segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Mara Rodrigues Tavares

Caderno de anotações: apontamentos fotográficos diante do olhar extraposto
Mara Rodrigues Tavares
Mestranda em Artes – UFPA/ICA

 “Quero falar hoje de um homem singular, originalidade tão poderosa e tão decidida...
Assim, para entrar na compreensão de G., anotem imediatamente o seguinte: a curiosidade pode ser considerada como ponto de partida de seu gênio. Lembram-se de um quadro (e um quadro, na verdade!) escrito pelo mais poderoso autor desta época e que se intitula L’Homme des Foules (O Homem das Multidões)? Atrás das vidraças de um café, um convalescente, contemplando com prazer a multidão, mistura-se mentalmente a todos os pensamentos que se agitam à sua volta. Resgatado há pouco das sombras da morte, ele aspira com deleite todos os indícios e eflúvios da vida; como estava prestes a tudo esquecer, lembra-se e quer ardentemente lembrar-se de tudo. Finalmente, precipita-se no meio da multidão à procura de um desconhecido cuja fisionomia, apenas vislumbrada, fascinou-o num relance. A curiosidade transformou-se numa paixão fatal, irresistível!
....
A multidão é seu universo, como o ar é o dos pássaros, como a água, o dos peixes. Sua paixão e profissão é desposar a multidão. Para o perfeito flâneur, para o observador apaixonado, é um imenso júbilo fixar residência no numeroso, no ondulante, no movimento, no fugidio e no infinito. Estar fora de casa, e contudo sentir-se em casa onde quer que se encontre; ver o mundo, estar no centro do mundo e permanecer oculto ao mundo, eis alguns dos pequenos prazeres desses espíritos independentes, apaixonados imparciais, que a linguagem não pode definir senão toscamente. O observador é um príncipe que frui por toda parte do fato de estar incógnito.
...
 Assim o apaixonado pela vida universal entra na multidão como se isso lhe aparecesse como um reservatório de eletricidade.
...
Agora, à hora em que os outros estão dormindo, ele está curvado sobre sua mesa, lançando sobre uma folha de papel o mesmo olhar que há pouco dirigia às coisas, lutando com seu lápis, sua pena, seu pincel, lançando água do copo até o teto, limpando a pena na camisa, apressando, violento, ativo, como se temesse que as imagens lhe escapassem, belicoso, mas sozinho e debatendo-se consigo mesmo. E as coisas renascem no papel, naturais e, mais do que naturais, belas; mais do que belas, singulares e dotadas de uma vida entusiasta como a alma do autor. A fantasmagoria foi extraída da natureza. Todos os materiais atravancados na memória classificam-se, ordenam-se, harmonizam-se e sofrem essa idealização forçada que é o resultado de uma percepção infantil, isto é, de uma percepção aguda, mágica à força de ser ingênua.
 Baudelaire


Baudelaire nos apresenta a figura do Flâneur, homem que vaga pela cidade buscando apreender o tempo e o espaço, criando um símbolo do contemplador da realidade, do cotidiano, da sociedade francesa do século XIX. Com as práticas sociais da contemporaneidade, essa figura, que se diluía no tempo, ganha uma outra “figuralidade”, um outro personagem do contemporâneo assume as práticas da flânerie: o fotógrafo.
A partir do seu lugar contemporâneo, o fotógrafo nos evidencia o mundo das imagens fotográficas, cujo conceito se fundamenta na fotograficidade1[1].
“Ela designa a propriedade abstrata que faz a singularidade do fato fotografado – e esse fato remete tanto ao sem-arte quanto à arte” (SOULAGES, 2010). O inacabável, o fato de a fotograficidade ter em si as potencialidades manifestas ao infinito, faz com que a fotografia seja a arte do possível. Com isso, o ato fotográfico se torna um evento, visto que, ele é irreversível. Uma vez que o ato foi feito não se pode ser indiferente a sua existência; em relação ao fotografo, ele pode até forjar um “fotografar de novo”, mas o instante, o processo desencadeado, assume outra estrutura. Para Bakhtin (2010), “no momento do ato, o mundo se reestrutura em um instante, a sua verdadeira arquitetura se restabelece, na qual tudo o que é teoricamente concebível não é mais que um aspecto”.
Esse “caráter do evento” único, singular, irrepetível, que caracteriza o ato, se realiza na existência de cada um, no seu valor e na sua unidade de vivo devir e de autodeterminação. Ele pode perder sua qualidade especifica quando é formatado sob um ponto de vista teórico. Neste caso, o ponto de vista científico, o filosófico, o historiográfico e o estético, quando determinantes do sentido do ato, o deslocam para um valor genérico, para um sentido universal e de significado abstrato.
A fotografia quando materializada em uma foto, impressa no papel fotográfico ou disponível virtualmente em pixels, quando passa a existir configurada e enquadrada pelos olhos do fotografo assume uma materialidade teórica, de conteúdo-sentido. Assume uma estrutura, que mesmo especifica, passa a integrar-se no arquivo da cultura visual.
 Ela se torna texto visual, e por conta disso e nesse instante, mesmo estando no arquivo da cultura visual, sua potencialidade se reestrutura novamente em outras potencialidades. Sua constituição polissêmica, de vários possíveis, compõe em suas estruturas indiciais as “referencialidades” das coisas do mundo, sob os signos inscritos na foto, ficcionando mundos, construindo-os em atos composicionais, configurando e re-configurando sentidos que autorizam várias leituras possíveis.
Leituras essas, que estão suspensas sob os olhos do sujeito, que de forma específica e qualitativa, se faz através da visão estética, do excedente de visão, do olhar extraposto tocado empaticamente e que vai constituir-se em outros enunciados a partir do seu lugar, já não estando mais nem no lugar do fotógrafo nem no lugar do ser fotografado, mas entreposto e através deles, construindo uma arquitetônica, que se volta para a compreensão das relações produtoras de sentidos. Neste caso, Machado (2010) localiza o excedente de visão no mundo das relações arquitetônicas:
O excedente de visão traz para o centro dos debates diferentes tensionamentos: a transformação do inacabamento, a fronteira entre consciências, os embates de pontos de vista, o ato ético e a ação estética. Com isso o excedente de visão projeta a cronotopia da criação arquitetônica... A vida inacabada entra para a construção estética de uma estrutura arquitetônica acabada. O acabamento, contudo, só se torna visível ao olhar do outro, onde ganha visibilidade estética (p. 227).

 Desse momento estético, do ato de contemplar sob o signo da empatia, se manifesta o olhar extraposto individual, onde situado fora de si, entra num estado de compenetração, vivendo os sentimentos do outro, para que depois se possa retornar a si e com consciência dá o acabamento da construção estética. 

Uma leitura em filigranas fotográficas

 “A foto é literalmente uma emanação do referente. De um corpo real que estava ali, são partes das radiações que vêm me tocar, eu que estou aqui; pouco importa a duração da transmissão; a foto do ser desaparecido vem me tocar como os raios atrasados de uma estrela”  Fhilippe Dubois


Fotografia: Fidalgo Pedrosa
Um mendigo, com seu chapéu para esmolar, entre dois manequins-homens bem vestidos para momentos sociais diferentes compõem uma ideia de imagem crítica do consumo. A postura dos manequins contrasta com a posição do mendigo, uma vez que a postura dos manequins sugere altivez, enquanto a do mendigo o mostra, com as pernas dobradas entre si, sentado no chão, deixando-o no plano mais baixo que o dos manequins. 
Com a mão na nuca e olhos para baixo, em direção ao chão – quem sabe em direção a sua posição social – pode-se dizer que o mendigo está pensativo, enquanto que os manequins, de olhos para o horizonte, são objetos inconscientes, irreflexivos, mas bem vestidos e postos para servirem de modelos para quem vai comprar suas altivezes.
Nessa relação de oposição que compõe a fotografia, a ideia do consumo, pode também ser lida pela presença da garrafa de coca-cola, marca conhecida por vários países do mundo. Nesse sentido, o mendigo está inserido, de maneira inversa, nesse sistema de consumo, devido ter a garrafa de coca-cola consumida. Nesse caso, embora não se saiba se foi ele quem comprou ou se foi dada, a marca rotula e “marca o valor das pessoas” e evidencia as contradições, uma vez que ele não está a pão e água, mas sim a pão e coca-cola. A marca Coca-cola agrega em seus valores simbólicos o estar “de bem com a vida”, “onde tudo vai melhorar” e ela é o “signo do bom gosto”, em que se tem “o lado coca – cola da vida”, mas o mendigo que serve como um “contra - modelo”, um “contra – manequim”, um reverso – averso, e que bebeu desse sabor, ainda olha para o chão.
Isso também pode ser compreendido quando vimos, nas várias línguas escritas na vitrine, no mundo global, nos cidadãos do mundo, a palavra escrita preço ou prêmio, que amplia a nossa leitura e permite com que nos indaguemos: Que preço terá que se pagar por esse prêmio? Pelo “jeito coca-cola de ser”.  “Quanto vale ou é por quilo?” – fazendo aqui uma referência ao filme de Sérgio Bianchi.
Associando esse preço/prêmio e essa grande marca, a Coca-cola, pode-se dizer que a garrafa bebida pela metade pelo mendigo é um signo de contradição presente na sociedade de consumo. Mas quem é esse mendigo, então? Será ele esse cidadão? E o fragmento da palavra libre, cuja tradução do espanhol para o português é livre, onde se encontra em tudo isso refletida? O mendigo cidadão do mundo, nas/das ruas, libre? Em que língua? Sob que fragmento?
As vitrines refletem imagens da rua, que espelhadas no vidro fazem com que vejamos duas imagens sobrepostas, múltiplas. O mendigo, na sua vitrine-viva, reflete a sociedade, onde se fixa nele apenas a imagem do que vemos, sem dubiedades. Em cima o lado coca-cola de ser, em baixo o “lado B” esquecido, mas, em ambos planos, os homens-mendigo-manequins estão de sapatos sociais.
...
E de frente o meu olhar extraposto.

REFERÊNCIAS
BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato responsável. São Paulo:Pedro e João, 2010
BAUDELAIRE, Charles.  Sobre a modernidade – o pintor da vida moderna. Rio de Janerio: Paz e Terra, 1996
MACHADO, Irene. A questão espaço-temporal em Bakhtin: cronotopia e exotopia. In: Circulo de Bakhtin: Teoria inclassificável.Campinas, SP: Mercado das Letras, 2010
SOULAGES, François. Estética da fotografia – Perda e permanência. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2010


[1] A fotograficidade designa o que é fotográfico na fotografia.

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