Cartas de frida: uma imagem construida verbalmente
William Brenno dos Santos Oliveira (UFRN)
Orientadora: Profa. Dra. Maria da Penha Casado Alves (UFRN)
Eu devo entrar em empatia com esse outro indivíduo, ver axiologicamente o mundo de dentro dele tal qual ele o vê, colocar-me no lugar dele e, depois de ter retornado ao meu lugar, completar o horizonte dele com o excedente de visão que desse meu lugar se descortina fora dele [...].
Bakhtin
Introdução
Frida Kahlo “pomba delicada”, “perna de pau”, “rapariga rebelde”. São essas as comparações feitas nos títulos dos capítulos do livro que conta a estória da mexicana que revolucionou a sua época e que mesmo debilitada pelas enfermidades iniciadas com um acidente, quando ainda era jovem, não deixou de viver e produzir a arte que representava a sua vida. Mas será que essas figuras realmente conseguem alcançar fidedignamente a imagem da pintora? Será que existe uma figura, uma palavra ou até mesmo um código que defina essa mulher tão bela e exótica? Tentar descrevê-la em uma palavra ou imagem é, certamente, no nosso olhar, uma tarefa sem êxito diante da grandiosidade de sua obra e dos conflitos axiológicos que formavam uma personalidade marcada pelas dores e paixões. Trazemos para este trabalho a Frida escritora de cartas como nosso “outro” com a finalidade de dialogar com essa artista que domina o nosso horizonte de interesses.
Partindo das inquietações que nos moveram para tamanha labuta é que chegamos a este artigo, tendo como corpus o livro intitulado “Cartas apaixonadas de Frida Kahlo” onde, dessa vez, a autora escreve para alguns de seus interlocutores prediletos, ou porque não dizer únicos, este trabalho tem como objetivo fazer uma análise de algumas cartas a fim de mapear o ethos construído por Frida em cartas nas quais ela “pinta” verbalmente uma imagem de si que se revela nas escolhas lexicais, nos recursos linguísticos que escolhe para falar de amor, de traição, de amizade, de dor e de seu estar no mundo . A nossa análise se encontra fundamentada nas postulações teóricas de Charaudeau (2006) e Maingueneau (2008, 2005) sobre ethos discursivo e nas concepções bakhtinianas de gênero discursivo e estilo (BAKHTIN, 2003). Nessa perspectiva, considera-se que todo enunciador constrói ao falar ou ao escrever uma imagem de si que será “lida” por seu(s) interlocutor(es). Este trabalho se insere na área de Linguística aplicada e tem como corpus algumas cartas de Frida Kahlo que serão analisadas a partir de um enfoque qualitativo-interpretativista.
Resta-nos agora seguir o rastro, marcado no “estilo individual” (Bakhtin, 2003), que Kahlo deixou em suas cartas, com a finalidade de retirar o véu colocado por seus auto-retratos e que talvez escondam as verdadeiras faces da artista. Certamente nos surpreenderemos com as relações, com as expressões e com os sentimentos que perpassam os escritos da autora.
Ethos
Essa categoria de análise do discurso tem suas bases na Grécia antiga com a retórica aristotélica, destacando-se da tríade criada por Aristóteles (patos, ethos e filos) para explicar um discurso eficaz, os antigos gregos explicavam que o termo ethos designava a construção de uma imagem para que o sucesso dos seus discursos fosse garantido, Roland Barthes vê o ethos como “os traços de caráter que o orador deve mostrar ao auditório (pouco importando sua sinceridade) para causar boa impressão: é o seu jeito [...]. O orador enuncia uma informação e ao mesmo tempo diz: sou isto, não sou aquilo”. (BARTHES apud AMOSSY, 2005). Amossy ao escrever sobre o tema ainda diz: “O modo como as ciências da linguagem resgatam a retórica, mas às vezes também a abandonam, aparece nas reformulações e debates nos quais surge a noção de ethos.”(AMOSSY, 2005). A construção da imagem de si como chama Amossy é engrenagem principal que faz funcionar a maquina da retórica e consequentemente está ligada a toda e qualquer enunciação seja oral ou escrita.
Um dos teóricos que discute a incidência dessas imagens nos textos escritos e traz a categoria do ethos para a análise dos discursos é Mangueneau que tem publicações nessa área e reforça: “a questão essencial é que o ethos – traduzido em português, mais frequentemente, de maneira bastante infeliz, por “caráter”- está ligado à enunciação, não a um saber extradiscursivo sobre o enunciador”. (MANGUENEAU, 2006). Em seus estudos, o teórico ainda chama a atenção para a construção de uma imagem prévia a que ele denomina de “ethos pré-discursivo (ou prévio)” que nada mais é do que a construção da figura do enunciador antes mesmo dele falar, ou no nosso caso escrever.
“A distinção pré-discursivo/discursivo deve, contudo, levar em conta a diversidade de tipos, de gêneros do discurso e de posicionamentos, não podendo ter pertinência em algum plano absoluto. De qualquer modo, mesmo que o destinatário nada saiba antes do ethos do locutor, o simples fato de um texto estar ligado a um dado gênero do discurso ou a um certo posicionamento ideológico induz expectativas no tocante ao ethos.” (MANGUENEAU, 2006, p. 269).
A respeito disso Charaudeau (2006) alerta: “[...] o ethos não é totalmente voluntário [...], tampouco necessariamente coincidente com o que o destinatário percebe”. Diante de tal implicatura nos cabe pontuar que não trataremos como verdade absoluta as imagens que o discurso, presente nas Cartas de Frida Kahlo, constrói, mas que é através desse rastro escrito deixado pela autora que mapearemos o ethos que este recorte nos possibilitar.
Uma concepção bakhtiniana de estilo
Todo estilo está indissoluvelmente ligado ao enunciado e às formas típicas de enunciados, ou seja, aos gêneros do discurso. Todo enunciado – oral e escrito, primário e secundário e também em qualquer campo da comunicação discursiva – é individual e por isso pode se refletir a individualidade do falante (ou de quem escreve), isto é, pode ter estilo individual. (BAKHTIN, 2006, p. 265)
Para Bakhtin, o estilo encadeia-se com a natureza dialógica da linguagem, composta pelas relações históricas, sociais e culturais. Em outras palavras, o estilo não é uma mera obra do acaso; muito pelo contrário, o estilo é criador: primeiro, a visão do mundo; depois, a elaboração do material, e só existe em um acontecimento ético-cognitivo da vida, essa é a grande “novidade”. A palavra que era então do autor, passa, agora, a ser a palavra que expressa o mundo dos outros e expressa a sua própria relação com o mundo. O estilo do artista é a dobra sobre si mesmo. Dito de outra forma: é o reflexo do estilo dessa relação entre o artista e a obra.
O estilo artístico não trabalha com palavras mas com elementos do mundo, com valores do mundo e da vida; esse estilo pode ser definido como um conjunto de procedimentos de enformação e acabamento do homem e de seu mundo, e determina a relação também com o material, a palavra, cuja natureza, evidentemente, deve-se conhecer para compreender tal relação.(BAKHTIN, 2003, p.180)
O gênero discursivo segundo Bakhtin
Para embasar este artigo, recorremos à concepção bakhtiniana de gêneros discursivos e de linguagem como construção sócio-histórica de sujeitos em interação. Ao definir o conceito, Bakhtin (2003, p. 261) enfatiza que: “o emprego da língua efetua-se em forma de enunciados”, e tais enunciados estão se realizando o tempo todo nos diversos campos da atividade humana, evidentemente, cada campo vai produzir seus “tipos relativamente estáveis de enunciados” (Bakhtin, 2003, p. 262), que vão ser os gêneros do discurso na visão da concepção bakhtiniana.
Segundo o teórico, toda atividade humana está atrelada à utilização da linguagem, e tais atividades são multiformes, ou seja, as formas “típicas de enunciados” (BAKHTIN, 2003) são totalmente variáveis aos campos de atuação, o que não contradiz a unidade nacional de uma língua.
A riqueza e a diversidade dos gêneros do discurso são infinitas porque são inesgotáveis as possibilidades da multiforme atividade humana e porque em cada campo dessa atividade é integral o repertório de gêneros do discurso, que cresce e se diferencia à medida que se desenvolve e se complexifica um determinado campo. (BAKHTIN, 2003, p. 262).
Mapeando o Ethos
Antes de começarmos a analisar o corpus, pontuaremos uma questão que para nós é crucial e ajudará os nossos interlocutores a entender o que foi feito por nós nesse momento. Primeiramente gostaríamos de deixar claro que o livro escolhido (Cartas apaixonadas de Frida Kahlo), compilado por Martha Zamora, trata-se da reunião de mais de quarenta cartas que Frida escreveu para várias pessoas com interlocutores que iam do seu médico ao seu esposo. Por ser um número bastante expressivo optamos por fazer um recorte para este trabalho, visto que não seria possível analisarmos todas as cartas do livro e certamente este é um trabalho que requer um fôlego maior e que provavelmente desenvolveremos em uma futura pesquisa de mestrado. Enfim, o recorte feito por nós se resume a quatro cartas e elas foram escolhidas por se tratar de um mesmo interlocutor, o seu primeiro namorado (Alejandro Gómez Árias) e serem escritas entre 1924 e 1925. Infelizmente, ao observarmos melhor o corpus recortado ainda apareciam mais de três imagens construídas dentro da mesma carta a partir daí sentimos a necessidade de fazer recortes dentro das próprias cartas nos limitando apenas a alguns trechos, que estão expostos nos fragmentos abaixo onde Frida Kahlo belamente constrói o ethos que elegemos para tratar neste artigo, esta imagem chamou a nossa atenção e mais a frente explicaremos por que.
Primeiro fragmento:
Ao observarmos esse trecho, podemos perceber evidentemente que Kahlo se utiliza do silogismo recuperando a retórica grega para afagar o seu amor e deixar claro o sentimento que toma conta de si naquele momento. Uma escritora proficiente conhecedora da filosofia antiga como assim podemos depreender observando o uso que a mesma faz, a forma como ela coloca em sua vida e na vida do seu amado, de maneira muito eficiente, as premissas aristotélicas e faz isso sem titubear. Tal lida com a escrita é reveladora de uma imagem que se monta a partir deste momento: ela brinca com a “criatividade” e mescla com um tom inventivo sua maneira de alcançar afetivamente seu namorado. A adaptação que ela traz para a sua realidade naquele momento já começa a dar indícios da imagem que vai se formando quando lemos este fragmento e se confirma nos próximos.
Segundo fragmento:
Neste caso, marcamos de negrito a metáfora para chamar atenção para o jogo metafórico que ela utiliza quando se refere a ela mesma e isso dar ao texto um tom de conhecimento dos usos linguísticos e remete a uma figura criativa já que assimila características de um objeto/comida ao seu modo de ser e agir. Ao usar a metáfora da “amêndoa de 7 pesos” ao falar de si, e de seu comportamento obviamente, Frida faz um trocadilho com aquilo que no México eles chamam de peladilla que significa: “Mulher vulgar ou insolente”. Esse tom inventivo da autora traz para suas cartas um posicionamento revelador, pelo menos nesse momento, de um ethos criativo que rompe com as cartas tradicionais onde somente se questionava sobre o bem estar dos interlocutores e as novidades que o cercavam. Sendo assim, Frida inova com seus traços de escrita marcante e vulgar, de certo modo, porém criativa, inventiva e brincalhona. Esta metáfora ainda pinta em si a imagem de uma mulher desapegada dos valores sociais de uma época ainda repressora para a classe feminina e revela uma imagem da mulher libidinosamente sensual e sem pudores puritanistas, mas isso é algo que discutiremos em outro momento, por enquanto vamos ficar na “criatividade” marcada em seus escritos.
Terceiro fragmento:
Nesse fragmento Frida Kahlo estabelece uma relação dialógica com o discurso religioso católico apostólico romano, depreendemos que somente tendo conhecimento sobre história de vida dos santos da Igreja católica é que se pode fazer tal ponte. Frida aqui mais uma vez traz para seu discurso a o discurso de outrem e se apropria comparando-se as suas lágrimas com as de São Pedro, essa figura de linguagem que a artista injeta em seu texto é para dar a idéia de exagero mesmo como a própria hipérbole é linguisticamente reconhecida. Isso mostra a proficiência da autora com as palavras e seus usos adequadamente enquadrados que deixam muito mais rico o discurso da pintora nesta carta. De fato, a criatividade nos escritos de Frida Kahlo é uma imagem que marca e faz com que nós leitores nos deleitemos neste corpus tão instigante e complexo.
Conclusão
Finalizando a análise, chegamos a um ponto em comum com relação aquilo que nos propusemos fazer. Uma imagem foi traçada e não nos interessa se condiz ou não com a imagem que o “fiador” (Mangueneau, 2006) esperava que traçassem sobre ele. Interessa-nos destacar que o trabalho com essas imagens (lidas neste trabalho como ethos no singular e no plural como ethé) não tem uma finitude aqui e se alonga pela vida acadêmica daqueles que escrevem sobre a produção dessa pintora. Frida Kahlo é um outro que dialoga muito bem conosco e que dá acabamento estético à vida, nos empresta suas palavras e enche de cores a nossa pesquisa ainda iniciante.
Referências
AMOSSY, R. Da noção retórica de ethos à análise do discurso. In _____: AMOSSY, R. (org.). Imagens de si no discurso: a construção do ethos. São Paulo: Contexto, 2005.
BAKHTIN, M. Gêneros do discurso. In: Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 261-9.
BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2009.
CHARAUDEAU, P. Discurso político. São Paulo: Contexto, 2006.
KAHLO, F. Cartas Apaixonadas de Frida Kahlo. ZAMORA, M (comp.), RIBEIRO, V (trad.). Rio de Janeiro: José Olympio,1997
MAINGUENEAU, D. A propósito do ethos. In: MOTTA, A.R; SALGADO, L. (orgs.). Ethos discursivo. São Paulo: Contexto, 2008.
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