segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Luísa Leite S. de Freitas

A Vivência Estética – Rabelais e Bakhtin
Luísa Leite S. de Freitas – UnB[1]

“Tudo isso define a obra de arte não como objeto de um conhecimento puramente teórico, desprovido de significação de acontecimento, de peso axiológico, mas como conhecimento artístico vivo – momento significativo de um acontecimento único e singular do existir” (BAKHTIN, 2010, p. 175).

Em sua Estética da Criação Verbal, em que Mikhail Bakhtin discorre longamente sobre o papel e a execução do trabalho de um autor, o teórico russo coloca que “a relação esteticamente criadora com a personagem e o seu mundo é uma relação com quem tem de morrer (mortiturus)” (BAKHTIN, 2010, p. 176). Uma obra (e todos os seus elementos composicionais), acabada ou não, está fadada ao destino paralisante do papel, à planificação do plano pictórico e à inércia da elaboração, assim como o autor, ao fim absoluto de determinada força criativa a cada obra concluída.
Em Estética, Bakhtin dá um tripé para a criação literária, em termos de composição: divide-se forma, material e conteúdo. Na obra constituída pelos cinco livros de Gargântua e Pantagruel, do autor francês François Rabelais – abordado por Bakhtin em A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento:  O contexto de François Rabelais –,  temos a força das diversidade de vozes pelo intenso agregar de material da cultura popular medieval, desde personagens da vida prática colocados sob o teto da planificação literária (como juízes e padres participando de histórias aventurescas lado a lado com os protagonistas). Assim, o que compõe o material do autor ou de onde ele colhe o que comporá seu material tem vastidão incomensurável, possibilitando um conteúdo não apenas rico em contrastes – que favorecem as sátiras – como também exigindo intenso trabalho de seleção e composição estética.
O autor jamais adentra o mundo criado por ele próprio. Bakhtin lembra, em tópico destinado ao Problema da Personagem, que o autor deve estar situado na linha tênue entre o mundo de que é seu criador ativo e o mundo a que efetivamente pertence – o mundo prático, portanto afastado das condições proporcionadas pela Arte; o contexto do real, na literalidade da palavra. Assim, a criação do autor é um mundo que lhe pertence e que, simultaneamente, ele não vive e nem abarca de todo, e que foge de seu controle depois de concluído, uma vez que será lido e relido de diferentes formas. O autor vivifica sua criação, ao constituir a obra, mas não a detém. Isso se dá por um fenômeno um tanto mais óbvio, que é justamente o da leitura por terceiros, isto é, pela existência de leitores outros que em nada participaram da criação, mas que a reinventam em suas novas ópticas, e também pela polifonia inerente ao trabalho artístico.
Assim, poderíamos ter uma relação entre esse autor e sua obra – composta por essa linha geral em que o material é transformado em conteúdo e então executado em uma forma, não de maneira consequencial e linear, mas também não necessariamente sempre simultânea – e, dessa relação, tirarmos a relação do autor com seu material, mais tarde conteúdo/forma. Nas palavras de Bakhtin, no trecho que possivelmente explica mais claramente a relação entre esses três segmentos da criação verbal, “o procedimento artístico não pode ser apenas um procedimento de elaboração do material verbal (o dado linguístico das palavras), deve ser antes de tudo um procedimento de elaboração de um determinado conteúdo, mas neste caso com o auxílio de um material determinado” (BAKHTIN, 2010, p. 178). No caso de Rabelais, não por acaso estudado pelo teórico, temos condição especial para a dualidade já apresentada da posse da obra por seu criador em relação à inevitável perda de controle dele sobre a mesma, especialmente uma vez que esteja concluída, mas também antes, na medida em que nem todos os elementos que compõem seu material são dispostos conscientemente sobre o plano criativo.
Todo o trabalho artístico é possível porque o artista é aquele que “sabe ser ativo fora da vida”, de maneira que, sendo um indivíduo inserido em contexto social, político e histórico, como seus contemporâneos, o artista se diferencia por sua capacidade de sair desse meio sem que, não obstante, se aliene. Ainda assim, o escritor meramente se utiliza das palavras, não cria o mundo da língua, assim como Rabelais se utiliza de anedotas e personagens populares que precedem sua criação, ainda que os reinvente. Dessa forma, a relação obra-autor dificilmente se sobrepõe à relação obra-leitor e vice-versa. São fios em uma mesma teia que abarca desde a criação da obra até suas reverberações por outros tempos e contextos, ao passo que a obra dure.
O autor, como colocado em Estética, é consciência da consciência. É, no mínimo, consciência da consciência dos personagens e das interações entre eles que povoam o mundo da criação. E esse mundo, por sua vez, carrega traços e imagens do mundo prático, fora do âmbito criativo, que o autor vivencia efetivamente e de que colhe suas impressões, que compõem o material a ser utilizado na criação verbal. Pode-se compreender, assim, uma série de conexões e intercâmbios, específicos ou difusos, entre esses mundos e essas consciências (adicionando-se ainda a do leitor, ou, dir-se-ia, de cada leitor). Tudo isso, mais do que enriquecer as experiências literárias, define-as, uma vez que “o ato estético dá à luz o existir em um novo plano axiológico do mundo, nascem um novo homem e um novo contexto axiológico – o plano do pensamento sobre o mundo humanizado” (BAKHTIN, 2010, p.177), de maneira que o mundo autossuficiente da obra literária jamais se acaba definitivo em si mesmo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Prefácio de Tzvetan Todorov, introdução e tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.
_______________. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento – O contexto de François Rabelais. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2008.
_______________. Por uma Filosofia do Ato. Tradução de Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.
EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura: Uma Introdução. Tradução de Waltensir Dutra e revisão de João Azenha Jr. 3ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
GARDINER, Michael. “O carnaval de Bakhtin: a utopia como crítica” In Mikhail Bakhtin – Linguagem, cultura e mídia. Organizadores Ana Paula Goulart Ribeiro e Igor Sacramento. São Carlos: Pedro&João Editores, 2010.
PONZIO, Augusto. A revolução bakhtiniana. São Paulo: Editora Contexto, 2010.
RABELAIS, François. Gargantua et Pantagruel [1564], établi et annoté par Pierre Michel. Librairie Générale Française: Paris, 1972.


[1] Aluna de Graduação em Letras – Português orientada pelo professor Augusto Rodrigues da Silva Junior – UnB.

Nenhum comentário:

Postar um comentário