável ou patológico do enfermeiro? Seria a possibilidade de se doar radicalmente, inoculando o sêmen da vida em Alícia? Seria um gesto canhestro de responsividade-responsibilidade de quem tanto responde como se torna responsável? 
Há que explicar ou apenas compreender Benigno? Como contempladores ativos, podemos estabelecer qualquer juízo de valor. Trata-se de um crime contra a ética? De um caso de estupro num acesso de loucura? De um homem desprovido de razão? Mas o filme de Almodóvar não foca nenhum ato que evoque violência. Apenas insinua que algo aconteceu quando Benigno confidencia a um surpreendido Marco sua intenção de se casar com Alicia.
Voltemos à responsividade-responsibilidade também tão presente nas atitudes de Marco. Diante do espetáculo de balé, Marco chora; viajando por cenários,  escreve; tendo sofrido a dor de ser abandonado, pode se solidarizar com a mulher apaixonada que esconde sua fragilidade sob a máscara da toureira destemida. Compreendendo o sofrimento humano, Marco contempla com um excedente de visão tudo o que testemunha, do drama de Lydia, a toureira que sofre por amor; ao de Benigno, o enfermeiro apaixonado pelo objeto de seus cuidados, de permeio com o seu próprio.
Depois que Marco, sem esperança, parte em nova viagem, Lydia, a toureira convencionalmente cuidada, vem a falecer. Quanto a Benigno, uma sequência de efeitos se produz, a partir do momento em que foi constatada a gravidez de Alicia. Incriminado, processado e condenado  à prisão, ele se desespera pela ausência de notícias de Alícia. Ao sabê-lo preso, Marco se apressa em visitá-lo. Mas não o julga, apenas busca compreender o outro, compreendendo-se.
Sem se propor a dar uma última palavra sobre Benigno, o filme de Almodóvar provoca o diálogo, diante de situações sociais encharcadas de responsividade e responsibilidade, vividas interativamente na arte como na vida. Para realizar seu intento, o cineasta constrói a sintaxe do filme, incorporando cenas de balé, do filme mudo “O Amante minguante”, dos clips musicais entremeados aos flash-backs.  Mas o fio que intertextualmente  articula tudo, na sintaxe plural de diferentes linguagens, incide no binômio vida-morte.
Cada contemplador(a) pode se sensibilizar a entrar nos dramas daquelas personas  pela janela que mais  toque sua sensibilidade. O balé de abertura que anuncia cenas densas que virão; a música Cucurrucucu, paloma que, na voz dolente de Caetano Veloso, indicia o trágico fim da toureira Lydia; o filme O amante minguante que expressa o indizível e precipita acontecimentos; o último balé, antes  alvo da conversação que, nas cenas finais, projeta novo encontro -  nada que se apresenta na tela é gratuito.
O binômio morte-vida, que atravessa as cenas, também as reveste de um plurilinguismo de que é metáfora o clip Cucurrucucu, cantado por Caetano Veloso. O “cantante brasiliano” confere acentos singulares não só às palavras que canta em castelhano, como também à expressão melancólica, que imprime ao cantar a seu modo, mas travestido de tangueiro, o limiar de uma partida, de uma perda dolorosa, na fronteira de vida-morte. 
Dicen que por las noches
no mas se le iba en puro llorar;
dicen que no comia,
no mas se le iba en puro tomar.
Juran que el mismo cielo
se estremecia al oir su llanto,
cómo sufrió por ella,
y hasta en su muerte la fue llamando:
ay, ay, ay, ay, ay cantaba,
ay, ay, ay, ay, ay gemia,
Ay, ay, ay, ay, ay cantaba,
de pasión mortal moria.

E o contemplador ativo do filme de Almodóvar como dialoga com “Fale com ela”? Cada sujeito singular interage e responde a seu modo.  Ao exibir o  filme em turmas do Curso de Pedagogia, pude captar respostas as mais diferenciadas. O filme mudo inserido no meio do filme, por exemplo, costuma provocar um riso coletivo de imediato, mas terminada a sessão parece ser invisibilizado. Ressonâncias do tabu da sexualidade? Benigno, por sua vez, passa muito frequentemente de anjo a demônio, dependendo dos olhos que o veem a partir de determinados juízos de valor. Não falta quem o aponte como ingênuo e doente mental; poucas pessoas, a exemplo de Marco, tentam compreender os seus enigmas. Qualquer que seja a interpretação, cada uma traz consigo uma história e uma ideologia que conforma os conceitos de moral, de política e de conhecimento. Mas até quem não gosta do filme destaca cenas que provocam impacto, entre elas a de um quase irreconhecível Caetano Veloso, vestido como um cantor de tango e com os cabelos gomalinados. Ou a cena de um grito de socorro da corajosa Lydia que enfrenta touros, mas se apavora diante de uma cobra.
Assim, quando a sessão termina, recomeça a discussão do que diferentes compreensões provocavam a ver. Até porque o diálogo não pode cessar, a exemplo das últimas palavras que Benigno deixa em carta para Marco: “Para onde quer que eu vá, fale comigo”. E Marco, aquele racionalista que não conseguia falar com sua amada Lydia em coma, que tampouco conseguiu contar ao amigo que Alicia perdera o bebê mas se recuperara,  de repente fala com Benigno, sobre a campa rasa em que o depositaram. Decididamente Almodóvar me parece um cineasta bakhtiniano...
Por fim, mas não por último, pois não há últimas palavras,  para quem se aplica e implica em estudos bakhtinianos como contemplador ativo que faz das vivências motivo de reflexão, quero enfatizar uma faceta pedagógica presente nos cuidados terapêuticos com que Benigno se dedicava visceralmente a Alicia. Movido pela crença no devir, ecoa em seus atos uma profecia auto-realizável de que Alicia  retomará sua vida em suspensão. Assim pensando, cuida do corpo quando massageia os músculos da bailarina, de modo a mantê-los “prontos” para o despertar; mas cuida simultaneamente da mente, ao lhe trazer subsídios que atendam aos seus interesses, na esperança de alimentar, de fora, algum nível de atividade mental. E o faz diuturnamente, na certeza de produzir, interativa e iterativamente efeitos sobre o quadro estável em que se encontrava Alicia.
O que sabe, o que intui Benigno, quando insiste falando com ela, como quem segue um programa, por longos quatro anos?  Não há como discernir ou separar o saber de experiência feito que orienta seu fazer-dizer. Mas o filme como um todo nos instiga a repensar respostas responsáveis provocadas por uma espécie de prática terapêutico-filosófica e programático-construtiva a que Benigno se dedica. Impossível não pensar uma analogia com o saber-fazer docente pensado como um fazer com freireano, atento ao outro para favorecer um diálogo responsivo-responsável com o outro que habita a escola. Mas esse foco já não seria objeto de outro núcleo temático? Provavelmente sim. Mas se vida e arte, abertas que são a múltiplas conexões, não respeitam divisões e categorias, por que não lançar pontes entre os eixos temáticos, reabrindo a conversa entre eles?

Referências bibliográficas
ANDRADE, Mário. Prefácio Interessantíssimo in Poesias Completas. São Paulo, Livraria Martins Editora, 1966.
BAKHTIN, M.  Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo, Hucitec, 1990. 
CYRULNIK, Boris.. La naissance de sens. Paris, Hachette. 1991
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido.  Rio de Janeiro: Afrontamento. 1975.
GERALDI, Wanderley. Alteridades espaços e tempos de instabilidade. In L Negri e R. P. de Oliveira. (Orgs). Sentido e significação em torno da obra de Rodolfo Ilari, São Paulo, Contexto, 2004.
VON FOERSTER, H. Visão e conhecimento:  Disfunções de segunda ordem in Novos paradigmas, cultura e subjetividade. Dora  Schnitman (org). Porto Alegre:Artes Médicas, 1996.

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