Aspectos dialógicos e responsivos no documentário “lixo extraordinário”
Thatyara Guimarães dos SANTOS
Universidade Federal do Pará- UFPA
1. INTRODUÇÃO
Pensar o problema do lixo de forma global envolve muito mais que as suas consequências para o meio ambiente, mas também os aspectos educacionais e sociais que o envolvem.
Dentre as alternativas encontradas para resolver a grande demanda de lixo produzida no Brasil, a reutilização do lixo como material reciclado para produção de objetos específicos, em sua maioria advindos das garrafas plásticas, pneus de carros, papel, foi uma delas.
Mas a reciclagem ainda não tem dado conta de reverter o quadro caótico que se instaurou pelo excesso de lixo produzido. Ainda não foi possível desvincular o trabalho humano direto com o lixo, assim como não foi possível conscientizar de maneira eficaz a população quanto a não termos mais suportes ambientais para receber, armazenar e/ou eliminar todo este material produzido diariamente.
Com vista neste quadro e, a fim de mudar a vida de um grupo de pessoas com o mesmo material que as “compõe”, lhes falta ou lhes torna cidadãos, é que Vik Muniz idealizou o trabalho “Retratos do Lixo”. Todo esse processo foi registrado e se transformou em um documentário denominado “Lixo Extraordinário”.
2.QUEM É VIK MUNIZ?
Vicente José de Oliveira Muniz, mas conhecido como Vik Muniz, nasceu em São Paulo no ano de 1961, é fotógrafo, desenhista, pintor e gravador. Aos vinte e dois anos, foi para Nova York, inicialmente com o objetivo de apenas aprender Inglês, mas sua paixão pela cidade o fez ficar, trabalhar e fazer seu nome naquele novo país. Trabalhou como empurrador de carrinhos de supermercado e até mesmo como catador de lixo.
Seu amor pelas artes sempre o acompanhou desde a infância e, mesmo com sua ida para o exterior, sempre teve seu estúdio particular, onde pinta, fotografa, estuda e idealiza seus projetos. Seus trabalhos são feitos com materiais inusitados, como açúcar, chocolate, pasta de amendoim, geléia e lixo. em sua maioria, consistem na reprodução de obras de artes reconhecidas mundialmente, utilizando os materiais citados e fotografados para que fiquem registrados e possam ser desmontados logo em seguida.
Ao idealizar “Retratos do Lixo”, tinha como principal objetivo, mudar a vida de pessoas através das artes e mudar a concepção de arte através das pessoas, desmistificando a ideia de que “as pessoas instruídas são melhores que as demais” (MUNIZ, 2008).
Desta forma, muito mais que apenas um documentário, um registro de um projeto executado ou a (re)produção de obras de arte, o trabalho estudado aqui aborda os mais variados, como: o papel da mulher na sociedade, preconceito, organização sindical, marginalização, desvalorização de algumas formas de trabalho, esperança, autovalorização, existência e essência humana.
3. ASPECTOS DIALÓGICOS E RESPONSIVOS NO “LIXO EXTRAORDINÁRIO”
Bakhtin em suas obras tem como principal foco a linguagem, os diálogos e sua função tanto interacional quanto social. Mas, muito embora pareça fácil definir seus estudos desta forma, jamais poderíamos limita-la a apenas isso, pois a linguagem sem o ser que a utiliza seria nula. Então, tratar de linguagem envolve muito mais que o simples decifrar de códigos, ou um diálogo informal, trata-se de tentar compreender como funcionam as sociedades, sua filosofia, como se compõem ou se destroem.
Na análise do documentário “Lixo Extraordinário”, encontramos vários diálogos que podem ser estudamos, tais como, a relação Vik Muniz e suas leituras, Vik Muniz e os catadores de material reciclado, catadores e o seu contexto social e a leitura do documentário pelo leitor audio-visual (eu). Mas, aqui levaremos em consideração primordialmente dois pontos específicos: a) O diálogo entre Vik Muniz e os catadores em busca de fontes e/ou troca de conhecimentos (aspecto dialógico); e b) O resultado deste diálogo como determinante no processo de escolha de imagens e personagens a serem fotografados (aspecto responsivo).
Mas o que é Dialogismo e Reponsividade? De acordo com Costa, consiste:
Em primeiro lugar, dialogismo, que remete, em essência, à ideia basilar de que o discurso é interiormente constituído na e pela interação com outros discursos. Em segundo lugar, responsividade, que se refere à propriedade do enunciado de se organizar como resposta a outros enunciados, reais ou virtuais, (p. 2, 2009)
Ao compreendermos que dialogismo se refere intimamente com a ideia de interação de uma forma bem ampla, podemos inferir durante todo o documentário que Vik Muniz, ao idealizar seu projeto, teve como ponto de partida o fato de querer saber sobre a vida, as dificuldades, as angústias, os anseios, os porquês, de cada um dos catadores que compuseram o trabalho, pois só ao conhecer o contexto histórico –social de cada um deles é que foi possível delinear quais rumos teriam as fotos e consequentemente as obras de arte, como nos orienta Bakhtin “quanto mais forte, mais bem organizada e diferenciada for a coletividade no interior da qual o indivíduo se orienta, mais distinto e complexo será seu mundo interior.” (1981, p. 115 apud CAVALCANTE, p.4 s/d).
Durante todo o processo de interação com os catadores Vik conseguiu captar informações relevantes sobre tais pessoas, como no caso de Sebastião, presidente da Associação dos Catadores de Jardim Gramacho, que no início do processo de organização da Associação se sentia inseguro e inexperiente, por não estar acostumado a liderar tantas pessoas, algumas delas sequer acreditavam que daria certo tal organização e, neste contexto ele acha em meio ao lixo, “O Príncipe” de Maquiavel, ao ler este livro sua mente se abre e suas forças se renovam para colocar em prática todo o seu plano de organização da Associação.
É ainda nesse diálogo que ele descobre que Sebastião já leu Nietzche e que existe um outro catador que também pratica e fomenta a leitura entre as crianças e os próprios catadores, ou seja, um disseminador da leitura em meio ao lixo. Seu nome é Zumbi.
Ao dialogar com Zumbi, Vik concretiza a ideia de que o trabalho que ali seria realizado teria uma finalidade social e educativa, pois Zumbi cata todos os livros que acha e os guarda com o objetivo de criar um biblioteca pública para dar oportunidade à leitura para todas as crianças que vivem nas proximidades daquele aterro sanitário.
Nesta teia de diálogos e conhecimentos divididos e adquiridos Vik expõe seus objetivos, fotografar os catadores, recriar as imagens em tamanhos bem maiores com a utilização dos objetos achados no lixo do aterro, em seguida leiloa-las e reverter todo o dinheiro para a Associação dos Catadores.
Até aqui vimos como o processo dialógico foi de suma importância para a delimitação dos objetivos do trabalho a ser executado, pois considerou os seres envolvidos, suas histórias, seu conhecimento de mundo, seus aspectos sociais e objetivos futuros como considera o Círculo Bakthiniano:
O Círculo não considera os sujeitos apenas seres biológicos, nem apenas seres empíricos, ou apenas sociais, mas sempre leva em conta sua complexidade na concretude das situações em que ocorre a apreensão inteligível do seu ser sensível, não alguma pretensa “realidade” tout court, visto que o mundo humano é um mundo construído, e não só dado naturalmente. (SOBRAL, p.123, 2009)
Visto os exemplos dialógicos do trabalho, partimos aos aspectos responsivos, já que estes se enquadram como sendo a segunda parte da produção tanto documental, quanto artística do trabalho em análise.
Em resposta aos diálogos construídos no primeiro momento deste trabalho, temos a escolha das imagens a serem reproduzidas por Sebastião e Zumbi. A primeira, foi escolhida “A morte de Marat” na banheira. Durante a escolha Vik e Sebastião ainda dialogam sobre o por quê desta imagem e, como argumento Vik diz que ele era um intelectual, focado em temas políticos de sua época, o comparando a Sebastião nos tempos de hoje. Assim temos a resposta, o papel social construído por Sebastião e a sua relação com a imagem escolhida, atuando como um intertexto, uma ligação, uma reconstrução não apenas imagética, mas ideológica da figura de Marat por Sebastião.
O assassinato de Marat - David Marat - Tião por Vik Muniz
Em seguida, também em resposta aos diálogos do primeiro momento, temos a escolha da imagem a ser retratada por Zumbi, “O semeador”, aquele que planta, que espalha as sementes, que dissemina a fartura, a esperança da colheita. A poética encontrada nesta escolha vai muito além da palavra dita ou escrita, pois dialoga intimamente com os objetivos ideológicos da pessoa de Zumbi, seus sonhos e objetivos quando vai ao aterro catar livros, superam as expectativas vistas a olho nu, ele enxerga muito além do lixo, ele vê o que um discurso (livro) perdido em meio a tanta sujeira pode causar e mudar (n)a vida dos que rodeiam aquele lugar.
E compreendemos que:
É nessa relação entre omundo e o homem habitado pelo signo e ideologicamente marcado pelas estruturas sociaisque os sujeitos se constituem. É nessa relação que se cria a possibilidade de diálogo e naperspectiva do diálogo há sempre um movimento de ida e vinda que cria a possibilidade demodificação recíproca O diálogo, na concepção baktiniana, não se limita apenas àcomunicação entre pessoas colocadas face a face, mas abrange todo o processo decomunicação: verbal (falado ou escrito) e não verbal. (CAVALCANTE, p.5 s/d)
E é neste processo de construção conjunta é que reside a possibilidade de reafirmação do sujeito em quanto ser quedialoga, se completa e evolui, pessoal e socialmente.
4. CONCLUSÃO
Somente através do diálogo podemos pensar a interação como forma de mudança social, só através da busca por conhecimentos em comum e partilhados é que se pode modificar ou melhorar uma sociedade e, este diálogo pode se dar das mais abrangentes formas, uma conversa, uma leitura ou o contemplar de uma obra de arte, pois “nenhum ser pode ver em si mesmo todos os aspectos que o constituem, cabendo essa tarefa aos outros” (SOBRAL, p.123, 2009).
Vale ressaltar que por conta da finitude de nossa análise, os exemplos expostos aqui foram limitados, porém isso não significa que se trate apenas disso, ou que este trabalho não esteja aberto a novas leituras e inferências.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CAVALCANTE, Maria do Socorro Aguiar de Oliveira.O sujeito responsivo / ativo em bakhtin e lukács. Universidade Federal de Alagoas – UFAL. Sem data. Disponível em: www.discurso.ufrgs.br/sead2/doc/sujeito/maria.pdf
COSTA, Luiz Rosalvo. Dialogismo, responsividade e referenciação: uma análise de editoriais da revista Ciência Hoje. In: GARCIA, B.R.V.; CUNHA, C.L.; PIRIS, E.L.; FERRAZ, F.S.M.; GONÇALVES SEGUNDO, P.R. (Orgs.). Análises do Discurso: o diálogo entre as várias tendências na USP. São Paulo: Paulistana Editora, 2009. ISBN 978-85-99829-38-7. Disponível em: http://www.epedusp.org
FUZA, Ângela Francine. MENEGASSI, Rênilson José.A responsividade discursiva em produções escritas no ensino fundamental. Trabalho apresentado na 1ª Jornada Internacional de Estudos do Discurso – JIED. Março de 2008. Disponível em: http://www.dle.uem.br/jied/pdf/A%20RESPONSIVIDADE%20DISCURSIVA%20EM%20fuza%20e%20menegassi.pdf
GONÇALVES, JaelSâneraSigales. A responsividade no discurso do suspeito: evidências da entrevista do casal Nardoni ao fantástico. Trabalho apresentado no IV Seminário de Estudos em Análise do Discurso – SEAD. Novembro de 2009. Disponível em: www.discurso.ufrgs.br/sead4/paineis/Jael_Sanera_Sigales_Goncalves.pdf
MEDEIROS, Célia Maria de. O sujeito bakhtiniano: um ser de resposta. Revista da Faculdade de Seridó. Janeiro a Junho de 2006. Disponível em: http://www.faculdadedoserido.com.br/revista/v1_n0/artigo_celia_maria_de_medeiros.pdf
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SOBRAL, Adail.O conceito de ato ético de bakhtin e aresponsabilidade moral do sujeito. Artigo de revisão. Centro Universitário São Camilo. 2009. Disponível em: www.saocamilo-sp.br/pdf/bioethikos/68/121a126.pdf
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