segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Leni Dias de Sousa Erdei

Sou de Brasília, mas juro que sou inocente
Leni Dias de Sousa Erdei
lenni_dias@yahoo.com.br
UFMT – Universidade Federal de Mato Grosso

Há alguns anos, o Brasil passou por uma grande crise política, o “Escândalo do Mensalão”. Essa crise aconteceu no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, pertencente ao Partido dos Trabalhadores.
Como acontece com qualquer novidade no Brasil, durante algum tempo, o Mensalão se tornou tema em muitas esferas da comunicação social brasileira. Na mídia (emissoras de televisão, rádio, editoras, internet), escolas, universidades, igrejas, diálogos cotidianos... Enfim, quase todos queriam expressar a própria opinião sobre a situação que se apresentava vergonhosa ao país.
Nesse contexto, eu também participava das interações a esse respeito, às vezes criticando, outras ouvindo ou mesmo ficando em silêncio. Sou brasiliense e vivi a maior parte da minha vida em Brasília. O fato de eu ter nascido na cidade, onde dizem que impera a corrupção, era motivo para que eu ouvisse algumas brincadeiras relacionadas a minha pessoa e ao que estava se passando na capital federal. Embora, eu não tenha quase nada a ver com política nem seja militante filiada a nenhum partido acredito, com veemência, que meu voto é uma poderosa arma para lutar contra o que estou em desacordo em relação aos que administram o Estado. Logo, ficava incomodada, pois sei que toda a minha família, que é constituída de candangos ou brasilienses, felizmente, foi sempre íntegra.
Entre uma e outra brincadeira, pensei: sou brasiliense, não sou corrupta, amo a cidade em que nasci... Então, vou dar uma resposta em tom de brincadeira também.
Fui ao Shoping com o objetivo de comprar uma camiseta (daquelas que bordam os dizeres na hora). Pedi que bordassem o seguinte: Sou de Brasília, mas juro que sou inocente. A recepcionista da loja quis saber qual a cor da camiseta eu gostaria, escolhi branca. Porque para mim, atrairia menos o calor. A cor dos dizeres, escolhi vermelha, somente para combinar com o batom.
 


Em momento algum pensei nas condições de produção que envolviam aquela camiseta, que no final de tudo eu seria responsável pelas opiniões geradas no momento da leitura daquela frase e qual seria o acabamento estético que os leitores atribuiriam àquele enunciado. Ou seja, será que eu não estaria dizendo que os habitantes de Brasília (exceto eu) eram culpados em relação ao Mensalão? Só pensei no resultado final, somente na resposta engraçada, que eu daria aos meus amigos.
Quando recebi a camiseta, olhei aquelas cores, os dizeres, que implicitamente, eram uma crítica ao partido petista e decidi não usá-la. Seguramente, minha intenção não era criticar, somente era responder aos colegas de forma animada. Nesse contexto, em meio a tantas vozes, o Sou de Brasília, mas juro que sou inocente originou-se para trazer à realidade uma inquietação interna de forma descontraída.  
Em seguida, contudo, formou-se em mim a dificuldade entre usar ou não a camiseta, pois tal enunciado circularia por diferentes esferas da comunicação discursiva e geraria, para cada um dos possíveis leitores uma “compreensão ativamente responsiva” (BAKHTIN, 1929, p.272), isto é, opiniões e julgamentos que poderiam afastar tal enunciado do projeto inicial ideológico para o qual foi criado.
Para Bakhtin/Volochinov (1929) a linguagem é construída socialmente, desde a infância. Os atos, gestos, palavras e enunciados surgem e se desenvolvem em volta do indivíduo, penetram em sua consciência, para em seguida se revelarem numa grandiosa explosão de vozes heterogêneas, nas quais às vezes estão separadas em confronto, e em outras estão unidas em concordância formando um infinito e colorido caleidoscópio. Assim, é nesse ambiente, que os enunciados penetram na vida e simultaneamente a vida passa a fazer parte da língua.
Em uma época bastante diversificada no que diz respeito às inúmeras linguagens, é de fundamental importância entender o que elas pretendem nos dizer.  Por isso, se as palavras bordadas na camiseta fossem vistas unicamente como formas fixas e abstratas, ou seja, do ponto de vista de sua materialidade, seriam somente sinais. Porém, considerando o contexto histórico, político e social que as envolvia, a cor branca do tecido e a vermelha da fonte, os sentidos a que nos remetem as palavras “Brasília” e “inocente” percebemos que elas, na verdade, representavam valores sociais e se tornaram signos ideológicos, visto que “as palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos que servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios” (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1929, p.40).
Nas palavras de Sobral (2009), a responsividade consiste na suposição que o locutor faz de seu interlocutor no momento da comunicação social. Esse autor acrescenta também, que o enunciado e o discurso são lugares de realização da entoação avaliativa e responsiva.
Refletindo sobre tais afirmações, cremos que a decisão de não usar a camiseta foi a melhor possível, porque no momento da criação do enunciado Sou de Brasília, mas juro que sou inocente esperávamos avaliações e reações positivas e alegres, no entanto considerando que as novas realizações de tal enunciado, ou seja, as “re-criações por meio da co-criação dos contempladores”(BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1926, p.4) se movimentariam entre outras esferas da comunicação e em diferentes períodos de tempo e a intenção dessa comunicação seria divergente do esperado inicialmente.
Enfim, deveríamos considerar, ainda, que cada contemplador é único e seus atos são fundamentados em sua história de vida, papel social que ocupa na sociedade, leituras de mundo e modos de pensar singulares, por isso as respostas poderiam suscitar situações desagradáveis. Dessa forma, para alguns contempladores mais comprometidos com a política o enunciado que era para ser divertido se tornaria crítica, provocação, desrespeito e outros.

Referências
BAKHTIN, M. M.. Os gêneros do discurso. In M. Bakhtin. Estética da Criação Verbal. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

BAKHTIN, M. M.; VOLOCHINOV, V. N. Discurso na vida e discurso na arte (sobre poética sociológica). Tradução de Carlos Alberto Faraco e Cristóvão Tezza. Circulação restrita, Mimeo.
_________________. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 1990.

CEREJA, W. Significação e tema In: BRAIT, B. (org.). Bakhtin: conceitos-chave. 4. ed. São Paulo: Contexto, 2008.
CLARK, K.; HOLQUIST, M. Mikhail Bakhtin. São Paulo: Perspectiva, 2008. Tradução de J. Guinsburg.
COVRE, A. M. M.; NAGAI, E. E.; MIOTELLO, V. Alteridade. In Grupo de Estudos dos Gêneros do Discurso (GEGe). Palavras e contrapalavras: Glossariando conceitos, categorias e noções de Bakhtin. São Carlos: Pedro & João Editores, 2009.
SOBRAL, A. Do dialogismo ao gênero: as bases do pensamento do círculo de Bakhtin. Série Idéias dobre Linguagem. São Paulo: Mercado de Letras, 2009. Série Ideias sobre Linguagem.

2 comentários:

  1. Muito legal seu texto... Quem diria que uma simples frase podia causar tanta discussão né?! rsrs

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  2. Vou começar a prestar atenção no verdadeiro sentido de algumas frases que parecem ser mas não são...ainda bem que você não vestiu a camisa. Muito bom seu texto, iluminador. PARABÉNS! SUZANE

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