terça-feira, 11 de outubro de 2011

Ana Cristina Almeida Vilela

TODAS AS ALTERIDADES DE MARIA...
Ana Cristina Almeida Vilela
Universidade de Brasília (UnB)
ana.cris.vilela@gmail.com

Primeiro dia de ensaio. Tento me distanciar de mim para, em mim, ver Maria, em O Visitante, de Hilda Hilst. Primeiro, tento ver Maria além do que ela mesma pode ver em si, sua singularidade. Por que Maria é tão seca, tão sentida? Que dor ela sente por não poder gerar, ter um filho em seus braços? Tento ler a alteridade de Maria, filha da bela e falsa Ana. Maria além de Maria. Mas há também Maria em mim, que a interpreto, que a imagino. Preciso me afastar de mim e de Maria, ser outro para ver a própria alteridade de Maria em mim e a mim mesma esculpindo Maria.
Sou leitora-criadora de Maria e passo a ser leitora-criadora de mim mesma enquanto Maria. Sou responsável por sua cocriação, por Maria diante de mim e diante da plateia. Meu diretor cria também e pode ver a mim em Maria; Maria em mim; nós duas; nós uma. Preciso distanciar-me dessa mulher que não gera, tentar ver sua dor, seu ódio de Ana... Por que, Maria? Quem é você? E quem sou eu agora, com tantas respostas que me veem de você?
Quem sou eu em você, Maria? Nós duas. Também me afasto de nós para nos vermos. Minha alteridade construindo Maria e a mim mesma em Maria. Imagino sua vida, crio, mas eu estou presente, sou eu diante de você e de mim. Não trago em mim empatia completa por sua dor, por sua paralisia no tempo, por suas mentiras de autossalvação. Não posso, Maria. Ou seríamos uma. Precisamos ser duas. Precisamos ser três pessoas inteiras em uma. Eu, você, você-e-eu, tudo em mim recriado e, ao mesmo tempo, tudo diante de mim, desse meu eu distanciado.
O diretor me olha, atento. Constrói-me a mim; reescreve Maria; vê-me além de mim; vê Maria além de Maria; vê a mim coconstruindo Maria além de mim coconstruindo Maria.
As outras personagens – Ana, Meia Verdade, o Homem, os leitores dos poemas – me veem, nos veem: a mim, Ana Cristina, e a mim construindo Maria. E com quais olhos todos nos veem? Com os olhos reais, de seres humanos-fato, ou com olhos de personagens, já com os olhos de Ana, de Meia Verdade?
Quantas alteridades tenho? Quantas alteridades Maria tem? Quantas alteridades eu e Maria juntas temos? Cada um nos concede uma alteridade?
Penso que queria ler todas as repostas em cada uma das cabeças à minha frente, essa responsividade do outro diante de mim, esse ato-pensamento que deve – ao menos devia – ser responsável. Mas... já seria um ato estético? Ainda não somos arte, nós ali, ensaiando a arte. Mas sou arte para meus coautores-colegas-de-cena? Observam-me... Mas já sou arte?
Penso no dia da apresentação. Maria acabada por mim, inacabada em si mesma e em mim, diante da plateia cocriadora. Preciso do outro para ser. Preciso do outro para existir. Preciso do outro para ser arte.
A arte tem alteridade? Todos nós, juntos no palco, formando um todo-arte, como uma tela que se move, um quadro, existe aí alteridade? Cada par de olhos ali presente coescreve a cena, coescreve cada ato, obtém respostas, nos projeta na qualidade de arte, mas esse olhar nos concede, enquanto arte que somos, alteridade?
Agora, se esse olhar observa atentamente Maria, a mim e Maria em mim, isso concederia alteridade a cada uma de nós: eu, Maria, eu-Maria? Ou apenas por estarmos no palco, o ser-imaginário, o ser-ator e o ser-Ana, perdemos nossa alteridade e viramos quadro na parede, página de livro inacabada, dialógica, polissêmica?

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