segunda-feira, 10 de outubro de 2011

João Vianney Cavalcanti Nuto

O contemplador: vivências estéticas e responsividade
João Vianney Cavalcanti Nuto
Universidade de Brasília
jotavianney@gmail.com

            Mikhail Bakhtin utiliza o termo que aqui se optou por traduzir como “responsividade” para expressar o papel da singularidade no processo dialógico tanto na vida quanto na experiência estética. Responsividade envolve noção de resposta ao mundo, ao outro e à arte, mas também da responsabilidade que decorre da singularidade de cada um, o não-álibi do existir.
            Para Bakhtin, o eu não se forma nem se conhece bem sem a contribuição do outro. É este que, a partir do excedente de visão decorrente de sua posição de exterioridade, permite ao eu um conhecimento complementar de si mesmo. Na vida, todo comportamento humano é responsivo. No entanto, o pensamento que Bakhtin denomina de teoricismo abstrai o momento concreto, o existir-evento, em função de verdades gerais e abstratas. A filosofia primeira, que Bakhtin busca em “Para uma filosofia do ato responsável” consiste em, na medida do possível, resgatar essa responsividade para o pensamento filosófico. Como afirma Bakhtin, trata-se de transformar o pensamento sobre o mundo em pensamento no mundo. Trata-se também de devolver à linguagem sua vida original, pois esta se formou responsivamente por meio de enunciados concretos, tendo só depois sido utilizada para expressar ideias abstratas. No entanto, Bakhtin não nega a importância do pensamento teórico: apenas enfatiza que esse tipo de pensamento não tem dado a devida atenção ao existir-evento, onde a responsividade acontece. Como reação ao teoricismo, Bakhtin sugere o pensamento participativo, que envolve completamente a singularidade e a responsividade do sujeito em sua relação com o outro.
            A noção de responsividade também é evocada quando Bakhtin reflete sobre a experiência estética. Já em “Para uma filosofia do ato responsável”, Bakhtin observa que uma das formas mais adequadas de expressar a singularidade é o pensamento artístico, pois nestes as ideias podem ser relacionadas com a posição singular de cada personagem. Na obra mencionada, Bakhtin demonstra como o poema de Puchkin que analisa envolve diferenças de visão específica entre o eu lírico e a pessoa a quem se dirige, ambos referindo-se ao mesmo fato, que é a volta da mulher amada à Itália, onde falece. Bakhtin demonstra que o dado objetivo “Itália” adquire valores diferentes conforme a subjetividade que o expressa: para o eu lírico, é uma terra estrangeira para onde a mulher vai embora; para a mulher, é a terra natal para onde ela retorna.
O máximo dessa relação entre singularidade/eventicidade e pensamento – uma encenação do pensamento participativo –, segundo Bakhtin, acontece na obra polifônica de Dostoiévski. Nessa obra, como afirma Bakhtin, em resposta à apreciação de Engelgardt, o herói não é a ideia, mas o homem de ideia, o homem cujo pensamento é intimamente entrelaçado com suas vivências específicas, ou, para utilizar uma expressão de Bakhtin, “o homem no homem”. É o que acontece com o drama de Raskólnikov, em Crime e Castigo: sua ideia, expressa abstratamente no artigo que escreveu, é vivenciada e testada de maneira dolorosamente responsável pelo personagem. É testada, polemizada, ao ser apreciada por diferentes pontos de vista em confronto, como é o caso do diálogo entre Raskólnikov e o juiz de instrução; e no diálogo entre Raskólnikov e Sônia, entre outros. É vivenciada responsavelmente no comportamento de Raskólnikov, por meio de decisões dramáticas e radicais, como assassinar a velha usurária e – depois de longa e sofrida polêmica interna e externa – entregar-se à justiça.
A responsividade também é indispensável na própria experiência estética. Como afirma Bakhtin, em “O autor e o personagem na atividade estética”, todo acontecimento estético envolve pelo menos duas consciências. Bakhtin analisa essa relação entre consciências tanto na dimensão intrínseca quanto extrínseca. Na dimensão intrínseca, Bakhtin analisa a relação entre autor-criador e personagem, em que aquele se vale da exterioridade em relação a este, dando-lhe complementação não somente cognitiva, mas também certa tensão axiológica. Na dimensão extrínseca, Bakhtin analisa a relação entre autor-criador e autor-contemplador na criação e recriação do objeto estético. O autor-contemplador não se identifica com a pessoa empírica do autor, que existe independentemente da obra. Trata-se da consciência criadora da obra não apenas no sentido composicional, mas no sentido do tratamento estético da vida e dos valores expressos e problematizados, o que Bakhtin denomina “objeto estético”. Já o contemplador não se reduz a uma tábula rasa, nem a uma consciência passiva, nem mesmo a um simples decodificador do texto. A realização estética demanda participação ativa do contemplador – chamado de autor-contemplador –, pois cabe a este mobilizar não apenas seu conhecimento e sua sensibilidade linguística, mas também ser capaz de dialogar com os valores problematizados esteticamente na obra. Assim, o autor-contemplador recria o conteúdo da obra, o objeto estético, não necessariamente idêntico àquele do autor-criador. A mesma noção dialógica e responsiva é utilizada por Bakhtin em seu conceito de compreensão: não se trata de simplesmente assimilar o conteúdo de uma mensagem, mas de interpretá-la responsivamente, isto é, acrescentando sentidos decorrentes da posição singular do receptor. Para Bakhtin, toda compreensão é dialógica.
As Ciências Humanas, para Bakhtin, são ciências do texto, visto não como artefato, mas como relação virtual entre consciências. O estudioso dessas ciências não interroga coisas mudas, meros objetos, mas mensagens oriundas de consciências e contextos culturais diversos. Nos estudos literários, a atitude responsiva é uma maneira salutar de evitar cair na tentação monológica de simplesmente “aplicar” determinada teoria ao texto ou mesmo de reificá-lo, reduzindo a análise completa da obra à análise puramente linguística do texto.

BIBLIOGRAFIA
BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
_________. Para uma filosofia do ato responsável. Trad. Valdemir Miotello; Carlos Alberto Faraco. São Carlos (SP): Pedro & João Editores, 2010.
_________. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.
DOSTOIÉVSKI, F. M. Crime e castigo. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2001.

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