segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Stephanie Winkler

Lady Macbeth à Russa: Diálogos entre Shakespeare e Leskov
Stephanie Winkler
stephwink117@hotmail.com
Universidade de Brasília (UnB)

            O objetivo deste trabalho é comparar duas personagens femininas: Lady MacBeth de Shakespeare e Lady MacBeth de Leskov. A partir de uma análise bakhtiniana, pretende-se mapear as diferenças entre as Ladies. Nikolai Semyonovich Leskov (1813-1895) nasceu em Gorokhovo, Oryol, na Rússia. Bem menos conhecido que seus contemporâneos como Dostoiévski e Tolstói, conseguiu mesmo assim ser um dos grandes narradores russos de seu tempo. As traduções para várias línguas, o  reconhecimento literário de vários autores pela sua obra, e sua temática fantástica asseguraram-lhe um lugar permanente como um dos maiores escritores russos do século XIX.  Justamente por essa relevância literária é importante que apresentemos esse autor pouco conhecido e façamos essa análise comparativa da sua obra, Lady Macbeth do Distrito de Mtzensk, paralelamente com uma das maiores tragédias clássicas, Macbeth, de Shakespeare – dando uma ênfase específica na figura feminina principal das obras.
            Ao falarmos do drama isabelino intitulado Macbeth, nós somos levados automaticamente a pensar em sua contrapartida, Lady Macbeth, tamanho é seu peso como persoagem. É possível caracterizá-la como elevada, cuja desmedida é dotada de uma ambição que a leva a superar sua condição de nobreza. Mais ambiciosa e impiedosa que seu marido, Lady Macbeth conseguiu seu próprio lugar na literatura clássica.
            Essa caracterização está ligada aos princípios aristotélicos de tragédia. Aristóteles define a tragédia como a imitação de uma ação que é executada por personagens que agem de acordo com o próprio caráter e pensamento. A tragédia também usa uma linguagem ornamentada mediante os atores que suscitam o terror e a piedade na platéia. Segundo a Poética clássica, são seis os elementos que compõem a tragédia – mito, caráter, elocução, pensamento, espetáculo e melopéia.
            O herói arquetípico das tragédias clássicas é, quase universalmente, do sexo masculino. O herói aristotélico é imperativamente de linhagem nobre e ao lermos a tragédia de Shakespeare com o olhar direcionado para a figura feminina de Lady Macbeth notamos que aqui essa visão se mantém em todos os requisitos. No entanto, é interessante no que diz respeito ao caráter do personagem da tragédia porque Aristóteles sempre rebaixa a figura da mulher.
            São quatro as qualidades que o personagem deve ter: bondade, conveniência, semelhança e coerência. A mais importante é a bondade e o autor, logo no início, ao descrever essa qualidade já avisa que "[..] há uma bondade de mulher e uma bondade de escravo, se bem que o caráter de mulher seja inferior [..]"[1] No que se entende por conveniência, Aristóteles afirma que "[...] não convém à mulher ser viril ou terrível." [2]
            Aqui, destruímos, mesmo que parcialmente, esse princípio aristotélico do herói trágico quando olhamos para a Lady Macbeth de Shakespeare. Lady Macbeth é tão viril, se não mais que seu marido ao mesmo tempo que é infinitamente mais terrível que ele, pois ela insiste que seu marido tem que matar o rei – sua ambição pelo trono não conhece limites.
            Então surge a questão – como sentir piedade por alguém tão cruel?  As atitudes de Lady Macbeth não despertam compaixão, tampouco instauram terror, no entanto é essa falta de compaixão que não a torna um herói trágico pelos princípios aristotélicos. Um herói trágico clássico deve necessariamente despertar tal sentimento. A loucura que cai sobre a Lady, no contexto do drama, se torna como uma ação natural decorrente de suas ações desmedidas. A identificação entre o espectador e os sofrimentos do herói, fundamento da teoria aristotélica da tragédia, não é concretizada, pois Lady Macbeth não causa simpatia, pelo contrário, merece o castigo do crime.
            A outra Lady Macbeth, da prosa, é uma pessoa comum. Sua ambição não-heróica, egoísta e violenta, a conduz a uma satisfação pessoal, afetiva e individualista é envolvida por uma narrativa cotidiana. Diferentemente de Catierina Lvovna que não é feliz em seu casamento e sente-se na maior parte do tempo entediada, de acordo com Jan Kott[3] o casal Macbeth está satisfeito com o casamento e ambos são muito atraídos um pelo outro sexualmente.
            A Lady Macbeth clássica então encoraja seu marido a matar para que ambos se beneficiem do trono, da riqueza e do poder, o que não acontece com a do distrito de Mtzensk cuja motivação é puramente individualista, não se importando com quem ela ferir no meio do caminho. Catierina Lvovna tem como ambição sua nova liberdade, seu novo amor e seus novos prazeres. Como o próprio autor já descreveu a Lady Macbeth russa:                               
                                 Aliás, para ela não existia a luz nem a escuridão, nem o mal nem o bem, nem o tédio nem a alegria; ela não compreendia nada, não amava ninguém, não amava nem a si mesma. [4]

                No entanto, por mais que as duas ladies tenham suas diferenças, elas são muito próximas uma da outra. Ambas são figuras femininas bem mais cruéis e fortes que suas contrapartidas masculinas. Macbeth insinua que sua esposa é um homem encarnado no corpo de uma mulher o que liga o conceito de masculinidade com ambição e violência - o que acontece também com Catierina.
             O que é interessante é que já no final  do drama, Lady Macbeth se rende a sua loucura e assim como sua ambição, sua loucura é bem mais intensa que a de seu marido.
            Sua consciência, antes faltante, agora aflora e a faz perambular pelo castelo à noite e a tentar tirar uma mancha de sangue inexistente de sua mão. Já a loucura de Catierina é o  seu próprio objetivo de re-conquistar seu amado, Serguiêi. Quando ela finalmente percebe que isso não será possível, que ele não está mais interessado nela, ela se vinga matando a outra, no caso, Sónietka.
            Abordando uma análise bakhtiniana para fazer a comparação vemos que tanto Shakespeare quanto Leskov usam os recursos estilísticos usados por Dostoiévski. No entanto, Shakespeare veio antes de Dostoiévski, portanto esses recursos eram apenas traços iniciais do que no futuro se tornaria o romance polifônico. Tchernichevski, ao descobrir o maravilhoso mundo do romance objetivo, como ele mesmo chamava, iniciado por Dostoiévski, percebe que outros autores também utilizavam esse método de narrativa:                                  
Shakespeare retrata as pessoas e a vida  sem mostrá-las, de mesmo modo que pensa a respeito de questões que são resolvidas pelas suas personagens no sentido conveniente a cada uma delas.

            Paulo Bezerra, em seu ensaio A Narrativa como Sortilégio, que escreveu em 2009 após traduzir Lady Macbeth do Distrito de Mtzensk nota que Leskov também fez uso dessa autoconsciência concedida aos personagens do romance. Como Bakhtin já dizia acerca dos personagens de Dostoiévski, eles não estão acabados, pelo contrário, o autor assume uma nova posição radical em relação ao indivíduo representado e quem tem a última palavra é o próprio personagem.
Assim é Leskov, esse narrador que, tal como Doistoévski, estilizou minimamente as falas de suas personagens, respeitando sua condição de criaturas do mundo real e revestindo sua narrativa de grande força realista.

            Ainda acerca da autoconsciência da personagem, Dostoiévski também fala sobre a ideia e como a personagem, através dela, percebe essa consciência de si mesma. Em Gente Pobre, de Dostoiévski, por exemplo, Diévuchkin ganha essa autoconsciência através da leitura do conto O Capote, de Gogol. O autor obriga sua personagem a ler o conto e com isso a idéia é introduzida à personagem. Podemos pensar que Macbeth, por ser o típico herói trágico aristotélico, não possa chegar a ter essa autoconsciência, ele já está acabado, no entanto, Lady Macbeth, por não ser o típico herói trágico já tinha a idéia em sua alma -  ao saber que existe chances de superar sua condição de nobreza, ela se revela ser bem mais ambiciosa e maquiavélica do que se apresentava.
            É interessante mencionar que Bakhtin, assim como Walter Benjamin fala sobre o romance e a prosificação da cultura. Irene A. Machado em seu O Romance e a Voz explica a teoria de Bakhtin e como o romance valoriza a vida ordinária e a linguagem comunicativa, aspectos presentes ativamente na narrativa de Leskov. Segundo Walter Benjamin[5], a experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores - "quem viaja tem muito que contar" – e é exatamente isso que acontece com Leskov que atribui muito de seu período que viajou como inspiração e momento crucial para seu desenvolvimento como escritor. Essas experiências que o autor viveu enriqueceram sua narrativa com traços típicos de seu povo, aproximando-o mais ainda de seu público.
            A narrativa, que perde sua força com a entrada do romance, era puramente oral e para se manter viva tinha que ser repetida e contada várias vezes para não se apagar. O que vemos em Lady Macbeth do Distrito de Mtzensk é que a trama em si não é complexa ou original, mas o jeito que o narrador descreve os personagens, seus pensamentos e ações transformam essa simples novela em algo que envolve o leitor, como se ele tivesse feito parte da própria história. No entanto, a oralidade que está presente na teoria do dialogismo é um fenômeno estético.
            O romance valoriza o homem e sua fala e ele precisa desse diálogo original, da palavra da personagem, pois é isso que caracteriza o romance e o transforma em algo original e criativo. Isso está nitidamente presente em Lady Macbeth do Distrito de Mtzensk, pois vemos os personagens, de diversas classes sociais, interagindo entre si e se relacionando dialogicamente. É através das duas obras, e mais especificamente, das duas Ladies, que os elementos narrativos, orais e escritos em Leskov respondem e estabelecem um dialogismo com Shakespeare e com a literatura e cultura russa do século XIX. *

* Esse texto foi escrito por Stephanie Winkler, integrante do grupo Literatura e Cultura, com orientação do Prof. Dr. Augusto Rodrigues da Silva Junior.
                                              
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ARISTÓTELES. A Poética. Tradução de Eudoro de Sousa. Imprensa Nacional Casa da Moeda. 2003
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da Poética de Dostoiévski. Tr. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.
________________. Para uma Filosofia do Ato Responsável. Tr. Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Carlos (SP): Pedro e João Editores, 2010.
________________. O autor  e o personagem na atividade estética. In: Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 3-192
BEZERRA, Paulo. Dostoiévski: "Bobók"  São Pauo: Editora 34, 2005.
DOSTOIÉVSKI, F.M. Memórias do subsolo. Tr. Boris Schnaiderman. São Paulo: Editora 34, 2000.
_________________. Crime e Castigo. Tr. Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2000.
_________________. Gente Pobre.  Tr. Fátima Bianchi. São Paulo: Editora 34, 2009.
LESKOV, Nikolai. Lady Macbeth do Distrito de Mtzensk. Tr. Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2009.
MACHADO, Irene, A. O Romance e a Voz: A prosaica dialógica de Mikhail Bakhtin. Rio de Janeiro: IMAGO Editora LTDA, 1995.
HELIODORA, Barbara. Por que ler Shakespeare. São Paulo: Editora Globo, 2008.


[1] ARISTÓTELES. Poética. Tradução de Eudoro de Sousa. Imprensa Nacional Casa da Moeda. 2003. p. 123 v. 21-24.
[2] ARISTÓTELES. Poética. Tradução de Eudoro de Sousa. Imprensa Nacional Casa da Moeda. 2003. p. 124 v. 22-23.
[3] KOTT, Jan.  Shakespeare our Contemporary. Tradução de Boleslaw Taborski. Londres. p. 72
[4] LESKOV, Nikolai. Lady Macbeth do Distrito de Mtzensk. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo. 2009.   p. 65
[5] BENJAMIN, Walter. O Narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994, p.197-221.

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