terça-feira, 11 de outubro de 2011

Carlos Alberto Turati

Temporalidade, contemplação e responsabilidade na mensagem fotográfica de imprensa.
TURATI, Carlos Alberto[1]
carlosturatti@yahoo.com.br

Desde a passagem para a segunda metade do século XX mais ou menos, a fotografia tem sido usada em escala de reprodução em massa nos veículos noticiosos brasileiros, principalmente pelas grandes empresas jornalísticas, comumente chamadas de Grande Imprensa. A partir de então, sendo produzida com base em determinadas técnicas e configurada por certa padronização de gênero (a notícia), a fotografia de imprensa não somente formou um estilo de gênero discursivo como também um modo de ler a mensagem fotográfica, constituindo o que Sousa (2002) chama de fotoliteracia.  
Nesta pequena reflexão traçamos alguns apontamentos sobre a mensagem fotográfica na imprensa e a posição axiológica de interlocução instaurada por uma fotoliteracia ou uma maneira cultural de ler a mensagem fotográfica construída historicamente na relação comunicativa entre imprensa e público.

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Segundo o estudioso brasileiro, Boris kossoy, a imagem fotográfica é constituída por uma ambigüidade que a torna capaz de apresentar um registro determinado da realidade e ao mesmo tempo criar uma realidade. Por ser uma expressão plástica, tendo como princípio formal o enquadramento, a fotografia nunca pôde prescindir de sua dimensão estética e autoral. Enquanto registro de uma determinada cena, é também o registro de um ponto de vista sobre a mesma. Além disso, a ambigüidade também se dá em razão de que a fotografia, ao registrar microaspectos individuais e sociais, fixa a memória histórica ao mesmo tempo em que se presta ao uso ideológico.
A perpetuação da memória é, de uma forma geral, o denominador comum das imagens fotográficas: o espaço recortado, fragmentado, o tempo paralisado; uma fatia de vida (re)tirada de seu constante fluir e cristalizada em forma de imagem. Uma única fotografia e dois tempos: o tempo da criação, o da primeira realidade, instante único da tomada do registro no passado, num determinado lugar e época, quando ocorre a gênese da fotografia; e o tempo da representação, o da segunda realidade, onde o elo imagético, codificado formal e culturalmente, persiste em sua trajetória na longa duração. O efêmero e o perpétuo, portanto (kossoy, 2007, p. 133).

Essa característica da imagem fotográfica tem um efeito muito importante no que se refere ao ato contemplativo quando se trata da imagem como notícia: a imagem fotojornalística torna o fato passado – tempo da representação. Cotidianamente a notícia não só informa mas faz esquecer. A foto-notícia num só tempo satura a emoção sobre o acontecimento e absolve o espectador, o leitor da notícia. Que se pode fazer quanto ao passado?, “nem adianta chorar o leite derramado” diria a sabedoria popular. Assim, mais que qualquer outro signo cultural, a imagem fotográfica permite o consumo duplamente hedonista da informação factual. Ao passo que revela uma parcela do mundo, desvincula-a da responsabilidade pelo tempo presente, e muito mais o futuro. Se já foi dito que não há mais história, no fotojornalismo o presente é um efêmero que se dissolve na instantaneidade de uma imagem: tudo é história.
Se para os estudiosos da linguagem a objetividade fotográfica é compreendida há muito tempo como um construto, não se pode exigir que o seja como dado a priori na cultura de produção e consumo da imagem. Aliás, ocorre bem o contrário e sua determinação advém da tradição filosófica e científica na qual surgiu a fotografia, um ambiente extremamente determinado pelo positivismo lógico. Por outro lado, mesmo em estudos semióticos se pode encontrar determinações de uma concepção que defende a objetividade mecânica da imagem, instaurada por Bazin (1991) no seu ensaio dos anos 50 sobre a ontologia da imagem fotográfica.  Em Barthes (1990), por exemplo, a relação entre significado e significante na imagem fotográfica é antes de registro que de transformação, daí o caráter analógico, especular da fotografia. Sem entrar no mérito da questão, mas admitindo a força ideológica que a teoria especular tem na cultura de consumo da imagem fotográfica, podemos compreender com Barthes a revolução antropológica que ela representa na história do homem, o tipo de consciência que determina.
[...] a fotografia instaura, na verdade, não uma consciência do estar aqui do objeto (o que qualquer cópia poderia fazer), mas a consciência do ter estado aqui. Trata-se, pois, de uma nova categoria do espaço-tempo: local-imediata e temporal-anterior; na fotografia há uma conjunção ilógica entre o aqui e o antigamente. É, pois, ao nível dessa mensagem denotada, ou mensagem sem código, que se pode compreender plenamente a irrealidade real da fotografia; sua irrealidade é a irrealidade do aqui, pois a fotografia nunca é vivida como uma ilusão, não é absolutamente uma presença, e é necessário aceitar o caráter mágico da imagem fotográfica; sua realidade é a de ter estado aqui, pois há, em toda fotografia, a evidência sempre estarrecedora do isto aconteceu assim: temos, então, precioso milagre, uma realidade da qual estamos protegidos (Barthes, 1990, p. 36, grifos do autor). 

Embora muitos estudiosos já tenham, desde os anos 90[2], anunciado a queda definitiva do mito da objetividade fotográfica por consequência das novas mídias digitais, parece que a fotografia de imprensa, protegida por códigos deontológicos e pela autopropaganda ética das empresas jornalísticas, tem sua relação com a verdade ainda pouco modificada. E isso se materializa nas formas, temas e estilos que mais do que resistência ao mundo digital, pode revelar uma estratégia discursiva-informacional. Se as evoluções tecnológicas digitais têm permitido a textualização da imagem no cotidiano, a Grande Imprensa, no bojo dos valores de que se serve e defende há muito tempo, ainda apresenta uma aura analógica da fotografia. Essa aura é reforçada tanto pela materialidade do suporte quanto pelos códigos deontológicos. O papel, enquanto suporte milenar do documento, da chancela, ainda parece manter a sombra da autenticação. Depois do ataque terrorista do 11 de setembro no Estados Unidos inúmeros leitores guardaram os jornais como forma de arquivar as imagens publicadas, embora todas estivessem disponíveis no meios digitais (Sousa,  2002). A credibilidade da imagem é chancelada pelo nome do jornal, pela sua tradição e identificação de seu público (Barthes, 1990). A deontologia é determinada pela interação com o leitor, as empresas jornalísticas mantêm frequentes pesquisas de opinião, assim, a ética da informação verbal e visual é construída na cultura de consumo que se afunila entre determinado jornal e seu público mais amplo e constante, o qual não apenas é informado, mas relativamente interfere na construção dos sentidos sobre a representação dos fatos.
Quanto à fotografia de imprensa, é possível dizer que o tipo de consciência de que fala Barthes, de certa forma, pelo menos quanto à condição da imagem como fato passado, parece ainda longe de se transformar definitivamente. Por outro lado, a fotoliteracia do leitor de imprensa visa a representação da verdade quando a efetividade informacional da imagem não extrapola a esfera de valores compartilhados na comunidade semiótica desse leitor. A verdade como direito universal, mas somente como verdade própria ou como opção. Além do mais, a expectativa pela representação implica um vivenciamento empático do acontecimento, porém no limite da contemplação. O vivenciamento participativo (Bakhtin, 2010) não precisa ser, necessariamente, efetivo. Pode-se virar as costas ao fato quando se confronta a realidade mediada, assim como no cinema uma emoção só vive o tempo diegético.  Aqui também uma ambiguidade da fotografia de imprensa: representa a realidade como verdade, mas uma verdade da qual se possa prescindir. 

Referências
BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. 4º Ed – São Paulo: Martins Fontes, 2003.
__________. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos-SP: Pedro e João Editores, 2010.
BARTHES, R. O óbvio e o obtuso: ensaios críticos III. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.
BAZIN, André. O cinema: ensaios. São Paulo: Brasiliense, 1991.
KOSSOY, Boris. Fotografia e história. 2 ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001.
__________. Os tempos da fotografia: o efêmero e o perpétuo. São Paulo: Ateliê Editorial, 2007.
SOUSA, Jorge P. Fotojornalismo. Introdução à História, às Técnicas e à Linguagem da Fotografia na Imprensa. Porto, 2002.


[1] Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Linguística, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), e integrante do GEGe – Grupo de Estudos dos Gêneros do Discurso. Bolsista FAPESP.
[2] Ver Arlindo Machado. Fotografia em mutação. Consultado em www.uel.br/pos/fotografia/wp...
/downs-uteis-fotografia-em-mutacao.pdf 

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