segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Rosali Maria Nunes Henriques

Baú de memórias: análise da obra de Pedro Nava sob a perspectiva bakhtiniana
Rosali Maria Nunes Henriques
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

Ao decidir analisar as Memórias de Pedro Nava sob a ótica da subjetividade bakhtiniana, resolvemos fazer um estudo das referências de Bakhtin sobre as narrativas e sobre o lugar social do narrador e da memória. Mikhail Bakhtin e seu círculo constroem uma teoria enunciativa a partir de pressupostos do materialismo dialético onde a linguagem é dialógica e onde o narrador está localizado em um tempo e espaço. É este lugar do mundo ocupado pelo narrador que faz a sua história ser diferente das histórias de outros narradores. É na especificidade de suas memórias é que reside a sua plenitude.
Bakhtin/Volochínov (2010a) em sua obra “Marxismo e Filosofia da Linguagem” ao discordar de algumas teorias da linguística aponta que a linguagem não é nem um produto de normas rígidas da língua como afirmava a corrente do objetivismo abstrato e nem um produto somente do psiquismo e do interior como afirmavam os adeptos da corrente do subjetivismo individualista. A enunciação segundo Bakhtin e seu círculo é um produto da interação entre dois indivíduos socialmente organizados, pois não existe interlocutor abstrato. Nos pressupostos bakhtinianos é preciso supor um horizonte social e um auditório social na enunciação. E a palavra comporta duas faces, pois “Ela é determinada tanto pelo fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige a alguém. Ela constitui justamente o produto de interação do locutor e do ouvinte.” (BAKHTIN, 2010a, p. 117). Para o círculo bakhtiniano, é a situação social imediata que define a enunciação e o centro organizador não situa no interior e sim no exterior. Por isso, não existe voz isolada na enunciação. E nesse sentido, nas Memórias de Pedro Nava são as vozes da lembrança e o esquecimento que definem a enunciação.
O autor é antes de tudo um prisioneiro de sua época, mas ao mesmo tempo a obra literária está além de seu tempo. Bakhtin (2010a) afirma que não se pode estudar uma determinada literatura isolada de sua cultura, mas as grandes obras foram produzidas séculos antes de sua criação. Para Bakhtin é na grande temporalidade – um tempo além de seu tempo - que residem as grandes obras. Nesse sentido, podemos afirmar que as Memórias de Pedro Nava pertencem a esta grande temporalidade onde é possível ser entendida como um reflexo de seu tempo, mas que nos ajuda a entender o tempo presente e o tempo futuro. Na concepção de Bakhtin, os autores estão dentro da grande temporalidade: desse tempo maior, estendido que abarca tudo. O narrador de memórias, como no caso de Pedro Nava, é um processador de tempos: da temporalidade da ação à temporalidade da narrativa. Segundo Pedro Nava,
“(...) é impossível restaurar o passado em estado de pureza. Basta que ele tenha existido para que a memória o corrompa com lembranças superpostas. (...) A viagem da memória não tem possibilidades de ser feita numa só direção: a do passado para o presente” (NAVA, 1977, p. 221).

Um dos pilares da “arquitetônica” de Bakhtin é o dialogismo. Ao discutir a palavra diálogo, o círculo Bakhtin dá um sentido diferente de outros autores, que a usam no sentido mais estreito (FARACO, 2009). Bakhtin trabalha o dialogismo como conceito, mas principalmente como categoria filosófica. O círculo bakhtiano está preocupado não com os turnos do diálogo face a face, mas com as forças que atuam nessa troca de enunciados e que condicionam o diálogo, ou seja, o movimento dialógico. Para o círculo bakhtiano o que interessa são os sentidos que são resultados da enunciação. As relações dialógicas, no entanto, elas são mais amplas e complexas do que o diálogo face a face, pois além de ser constituidoras do diálogo concreto, elas fundamentam o contexto social do enunciado. Para Bakhtin (2010a), a posição de um sujeito social é importante na compreensão das relações dialógicas, não somente os componentes linguísticos presentes nos seus enunciados.
Um conceito de Bakhtin que é apropriado para uma análise das Memórias de Pedro Nava é a exotopia. A exotopia é o deslocamento do olhar do sujeito em relação a outros sujeitos. O espaço do pesquisador é exotópico, pois o olhar sobre o outro é sempre um olhar distanciado. É o distanciamento da minha visão em relação ao outro.  E o outro é constitutivo do eu. O eu está em constante desenvolvimento. O outro nos completa. Para Bakhtin, o autor permanece fora do mundo por ele representado, pois “Se narro (ou relato por escrito) um acontecimento que acaba de me acontecer, já me encontro, enquanto narrador (ou escritor), fora do tempo e do espaço onde o episódio ocorreu [1].
Nas Memórias de Pedro Nava, o outro é sempre o ponto de partida para a sua narrativa. É com base nos seus personagens que tomamos conhecimento de sua trajetória de vida e de sua família. A riqueza de sua narrativa é feita não somente nas descrições dos fatos e espaços, mas de seus personagens: cheios de nuances e altamente contraditórios. Este olhar sobre o outro se pode verficar em toda a obra de Pedro Nava, mas uma personagem teve muito destaque na sua infância: a sua avó materna. Pedro Nava, sua mãe e seus irmãos foram morar com a avó materna em Juiz de Fora após a morte precoce do pai, aos 35 anos. Num período compreendido de três anos, Pedro Nava conviveu com essa avó matriarca e em relação à ela possuía sentimentos contraditórios. Ao descrevê-la demonstra o fascínio que a sua figura o inspirava:
Pois assim mesmo velha, feia, indiferente e distante a Inhá Luísa tinha uma autoridade imanente, uma imposição natural e uma majestade espontânea que me fascinavam. Lembro-me de segui-la sempre dentro de casa, na chácara, sem ser chamado, sem que ela se dignasse olhar o acompanhante. Eu ia pelo faro, como os cachorros. E foi nessas andanças, atrás de suas saias que pude devassar sua existência impenetrável e pelas imagens que guardei, adivinhar retrospectivamente, um pouco seu pensamento” (NAVA, 1977, p. 20)

O último princípio que queremos utilizar para analisar as Memórias de Pedro Nava é o conceito de autoria. Talvez, o mais importante deles no caso das memórias, a autoria para Bakhtin tem um sentido bem explícito.  Em sua obra “A Estética da criação verbal” Bakhtin discute o papel do autor e do personagem na atividade estética. Segundo Bakhtin (2010b), o personagem é construído pelo autor com base na sua própria imagem e a literatura é uma luta consigo mesmo. Ele aponta uma distinção entre o autor-pessoa e o autor-criador. As personagens, para Bakhtin, se desligam do processo de criação e passam a levar vida autônoma em relação ao autor-criador. Assim, os personagens dos romances ganham vida e se distanciam de seu criador.  Ao analisar o papel do autor na atividade estética, Bakhtin (2010b) aponta uma distinção entre o corpo interior e o corpo exterior. O corpo interior seria o eu e o corpo exterior, o outro. E é na relação entre o eu e o outro que se constroem as narrativas. Dessa forma, ele distingue o eu-para-o-outro (representação do eu devolvida pelo outro), o eu-para-mim (representação que o eu faz de si próprio) e o outro-para-mim (representação que o eu constrói do outro). 
Ao discutir sobre a obra autobiográfica, Bakhtin diz: “Entendo por biografia ou autobiografia (descrição de uma vida) a forma transgrediente[2] imediata em que posso objetivar artisticamente a mim mesmo e minha vida” (BAKHTIN, 2010b, p. 139). A enunciação é a narração de sua trajetória de vida. O autor é parte integrante da narrativa. Nesse caso, há uma coincidência entre o narrador e o personagem (herói). No caso da autobiografia, os outros têm fundamental importância na narração, uma vez que muitas das histórias nos foram narradas por nossos familiares, tais como nascimento, origem, etc. Bakhtin afirma que sem os outros, nossas narrativas não teria unidade biográfica axiológica. Para Bakhtin, o grupo social é muito importante na constituição da subjetividade do sujeito, pois o ser humano é percebido na coletividade e na família.
Bakhtin (2010b) aponta dois tipos de autobiografia: o aventuresco-heróico e o social-de-costumes. O primeiro se baseia na vontade de ser herói, de ser amado e na aceitação pelos outros. O autor aspira à glória e se baseia num individualismo imediato e ingênuo. A vontade de ser amado é a segunda motivação desse tipo de narrativa, pois o amor determina a carga emocional da narrativa. E o último elemento é o desejo de ser aceito pelos outros, de superar a fabulação da vida. Para Bakhtin (2010b, p. 147), “a vida biográfica do primeiro tipo é uma espécie de dança em ritmo lento (...); aqui todo o interno e todo o externo procuram coincidir na consciência axiológica do outro; o externo procura interiorizar-se, o interno exteriorizar-se”.
O segundo tipo, o social-de-costumes, cujo principal elemento é o social possui dois planos: o herói está deslocado do plano interior e as outras personagens são representadas de forma transgrediente. Nos dois tipos, Bakhtin aponta que o autor é sempre um ingênuo, está ligado ao personagem por relação de parentesco e que ele é o elemento constitutivo da obra de arte. Ambos, autor e personagem pertencem ao mesmo universo de valores. Bakhtin afirma que o ato da biografia é unilateral e não existe o eu e o outro, mas dois outros.  Isso porque o autor vive a “incoincidência consigo mesmo e com sua personagem” (BAKHTIN, 2010b, p. 151). As Memórias de Pedro Nava encaixam-se no segundo tipo descrito por Bakhtin, na qual o autor traça um pano de fundo sociológico e de costumes e aponta para uma representação transgrediente dos personagens.
Selecionamos alguns trechos das Memórias de Pedro Nava, na qual o narrador descreve o eu-para-o-outro e o outro-para-mim. Analisando o menino solitário e introspectivo que fora na infância, Pedro Nava descreve suas incursões à sala de estar (sempre fechada) de sua avó:
Eu pulava para dentro e começava a me estrear na solidão minha companheira e a me iniciar na filosofia que adotei depois, de que mais vale o vizinho que a visita, porque – salvo uma ou outra exceção – amo a vista dos homens, tendo tédio de sua companhia.” (NAVA, 1977, p. 63).

E ao descrever o gênio difícil de seu bisavô materno, Pedro Nava apresenta uma herança familiar materna de pessoas geniosas e intolerantes:
A herança do bisavô foi a legenda que deixou e mais o gênio feroz que, com mutações especiais, passou para os filhos. Tia Regina era religiosa, praticava a virtude – mas com a intolerância de um Torquemada. Tio Luís e tio Júlio eram dois violentos, dois brutais, o primeiro pouco, o segundo muito inteligente – ambos de uma lubricidade exemplar. Minha avó Maria Luísa, que foi mãe admirável, sogra execrável, sinhá odiosa para escravas e crias, amiga perfeita de poucas, inimiga não menos perfeita de muitas e corajosa como um homem – era de boca insolente e bofetava fácil. Te quebro a boca, negra. E quebrava.” (NAVA, 1983, p. 223-224)

Sobre si mesmo, Pedro Nava pouco fala. Mas as falas são sempre de um menino solitário[3], inteligente e que já sabia o peso da vida. A morte precoce do pai trouxe uma triste realidade. Como filho mais velho de cinco irmãos (a mãe estava grávida da última filha quando o marido faleceu), ele assumiu as responsabilidades de ser o homem da casa. A família foi morar com a avó materna em Juiz de Fora e este período vai marcá-lo profundamente pelas humilhações sofridas: “Não importa muito a direção. O que sei é aquela encosta do morro e a sombra que dele se derramava sobre a chácara da Inhá Luísa ficaram representando o lado noruega da minha infância. Nunca batido de sol. Sempre no escuro. Todo úmido, pardo e verde, pardo e escorrendo” (NAVA, 1977, p.3).
Ao falar sobre a morte de seu pai, Pedro Nava apresenta as angústias da tragédia que viria a seguir: “A impressão mais forte desse tempo é o isolamento imenso em que vivi. A família cristalizara-se em torno do leito do meu pai e o resto da casa era o vácuo em que crianças caíam com igual velocidade, como as pedras, os chumbos e as penas dentro de um tubo de Newton” (NAVA, 1983, p. 437).
Ainda sobre a perda do pai, Pedro Nava fala do sofrimento do período:
Não sei se sofri na hora. Mas sei que venho sofrendo destas horas, a vida inteira. Ali eu estava sendo mutilado e reduzido a um pedaço de mim mesmo, sem perceber, como paciente anestesiado que não sente quanto amputam a sua mão. Depois a ferida se cicatriza, mas a mão perdida é dor permanente e renovada, cada vez que a intenção de um gesto não se pode completar” (NAVA, 1983, p. 441)

Ao analisar as Memórias de Pedro Nava sob a perspectiva bakhtiniana podemos ver como ele constrói suas memórias a partir da fala de seu universo cotidiano: família e amigos. Suas Memórias são ao mesmo tempo um recurso para driblar a morte, mas também uma forma de vingança contra aqueles que o maltrataram no passado. E isso se reflete na forma como ele descreve seus personagens. Alguns são retratados de forma bem positiva como seus tios Antônio Sales e Alice Sales e outros de forma magoada como sua avó materna, Maria Luísa. Somos tentados a gostar dos tios e odiar essa avó escravocrata. Sempre retratada pelo neto com cores fortes, Maria Luísa Cunha Jaguaribe é despótica e mandona, cuja influência sobre as filhas e genros era notória:
Era adorada pelas filhas e dominava-as despoticamente. Por intermédio delas queria mandar nos genros. Era fatal seu conflito com o Paletta e com meu pai. Só Tio Meton, muito hábil, possuía suas boas graças.” (NAVA, 1977, p. 17)

Sobre seu Tio Antônio Salles, em cuja companhia Pedro Nava viveu no Rio de Janeiro durante uma temporada de sua juventude, a descrição é suave e nos deixa entrever um homem carinhoso e gentil com o sobrinho:
Quando vim para a companhia de meu tio Antônio Salles ele era um homem em vésperas de completar quarenta e oito anos. Grisalhava seu cabelo aberto ao meio. Tinha uma fisionomia doce, olhos tirantes ao verde, dentes muito claros que ele vivia mostrando ao riso que lhe era fácil e habitual.” (NAVA, 1977. p. 251)

Finalizando, para entendermos a complexidade da análise das Memórias de Pedro Nava sob a ótica bakhtiniana é importante ressaltar que a memória diz mais sobre a vida do que a própria vida. Nesse sentido, “Qualquer memória do passado é um pouco estetizada, a memória do futuro é sempre moral” (BAKHTIN, 2010b, p. 140).

Referências bibliográficas
AMORIM, Marília. Cronotopo e exotopia. In: BRAIT, Beth (org.). Bakhtin: outros conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2008. pp. 95-113
BAKHTIN, Mikhail (Volochínov). Marxismo e Filosofia da Linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na Ciência da Linguagem. 14 ed. São Paulo: Hucitec, 2010a.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 5 ed. São Paulo: Editora WMF/Martins Fontes, 2010b.
FARACO, Carlos Alberto. Linguagem & Diálogo: as idéias linguísticas do círculo de Bakhtin. São Paulo: Parábola Editorial, 2009.
LE MOING, Monique. A solidão povoada: uma biografia de Pedro Nava. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996.
NAVA, Pedro. Balão Cativo: memórias 2. 3 ed. Rio de Janeiro:  J. Olympio, 1977.
NAVA, Pedro. Baú de Ossos: memórias 1. 6 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.


[1] - retirado do texto “Formas do tempo e do cronotopo”. Apud AMORIM, 2008, p. 105.
[2] - Bakhtin utiliza o termo transgrediente para designar “fora do que está sendo pensado".
[3] - Monique Le Moing discute em sua tese de doutorado os temas Morte, Tempo e Memória nas Memórias de Pedro Nava, publicando na obra A Solidão Povoada onde discute esse sentimento de solidão presente na vida do autor.

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