segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Urbano Cavalcante Filho

Responsividade, responsabilidade e dialogismo na experiência estética e discursiva do gênero divulgação científica
Urbano Cavalcante Filho[1]
Instituto Federal da Bahia (IFBA – Campus Ilhéus)


        Sabemos que cada palavra se apresenta como uma arena em miniatura onde se entrecruzam e lutam os valores sociais de orientação contraditória.
       A palavra revela-se, no momento de sua expressão, como o produto da interação viva das forças sociais. Mikhail Bakhtin

Introdução
            Encarar o funcionamento da língua(gem) significa pensar a produção de sentido não somente tomando como norte os fatores concreto-semânticos, mas sim levar em consideração a presença e influência dos fatores extralinguísticos (como a história, o mundo, o sujeito) para que se possa considerar a língua(gem) como um fenômeno discursivo, em sua perspectiva dialógica, sócio-histórica e ideológica.  Tomo, para isso, a crença do Círculo de Bakhtin[2] para argumentar que não é possível a desvinculação da personalidade do indivíduo da língua (discurso), uma vez que “a atividade mental, suas motivações subjetivas, suas intenções, seus desígnios conscientemente estilísticos, não existem fora de sua materialização objetiva na língua” (BAKHTIN, 1992, p. 188). Com isso, é possível afirmar, de imediato, que a língua não é vista como sistema abstrato de signos e, tampouco, como a expressão do pensamento individual.
            O presente texto tem o propósito, em primeiro lugar, de operar com as noções de responsividade, responsabilidade e dialogismo no fazer estético-discursivo do gênero Divulgação Científica (doravante DC). Para isso, focalizei meu pensamento na discussão a respeito da natureza e funcionalidade dos gêneros do discurso, para, em seguida, abordar o discurso da DC a partir do prisma de tais noções, tomando como principal referencial teórico os postulados do pensador russo Mikhail Bakhtin.

O gênero discursivo DC: uma experiência estética e discursiva
Desde Platão, em A República, e Aristóteles, em A Poética, que a questão dos gêneros vem sendo uma preocupação constante e motivação de muitos estudos, tendo em vista várias classificações que têm aparecido aos longos dos tempos, seja a clássica distinção entre poesia e prosa; a distinção entre épico, lírico e dramático; a oposição entre tragédia e comédia; a teoria dos três estilos (elevado, médio e humilde); seja a distinção da Retórica Antiga entre os discursos deliberativo, judiciário e epiditíco, entre outros.
A discussão em torno da noção de gênero também é encontrada em muitos trabalhos do Círculo de Bakhtin, seja quando o tratamento se volta para a defesa do romance como gênero literário, no trabalho com os gêneros intercalados como uma das formas composicionais de introdução e de organização do plurilinguismo no romance, na abordagem do romance polifônico em Dostoiévski, no papel e o lugar dos gêneros nos estudos marxistas da linguagem, nos gêneros como uma das forças sociais de estratificação da língua (uma das forças centrífugas) ou no alargamento da noção dos gêneros para todas as práticas de linguagem.
Em seus escritos, Mikhail Bakhtin (1997a) focaliza sua reflexão no caráter social dos fatos de linguagem. Nessa perspectiva, como já abordado neste trabalho, observa-se que Bakhtin pretere a oração como unidade de análise de comunicação verbal, visto que o ato comunicacional, enquanto atividade social, é marcado pelo diálogo, pela possibilidade de interação. Dessa forma, o enunciado é encarado como produto da interação verbal, determinado tanto por uma situação material concreta como pelo contexto mais amplo que constitui o conjunto das condições de vida de uma dada comunidade linguística. Com isso, é perceptível, em suas abordagens, a presença de um componente social, já que o enunciado de um falante é precedido e sucedido pelo de um outro. Essa é uma posição defendida por Bakhtin (1997a), ao tratar a língua em seus aspectos discursivos e enunciativos, e não em suas peculiaridades formais e estruturais. Com essa noção, Bakhtin ratifica a concepção de encarar a linguagem como um fenômeno social, histórico e ideológico, definindo um enunciado como uma verdadeira unidade de comunicação verbal.
Dessa forma, Bakhtin estende os limites da competência linguística dos sujeitos para além da frase na direção dos “tipos relativamente estáveis de enunciados” e do que ele chama “a sintaxe das grandes massas verbais”, isto é, os gêneros discursivos, os quais temos contato e nos quais vivemos imersos desde o início de nossas atividades de linguagem.
Então, amparados na concepção bakhtiniana, os gêneros discursivos não devem ser concebidos apenas como forma, e que, portanto, possam ser distinguidos pelas suas propriedades formais (embora os gêneros mais estabilizados possam ser “reconhecidos” pela sua dimensão linguístico-textual), pois não é a forma em si que “cria” e define o gênero: “Os formalistas geralmente definem gênero como um certo conjunto específico e constante de dispositivos com uma dominante definida. Como os dispositivos básicos já tinham sido previamente definidos, o gênero foi mecanicamente compreendido como sendo composto desses dispositivos. Dessa forma, os formalistas não apreenderam o significado real do gênero” (MEDVEDEV, 1928, apud FARACO, 2003, p. 115).
Considerando as anotações feitas por Bakhtin (1997a) quanto à constituição, à natureza e a própria funcionalidade dos gêneros discursivos, estes são, num primeiro plano de observação, considerados como modos relativamente acabados de comunicação que permitem aos atores sociais a interlocução em sua integralidade.
Ainda pensando no aspecto “relativamente acabado” dos gêneros, poder-se-ia resumir a discussão em torno de tal temática da seguinte maneira: os gêneros, segundo essa visão bakhtiniana, são resultados da fusão de três dimensões constitutivas, como bem sinaliza Bakhtin: i) o conteúdo temático ou aspecto temático - objetos, sentidos, conteúdos, gerados numa esfera discursiva com suas realidades socioculturais -, o qual tem a função de definir o assunto a ser intercambiado; ii) o estilo verbal ou aspecto expressivo – seleção lexical, frasal, gramatical, formas de dizer que têm sua compreensão determinada pelo gênero -; iii) a construção composicional ou aspecto formal do texto – procedimentos, relações, organização, disposição e acabamento da totalidade discursiva, participações que se referem à estruturação e acabamento do texto, que sinaliza, na cena enunciativa, as regras do jogo de sentido disponibilizadas pelos interlocutores.
            A partir dessas considerações, a DC pode ser definida uma associação do discurso científico com o discurso cotidiano, sendo que este último favorece a leitura por parte de um número maior de leitores (AUTHIER-REVUZ, 1998). A autora conceitua DC como:
uma atividade de disseminação, em direção ao exterior, de conhecimentos científicos já produzidos e em circulação no interior de uma comunidade mais restrita; essa disseminação é feita fora da instituição escolar-universitária, não visa à formação de especialistas, isto é, não tem por objetivo estender a comunidade de origem (AUTHIER-REVUZ, 1998, p. 107).

Orlandi (2001) afirma que a divulgação científica é uma relação estabelecida entre duas formas de discurso – o científico e o jornalístico – em uma mesma língua.
            Diante dessas definições, podemos concluir que o texto de DC constitui a intersecção entre dois gêneros discursivos: o discurso da ciência e o discurso do jornalismo, este último visto como o discurso de transmissão de informação. Para Campos (2006, p. 1) esse gênero “é considerado como realização enunciativa marcada pela ação de quem é colocado na posição de um ao falar pelo outro (o especialista) para o outro (não-especialista)” (grifos do autor).
Assim, pensar a DC como atividade estética significa encará-la como o resultante de um processo que busca representar o mundo do ponto de vista da ação exotópica do sujeito (lugar de fora), fundada no social e no histórico. É por meio do princípio bakhtiniano da exotopia que podemos observar a pretensa objetividade do discurso científico como um momento que integra o Ato, mas que não constitui o seu todo. A exotopia é entendida, portanto, segundo o pensador russo, como o distanciamento e estranhamento do autor em relação ao objeto a fim de construí-lo. Trata-se de um momento de distanciamento e de empatia, para que, ao se colocar do lado de fora, num momento de objetivação, separar-se do objeto (BAKHTIN, 2010).
Afinal, a estética deve ser encarada, conforme Bakhtin, como um acabamento do ato de agir do sujeito, que só será possível a partir de sua posição exotópica. É essa posição exotópica que permitirá o trabalho estético discursivo do divulgador, a ação de construir o objeto estético: os textos de DC.

Responsividade e Responsabilidade
            Entender a responsividade como o comportamento de dar resposta ajuda-nos a pensar como a atividade discursiva presente no gênero DC refere-se à propriedade do enunciado de se constituir e se organizar como resposta a outros enunciados, sejam eles reais ou virtuais, em circulação no contexto discursivo-histórico-ideológico em que são criados e produzidos. Nesse sentido, devemos perceber que o conceito de ato responsivo é atravessado pela presença da alteridade, já que o enunciado concreto constitui um evento sócio-historicamente situado, tendo, no discurso do outro, base para sua existência.
            Além disso, a responsividade também chama para o jogo a questão da responsabilidade, o ato responsável[3]:
O ato responsável é, precisamente, o ato baseado no reconhecimento desta obrigatória singularidade. É essa afirmação do meu não-álibi no existir que constitui a base da existência sendo tanto dada como sendo também real e forçosamente projetada como algo ainda por ser alcançado. É apenas o não-álibi no existir que transforma a possibilidade vazia em ato responsável real (BAKHTIN, 2010, p. 98).

Ainda nas palavras de Bakhtin, “cada um de meus pensamentos, com o seu conteúdo, é um ato singular responsável meu; é um dos atos de que se compõe a minha vida singular inteira como agir ininterrupto [...] cada ato singular e cada experiência que vivo são um momento do meu viver-agir” (2010, p. 44). Ou seja, Bakhtin postula que se cada sujeito ocupa um lugar singular e único, esse sujeito apresenta-se, portanto, como responsável pelos seus atos. Assim, o ato ético corresponde a um conjunto de obrigações e deveres concretos, é o agir no mundo, ligado diretamente à realidade.
            Portanto, ao mesmo tempo em que sou responsável pelo que faço e digo, também faço e digo em resposta a uma série de elementos presentes em minha vida como signos.

DC e o dialogismo bakhtiniana
            As concepções de Bakhtin sobre o homem, a vida e seus fazeres são caraterizadas pelo princípio dialógico. Isto é, a alteridade legitima o ser humano, já que a existência e presença do Outro é condição sine qua non para sua constituição.
A noção de dialogismo[4] - escrita em que se lê o outro, o discurso do outro - pode ser encarado como filosofia de vida, fundamentação da política, concepção de mundo, entre outras perspectivas. No entanto, aqui, interessa-me pensá-lo e restringi-lo aos domínios da linguagem.
Para Bakhtin, o fundamento de toda a linguagem é o dialogismo, essa relação com o outro. “A vida é dialógica por natureza. Viver significa participar de um diálogo:
interrogar, escutar, responder, concordar, etc. Neste diálogo, o homem participa todo e com toda a sua vida: com os olhos, com os lábios, as mãos, a alma, o espírito, com o corpo todo, com as suas ações. Ele se põe todo na palavra e esta palavra entra no tecido dialógico da existência humana, no simpósio universal” (BAKHTIN, 1992, p. 184).
            Assim, o discurso de DC deve ser encarado como um fenômeno perpassado vozes de diferentes enunciadores (em especial do cientista e do divulgador), ora concordantes, ora dissonantes, caracterizando-se, dessa forma, como um fenômeno de linguagem humana essencialmente dialógico e, portanto, polifônico (KOCH, 2001, p. 57)
            Afinal, o enunciado não existe fora do dialogismo:
Cada enunciado é pleno de ecos e ressonâncias de outros enunciados com os quais está ligado pela identidade da esfera de comunicação discursiva. Cada enunciado deve ser visto antes de tudo como uma resposta aos enunciados precedentes de um determinado campo: ela os rejeita, confirma, completa, baseia-se neles, subentende-os, de certo modo os leva em conta (BAKHTIN, 1997a, p. 297)

Dentro da concepção dialógica, Bakhtin (1997b, p. 290) ressalta que, assim como nos diálogos, os textos pressupõem uma atitude responsiva ativa do leitor, podendo ser fônica ou em forma de um ato, no caso de uma ordem dada, por exemplo. Isto implica que todo enunciado tem um caráter de resposta a algo dito, seja naquele momento ou anteriormente. Afinal, toda compreensão é prenhe de respostas e, de uma forma ou de outra, forçosamente a produz (BAKHTIN, 1997).
           
Considerações finais
            Para Bakhtin (1992, p. 403), “o sujeito como tal não pode ser percebido e estudado a título de coisa porque, com sujeito, não pode, permanecendo sujeito, ficar mudo; consequentemente, o conhecimento que se tem dele só pode ser dialógico”. Por isso que pensar o discurso de DC a partir dos postulados da experiência estética, da responsividade, responsabilidade e dialogia, implica considerar que tal discurso é permeado por essa linha de pensamento, pois nesse tipo de discurso é perceptível a exposição de diferentes pontos de vida e informações originadas de diferentes fontes, trabalhadas sob vários aspectos. E a atitude responsiva e responsável do divulgador, no seu trabalho estético, mostra que seu objeto é um tecido de muitas vozes e discursos que se entrecuzam, se completam, respondem uns aos outros.

Referências
AUTHIER-REVUZ, J. Palavras incertas: as não-coincidências do dizer. Campinas: Unicamp, 1998. 107-131.
BAKHTIN, M. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec,1992.
______. Estética da criação verbal. Trad. Maria Ermantina G. G. Pereira. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997a.
______. Problemas da poética de Dostoiévski. 2. ed. rev. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997b.
______. Para uma filosofia do ato responsável.  Trad. Valdemir Miotello; Carlos Alberto Faraco.  São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.
BARROS, D. L. P. Dialogismo, Polifonia, Enunciação. In: BARROS, D. L. P.; FIORIN, J. L. (Orgs.). Dialogismo, Polifonia, Intertextualidade. São Paulo: EDUSP, 2003.
CAMPOS, E. N. O diálogo do espelho. In: O eixo e a roda. Belo Horizonte, v. 12, p. 301-309, jan/jul. 2006. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/poslit
KOCH, I. G. V. O texto e a construção dos sentidos. São Paulo: Contexto, 2002.
ORLANDI, E.P. Divulgação científica e efeito-leitor: uma política social urbana. In: GUIMARÃES, E. (Org.). Produção e circulação do conhecimento: estado, mídia e sociedade. Vol. 1, Campinas: Pontes, 2001.



[1] Mestre em Letras: Linguagem e Representações (UESC, 2011); Mestre em Cultura e Turismo (UFBA/UESC, 2008); Especialista em Leitura e Produção Textual (UESC, 2008); Professor de Português do Instituto Federal da Bahia (IFBA), Campus Ilhéus; Líder do grupo de pesquisa “Linguagem, gêneros discursivos e leitura”, atuando nas seguintes linhas de pesquisa: “Gêneros discursivos: narrativa literária, divulgação cientifica e cultural”, “Linguagem, Gênero e Leitura: o romance e o texto científico” e “Linguagens: ética e estética” do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). E-mail: urbanocavalcante@yahoo.com.br.
[2] Círculo de Bakhtin é a denominação pelos pesquisadores ao grupo de intelectuais russos que se reunia regularmente no período de 1919 a 1974, dentre os quais fizeram parte Bakhtin, Voloshinov e Medvedev. Bakhtin faleceu em 1975, Voloshinov, na década de 1920 e Medvedev, provavelmente, na década de 1940.
[3] O ato é visto como um gesto ético no qual o sujeito se revela e se arrisca inteiro. Pode-se dizer que ele é constitutivo de integridade. O sujeito se responsabiliza inteiramente pelo pensamento.
[4] Esse conceito de dialogismo tem possibilitado o desenvolvimento de estudos atuais de formas diversas, no seio de diferentes concepções teóricas. Vejam-se a análise do discurso jansenista de D. Maingueneau; os estudos da polifonia de O. Ducrot; a perspectiva semiótica de exame da enunciação; a semiótica da cultura da Escola de Tartu (BARROS, 2003, p. 4).

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