VIVÊNCIA: O APRENDIZADO DO OLHAR
Andréia Patrícia Barros
Ivone Leal Lopes
“Andando pelas ruas
Eu vejo algo mais do que arranha-céus
É a fome e a miséria
Dos verdadeiros filhos de Deus
Vejo almas presas chorando em meio a dor
Dor de espírito clamando por amor
Eu vejo algo mais do que arranha-céus
É a fome e a miséria
Dos verdadeiros filhos de Deus
Vejo almas presas chorando em meio a dor
Dor de espírito clamando por amor
Anjos das ruas
Anjos que não podem voar
Pra fugir do abandono
E um futuro poder encontrar
Anjos das ruas
Anjos que não podem sonhar
Pois a calçada é um berço
Onde não sabem se vão acordar
Anjos que não podem voar
Pra fugir do abandono
E um futuro poder encontrar
Anjos das ruas
Anjos que não podem sonhar
Pois a calçada é um berço
Onde não sabem se vão acordar
Às vezes se esquecem que são seres humanos
Com um coração sedento pra amar
Com um coração sedento pra amar
Vendendo seus corpos por poucos trocados
Sem medo da morte o relento é seu lar
Choros, rangidos, almas pra salvar”.
Sem medo da morte o relento é seu lar
Choros, rangidos, almas pra salvar”.
Rosa de Saron
Este trabalho tem como objetivo fazer uma reflexão sobre como a vivência influência na hora da produção de textos, com um diferencial estético, através do olhar extraposto - um novo olhar diante da sociedade, da vida, do mundo e, nos torna capazes de ver o que os olhos da maioria não veem - uma nova forma de aprender.
Iremos analisar trechos de redações produzidas por alguns participantes do projeto “Entreletras: aprendendo e ensinando a ler e a escrever o mundo a partir da atitude ética e estética no mundo” coordenado pela professora Rosa Brasil, da Universidade Federal do Pará. O projeto iniciou suas atividades em 2010 e já tem resultados positivos. A ação se dá basicamente por meio de vivências temáticas em espaços urbanos da capital Belém/PA. Depois de registrarem o local, por meio de fotografias, os participantes devem escrever um texto suscitado pela sensibilidade e pelas impressões que a experiência lhes proporcionou. A meta é promover o despertar do olhar estético e do agir ético.
Nesse sentido, Irene Machado (2005, p.143) ao dissertar sobre a noção de acabamento chama a atenção para a vivência como extraposição:
É impossível ao homem construir valores para si unicamente a partir de si. O valor é o centro de acabamento da estética porque exprime significados que são construídos na unidade da cultura humana em que estão também as vivências. O estético - todo acabado – nasce da extraposição.
Entendemos que a vivência não faz apenas com que o ser humano observe o mundo a sua volta, mas também atende a uma necessidade profunda da alma: colocar-se no lugar do outro (pessoa, coisa, objeto). Bakhtin (1997, p.80) nos chama atenção:
Perceber esteticamente o corpo significa vivenciar os estados interiores do corpo e da alma a partir de uma expressividade exterior. Podemos formulá-lo assim: o valor estético se realiza quando o contemplador se aloja dentro do objeto contemplado, vivencia a vida do objeto de seu interior e quando, no limite, contemplante e contemplado coincidem.
Percebemos que o valor estético mencionado por Bakhtin está bastante marcado na hora da produção das redações, antecedidas pelas vivências, ou extraposições, no Largo das Mercês. Surpreendemo-nos ao presenciarmos vários mendigos ao entorno do largo, até mesmo nas escadarias e dentro da própria igreja, onde um morador de rua dormia sendo desprezado pelos fiéis e visitantes. Essas cenas foram pontos de partida para a maioria dos textos que apresentaram um diferencial, mais precisamente estético, resultado do processo de aprendizagem do olhar.
Alguns trechos produzidos pelos participantes como resultado da vivência.
1. “Há um céu nublado, há pingos de chuva nas nuvens e as Mercês a entoar sinos. Sinos de vozes que se propagam no silêncio e na multidão de pessoas que passam para admirar a estonteante construção da igreja que abriga imagens santificadas e imagens humanizadas. O metafórico grito surdo que é visto através do bordado físico e esquecido na existência da exclusão não é sentido, não é ouvido por quem passa por lá.” ( Auricélia Silva)
2. “Nas ruas e nas escadarias das igrejas do centro está a maior de todas as imoralidades humanas, expressa na forma de mendigos, os grandes escravos da esmola, seja pelo comodismo e costume de pedir, ou pela necessidade repentina. Um perfeito símbolo de nosso tempo e desta cidade. Vivemos em um sistema que nega comida e condena o ser humano por não ter um teto, um endereço certo e ainda nos faz pensar que a situação desses moradores de rua é um fator natural das coisas, fazendo com que essas pessoas sejam vistas como sombras e, alheias a qualquer um de nós.” (Ivone Lopes)
3. “A minha escolha foi abrir meus braços para acolher meus próprios horrores. Afinal, resolvi me indagar: como poderia passar indiferente a um alguém que esqueceu ser gente? Será que isso aconteceu quando ninguém mais a olhou como tal? Ou melhor, será que de tanto os outros a olharem como animal ela acreditou?” (Alessandra Vasconcelos)
4. “Passamos por eles todos os dias, em alguns casos insipientes, com um olhar abjeto, o que de certa maneira tornou-se prosaico. Percebemos o quanto não os enxergarmos no “corre-corre” do dia-a-dia, pois nossas ocupações nos privam disso, da contemplação ou reconhecimento desse ser como pessoa - igual a nós.” (Lidiane Santos)
5. “Há um conflito entre igreja e mendigos? Ou será que um é o complemento do outro? Só sei que ambos pedem, necessitam pedir para sobreviver. Esta relação é tão bela quanto curiosa, igreja e mendigos desenvolvendo a mesma atividade, vivem em constante cordialidade, aparentemente não há disputa pelo espaço. Sem valor, sem importância, essas pessoas e o prédio da igreja são encontrados aos pedaços. A impressão é que a dignidade de ambos ficou presa ao passado, ou até mesmo é que nunca tiveram dignidade, de forma que as circunstâncias da vida talvez os tenham impedido de tê-la.” (João Paulo Cordeiro)
6. “Os homens que passam, sequer sabem seus nomes, nada sabem sobre eles. Desconhecem sua história, ignoram sua essência. Ignoram que, por trás do rosto assustador, do corpo cheio de marcas e da ameaça que exala de cada poro, existe um homem que pensa, sente, ama. Aqueles que ficam não são só perigo e maldade, mas são feitos de coração e sangue, são feitos de vida.
Talvez até mais do que aqueles que passam...” (Amanda Rodrigues)
Ao analisarmos a postura do produtor de cada trecho com o uso de recursos linguísticos, como adjetivos – estes sendo essencialmente positivo – atentando para a originalidade e versatilidade com que se trabalha a palavra, constatamos que através do vivenciar se estabelece o olhar extraposto, o da contemplação. Novos caminhos estão sendo abertos através da vivência, por exemplo: muitas pessoas estão sendo questionadas sobre o seu papel na sociedade, o seu envolvimento com esta, e sua visão de mundo, tornando-se mais críticos. É o que ratifica Carbonell (2010, p. 114):
Sabemos que o olhar é inquieto e inquiridor, que o olhar pensa, que é a visão feita interrogação. O olhar requer uma intencionalidade e precisa ser educado para enfrentar a epopéia visual do nosso cotidiano. Sob essa perspectiva, a educação do olhar torna-se indispensável à sobrevivência, pois atua como uma forma de humanização e de cultivo, um dispositivo para a cidadania. A estética, em sua origem, liga o sensível à imagem. Hoje, na civilização de visualidade, a imagem surge como um vigoroso potencializador da experiência estética.
O diferencial de um trecho e outro é o que cada ser contemplador traz dentro de si, é também de suma importância sua experiência de vida, sua sensibilidade, seus valores, o agir ético sobre o mundo juntamente com o olhar estético. A “receita” para a produção de um bom texto escrito dá-se do princípio de que é imprescindível vivenciar os fatos. É preciso haver envolvimento do sujeito como objeto da escrita, pois é assim que o olhar modifica a palavra. Cada trecho possui uma maneira, toda singular, de se expressar, e imprime o que foi presenciado, apesar de todos terem contato com o mesmo evento.
O aprendizado do olhar é a forma de alterar a perspectiva que se tem do mundo e das coisas, uma vez que, mudando-se o olhar, muda-se o modo de aprender.
A verdadeira viagem do descobrimento
não consiste em buscar novas paisagens,
mas novos olhares.
Marcel Proust
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
MACHADO, Irene. Os gêneros e o corpo do acabamento estético. In BRAIT, Beth. Bakhtin, dialogismo e construção do sentido. 2 ed. rev., Campinas (SP): Editora da UNICAMP, 2005.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
ALVARES, Sonia Carbonell. Educação estética para jovens e adultos: a beleza no ensinar e no aprender. São Paulo: Cortez, 2010.
BARTES, Roland. A câmara clara nota sobre a fotografia; tradução de Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
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