segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Vania Grim Thies

O autor-criador e o(s) outro(s): vivências estéticas na escrita de diários de agricultores
Vania Grim Thies
PPGE/UFPEL

O presente trabalho tem como objetivo investigar a prática da escrita de diários de três irmãos agricultores com pouca escolarização, moradores da zona rural de municípios da região sul do Rio Grande do Sul, explorando o conceito de autoria (autor, autor-pessoa, autor-criador) embasado na teoria da linguagem desenvolvida pelo Círculo de Bakhtin.
Para definir o que é linguagem para o Círculo é preciso recorrer ao todo de suas obras, pois, se apresenta como um conceito complexo: “um conjunto de práticas socioculturais (...) e estão atravessadas por diferentes posições avaliativas sociais” (FARACO, 2009, p. 120) e, ainda, “a realidade fundamental da linguagem é o fenômeno social da interação verbal”. A interação verbal diz respeito a toda complexidade da atividade humana. Tenho buscado problematizar a linguagem nos diários como uma expressão da vida humana, uma escrita que serve para arquitetar pensamentos, enxergar possibilidades, ativar a memória através da escrita e dos desenhos nas margens dos cadernos, pensar a constituição da vida rural, produzir significados, ou seja, problematizo os diários como uma invenção de possibilidades que transgridem a vida ao mesmo tempo em que mostram as preocupações com o cotidiano da vida rural.
Estudar a linguagem tomando como referência os diários escritos por um agricultor é estudar a “complexidade da atividade humana”, pois, a escrita ganha vida ao ser analisada, pensada a partir do contexto do trabalho destes sujeitos. Assim,
 “por trás de cada texto está o sistema da linguagem” (BAKHTIN, 2010 [1981], p. 309) expresso por meio de enunciados, pois, o ser humano é o ser da linguagem e “todas as nossas relações com nossas condições de existência só ocorrem semioticamente mediadas. Vivemos, de fato, num mundo de linguagens, signos e significações” (FARACO, 2009, p.49).  
Conforme Bakhtin ([1981], 2010, p. 4) “na vida não nos interessa o todo do homem, mas apenas alguns de seus atos com os quais operamos na prática e que nos interessam de uma forma ou de outra” e, é justamente uma parte da vida destes agricultores que busco problematizar, para verificar como o autor constitui esteticamente a sua vida através da escrita de diários no cotidiano rural.

Os diários como enunciados concretos
Os diários como enunciados concretos têm autores: os agricultores de uma mesma família que trazem em seus registros diários, a complexidade da vida humana anunciada “como um conjunto de sentidos” (BAKHTIN [2010] 1981, p. 329). São enunciados concretos que trazem acontecimentos da vida do lugar, do trabalho e a rotina da agricultura familiar, os aspectos do clima e do lazer que, articulados entre si, moldam uma estética da vida.
Quando enunciamos, temos “um outro” para quem nos remetemos, um outro nem sempre visível: “o enunciado tem autor e destinatário” (BAKHTIN, [1981] 2010, p. 301). Os enunciados são sempre direcionados a alguém. Para o caso dos diários as escritas são direcionadas para um “outro” nem sempre visível, outro indefinido criado através do contexto do autor.
Para Bakhtin ([1981] 2010, p.10) o autor “é o agente da unidade tensamente ativa de todo acabado, do todo da personagem e do todo da obra, e este é transgrediente a cada elemento particular desta”, ou seja, o autor ultrapassa as fronteiras do enunciado e é responsável pelo todo da obra. O autor poderá ser o criador da obra, mas também poderá ser transgredido segundo cada elemento particular da própria obra, ou seja, o autor acentuará particularidades de seu personagem a cada acontecimento, a cada traço seu, ao seu sentimento, “da mesma forma como na vida nós respondemos axiologicamente a cada manifestação daqueles que nos rodeiam” (p. 3).
Segundo Sobral (2009, p. 65), “o autor bakhtiniano é um autor de linguagem e não um sujeito concreto em termos ontológicos, embora para o Círculo não possa haver autor sem haver um sujeito concreto”. O autor é aquele que cria uma forma de linguagem para atuar e compor a sua obra, o autor assume sua posição autoral e assumindo a posição autoral utiliza-se da linguagem de maneira peculiar organizando seu mundo segundo sua visão estética.
Registrar os fatos da vida cotidiana (através de um diário, por exemplo) é um ato de autoria. Neste momento, quem escreve é o autor-pessoa (o escritor pessoa) de carne e osso que assumirá outra função: o autor-criador. O autor-pessoa é de fácil entendimento, pois é real, é a pessoa que escreve. Já o autor-criador não é disponível, visível, não podemos vê-lo nem tocá-lo. O autor-criador se materializa nas posições axiológicas, como se criasse outro mundo, ele organiza os eventos da vida segundo esta posição axiológica: recorta-os e reorganiza esteticamente.

O ato único e responsável: o processo de autoria
            Considero, no campo da pesquisa qualitativa, o conjunto de vinte e um diários escritos pelos irmãos Schmidt como enunciados concretos que se materializam no ato da escrita ética e responsável. Segundo Amorim (2009, p. 22)
“o ato é responsável e assinado: o sujeito que pensa um pensamento assume que assim pensa face ao outro, o que quer dizer que ele responde por isso”. Os três irmãos agricultores fazem da escrita dos diários um ato ético e responsável porque ao escrever cada um se “responsabiliza inteiramente pelo pensamento” (p. 23).

Através da análise é evidente que os três irmãos[1] são autores, porém, cada um exerce sua posição autoral a sua maneira. Este fato é evidenciado também nos diferentes tempos de escrita de cada um: Aldo escreve desde o ano de 1972 até os dias atuais, Clemer escreveu de 1975 até 1979, e Clenderci escreveu diários de 1982 até 1993. Os diários como enunciados concretos são escritos por sujeitos situados em um dado contexto histórico e em uma determinada esfera de atividade humana: o contexto privado da família Schmidt.

Diários de Aldo Schmidt:
Aldo Kolhs Schmidt (63 anos) é o segundo filho mais velho de uma família de doze irmãos. Iniciou a escrita de diários no ano de 1972, especialmente na data de seu aniversário de 25 anos quando morava com seus pais e demais irmãos na Colônia Santa Áurea, município de Pelotas (RS). Frequentou a escola até o 5º ano. Teve a oportunidade de fazer a seleção para entrar no ginásio na Escola Visconde da Graça, obteve aprovação, mas não quis cursar o ginásio, optando pelo trabalho na lavoura com os demais irmãos.
No ano de 1976, casou-se com Nair Belletti com quem constituiu família e foi morar na Colônia Santo Antônio, 7º distrito de Pelotas (RS). Tem dois filhos homens que optaram por permanecer no campo com o pai e que o ajudam nas plantações de frutas (pêssego e laranja), no cultivo de vassouras[2], na produção de leite e plantações de milho. Possui cerca de 20 hectares de terra e arrenda mais alguns hectares próximo de sua casa conforme a necessidade.
Aldo foi o precursor da escrita de diários na família Schmidt e continuou escrevendo após seu casamento. No conjunto de diários, estão 11 cadernos escritos, totalizando 38 anos de escritas, sem deixar o registro de um dia sequer. No início de suas escritas, ele faz uma rememoração de seu período de infância e adolescência ocupando nove páginas do seu primeiro diário. Todos os diários foram escritos em cadernos de formato pequeno (14,5 x 20,5 cm) em espiral, com diferentes capas (os três primeiros foram encapados com papel colorido e plástico transparente). Nas folhas internas não há espaços entre as linhas, a caneta é de uma só cor, o dia é escrito com o algarismo (escrito na margem do caderno) sem o dia da semana, exceto no domingo, que aparece para diferenciar dos demais dias da semana, o registro de cada novo ano é destacado no alto da página. Cada diário comporta mais de um ano de escritas. O total de diários de sua autoria corresponde a onze cadernos.

Diários de Clemer Schmidt:
Clemer Kolhs Schmidt (59 anos) é o quinto filho da família de doze irmãos. Estudou até o 5º ano do ensino primário. Iniciou a escrita dos diários posterior ao irmão Aldo, em 1975. Ele foi encarregado da escrita coletiva da família, os diários, portanto, não eram seus individualmente, mas da família. Clemer escreve somente na casa do pai, enquanto solteiro, quando casa em 1979, constitui nova família e para de escrever, deixando os diários na casa paterna para que os demais irmãos permanecessem escrevendo.
Atualmente, mora na Colônia Santa Bernardina, no município de Morro Redondo (RS) com a esposa Hilma e com dois filhos. Além dos dois filhos que moram com ele, Clemer tem uma filha e um filho. Trabalha com a agricultura cultivando milho, feijão e pêssego em uma propriedade de 23 hectares, mas não são suas; ele apenas mora e trabalha nessas terras desde que casou. O modo de produção é em sistema de parceria: a produção é dividida e 25% é de seu parceiro de produção, o dono da terra. Clemer também cultiva 4 hectares de terra que pertencem à esposa Hilma e que ficam um pouco distante do local onde mora. O total de diários de autoria de Clemer corresponde a três cadernos.

Diários de Clenderci Schmidt:
Clenderci Kohls Schmidt (54 anos) completou os estudos até a 5ª série do ensino primário. É pequeno agricultor, atualmente dedica-se à plantação de rosas, na Colônia Santa Áurea (Pelotas/ RS).  É casado com Nádia e tem uma filha que está cursando graduação em Agronomia. Clenderci escreveu diários no período de 1982 a 1993, totalizando sete cadernos, numerados por ele: Caderno nº 1, Caderno nº 2 e, assim, sucessivamente até o nº 7. A estética de seus diários é a seguinte: o dia, mês e dia da semana são escritos com caneta esferográfica vermelha (na maioria dos dias). O restante do registro está em caneta azul, mas alguns registros referentes aos domingos estão em vermelho. Não há espaço entre as linhas. Somente no 1º diário, na maioria dos dias, Clenderci assina ao final de cada escrita “(ass. Kohls)”. Nota-se pela caligrafia que há dias em que sua esposa é quem realiza a escrita e faz a assinatura. Para os dias de morte de pessoas conhecidas, há o desenho da cruz na margem. Em alguns dias há outros desenhos na margem como: foice, pintinhos, vaca, entre outros signos.
Clenderci dá início às escritas em 1982, depois de seu casamento. O total de diários de sua autoria são sete.

Algumas considerações (não finais):
Cada irmão exerce seu processo de autoria de maneira diferenciada e, por isso, o ato da escrita é único, singular e responsável. Os enunciados concretos produzidos nos diários, revelam o dialogismo presente na linguagem do cotidiano dos agricultores. Um dialogismo produzido com outras vozes sociais presente no contexto de cada uma dos agricultores.
Estudar as questões referentes à autoria tendo como sustentação teórica o Círculo de Bakhtin traz considerações importantes no campo da educação. Um estudo desta natureza contribuiu para pensarmos como as questões de autoria dos alunos se fazem presentes na escola: escrever um bilhete para o colega, uma carta para a professora ou mesmo manter um diário na escola são práticas de escrita de um gênero discursivo primário não valorizado da mesma forma que uma produção de texto solicitada pelo professor. Ser um aluno autor na escola significa “autorizar-se” a dizer e produzir enunciados com sentido. Muitas vezes os enunciados que carregam sentidos importantes para os alunos passam despercebidos pelas exigências da cultura escolar (livros didáticos e modelos para a produção de textos) e, desta forma, não são valorizados. Pensar a prática da escrita fora da escola, em outros contextos, como o caso da escrita de diários, traz contribuições para pensarmos a escrita dentro do ambiente escolar.

Referências bibliográficas:
AMORIM, Marília. Para uma filosofia do ato: “válido e inserido no contexto”. IN: BRAIT, Beth (org.). Bakhtin: dialogismo e polifonia. São Paulo: Contexto, 2009. p.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 5ª ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.
FARACO, Carlos Alberto. Linguagem & Diálogo: as idéias lingüísticas do Círculo de Bakhtin. São Paulo: Parábola Editorial, 2009.
SOBRAL, Adail. Do dialogismo ao gênero: as bases do pensamento do Círculo de Bakhtin. Campinas: Mercado das Letras, 2009.


[1] Foi permitida a divulgação dos nomes e demais dados através do termo de consentimento e autorização.

[2] Vegetal que depois de seco serve para a fabricação de vassouras.

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