segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Pedro Henrique Couto Torres

Rememoração e contemplação – vivências e falências estéticas nas memórias oitocentistas[1]
Pedro Henrique Couto Torres – graduando em Letras - Português
couto.pedroh@yahoo.com.br
Universidade de Brasília

Tendo em mente o eixo “O contemplador – vivências estéticas e responsividade”, o texto que ora se apresenta ao I EEBA tem por finalidade discutir e refletir acerca do gênero romance ¾ em especial, como o narrador do romance biográfico problematiza uma concepção ética e estética niilista de vida. Analisaremos Memórias do subsolo (1864) de Dostoiévski e Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) de Machado de Assis.
No prólogo à terceira edição de Memórias póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis escreveu: "De Brás Cubas se pode talvez dizer que viajou à roda da vida." (ASSIS, 2006, p. 512). É uma viagem de vida escrita na campa, deixe-se claro. O itinerário da jornada vital do personagem que dá nome às memórias é singular na medida em que sublinha a vida sepulcramente — não fosse o tecido mortuário que articula o romance, não teria este tanta vitalidade. É a vitalidade, entretanto, que não prescinde de uma mortalidade: a morte, seja a do narrador (defunto autor), a das várias personagens rememoradas, ou quiçá da própria narrativa ("[...] Cheira a sepulcro, traz certa contração cadavérica [...]”) (ibidem, p. 583). E a mortalidade se encaminha para uma negação, filosófica e cínica. Do movimento muito vital (e paradoxalmente, mortal) de um romance que consta de vários episódios curtos e fragmentados temos a impressão de que a vitalidade combina-se com um tempo que esconde uma ameaça. Talvez um legado de perdição, doença e miséria...
As Memórias póstumas foram publicadas em livro em 1881. Na Rússia, quase 17 anos antes, Dostoiévski publica a primeira parte de um romance intitulado Memórias do subsolo (ou, dependendo da tradução, Notas do subterrâneo.) Os dois livros mencionados compartilham uma essência narrativa próxima (ora reclamando-se, repondendo-se, ora afastando-se, cada um a sua maneira). Os dois memoriais são narrados em primeira pessoa por personagens que se situam em uma posição biográfico-narrativa não muito convencional: Brás Cubas é um morto que escreve sua biografia; o narrador dostoievskiano, de furiosas memórias, rememora sua vida debaixo da terra. Pretendemos esboçar aspectos relevantes de tal perspectiva narrativa, mormente, no que diz respeito entre a relação entre narração e filosofia ¾ reveladora de um certo questionamento significativo de algumas literaturas oitocentistas.
Machado de Assis, ainda no prólogo à terceira edição do romance (e citando ¾ dialogicamente ¾ seu próprio personagem), já ressaltava que o que fazia de Brás Cubas um autor particular seriam as chamadas "rabugens de pessimismo". "Há na alma deste livro, por mais risonho que pareça, um sentimento amargo e áspero, que está longe de vir de seus modelos. É taça que pode ter lavores de igual escola, mas leva outro vinho.” (ibidem, p. 512). Apesar da pena da galhofa nas Memórias Póstumas, concorrerá a tinta da melancolia: uma tintura melancólica contaminada por ironia.
A força dessa ironia machadiana, em Memórias póstumas de Brás Cubas, constitui-se à medida que contemplação e rememoração são postas em presença no jogo literário. Anotou Augusto Meyer sobre Machado de Assis e sua mundividência: [...] “há nele [Machado de Assis] uma letargia indefinível, a sonolência do homem trancado em si mesmo, incapaz de reagir contra o espetáculo da sua vontade paralisada, gozando até com lucidez a própria agonia." (2008, pp. 15-16) Uma suposta contemplação do romance póstumo dar-se-á, portanto, em termos de uma vontade paralisada e agônica. São doses niilistas que destilam do romance. Novamente, Meyer:
Por mais que ponha nas palavras uma graça incomparável, cheia de perfídias finas e de pulos imprevistos, não sabe disfarçar o pirronismo niilista que forma a raiz do seu pensamento. Com as diversas máscaras superpostas desse voluptuoso da acrobacia humorística, podemos compor uma cara sombria  ¾ a cara de um homem perdido em si mesmo e que não sabe rir. Perdido em si mesmo, isto é, engaiolado na autodestruição do seu niilismo. (ibidem, p. 16).

Brás Cubas não saiu quite com a vida: achou-se com um pequeno saldo "que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: — Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria." (ASSIS, 2006, p. 639). O saldo ao qual o narrador-defunto se refere é o saldo referente à rememoração de uma vida, que tem um quê de autodestruição e niilismo.
Niilista também (e provavelmente autodestrutivo) é o dostoievskiano narrador que, ao iniciar seu relato biográfico, já destaca sua distância do mundo supraterrâneo. Sua voz, adoentada, ecoa debaixo da terra. “Sou um homem doente...Um homem mau. Um homem desagradável. Creio que sofro do fígado. [...] Mas, apesar de tudo, não me trato por uma questão de raiva. Se me dói o fígado, que doa ainda mais.” (DOSTOIÉVSKI, 2009, p. 15). A escrita é adoentada e raivosa, narra-se, talvez, não para apascentar um ânimo que encontra na confissão expurgo e redenção, mas, para agravar e violentar mais ainda a vida e a memória de um tempo perdido.
Ainda no que concerne ao niilismo, é valido lembrar o professor Boris Schnaiderman que, no prefácio a sua tradução das Memórias do subsolo, cita através de E.I.Kiiko[2], um comentário do escritor russo Górki sobre o mencionado romance de Dostoiévski:  “Para mim, todo Nietzsche está em Memórias do subsolo. Neste livro – e até hoje não o sabem ler – se dá para toda a Europa a fundamentação do niilismo e do anarquismo. Nietzsche é mais grosseiro que Dostoiévski”. (KIIKO apud SCHNAIDERMAN, 2009, p. 10)
Comparar um filósofo a um romancista é tarefa ingrata. Por mais que os dois tipos sejam inegavelmente grandes pensadores, a leitura de um romance concorre muito mais vitoriosamente para o gosto dos leitores médios que, dificilmente, trocariam aventuras romanescas por tratados de filosofia. Mais do que a filosofia, como já notara Bakhtin, o romance é o gênero que fala do presente. Está sempre por se fazer:
(...)o romance introduz uma problemática, um inacabamento semântico específico e o contato vivo com o inacabado, com a sua época que está se fazendo (o presente ainda não acabado). [...] O romance é o único gênero em evolução, por isso ele reflete mais profundamente a evolução da própria realidade. Somente o que evolui pode compreender a evolução. O romance tornou-se o principal personagem do drama da evolução literária na era moderna precisamente porque, melhor que todos, é ele que expressa as tendências evolutivas do novo mundo, ele é, por isso, o único gênero nascido naquele mundo e em tudo semelhante a ele." (BAKHTIN, 2010b, p. 400).

Por serem romances, essas duas memórias dialogam e dizem sobre o momento de sua produção no século XIX. Arriscamos dizer que, sobretudo, essas duas memórias por nós trazidas são circunscritas por um niilismo de remorso e negação, ora póstumo, ora subterrâneo.
O remorso talvez seja a maneira pela qual os narradores machadiano e dostoievskiano rememoram suas vivências melancólica e ironicamente. Remorso, do latim remorsus, é particípio passado de remorděre, tornar a morder. Remorso é remordimento, destarte, inquietação e aflição: possivelmente uma das grandes tônicas dessas duas memórias oitocentistas.
Visto desta maneira, o livro de Machado de Assis seria uma tentativa de narrar os insucessos e não realizações de Brás que, nomeadamente não pôde ficar com sua cortesã espanhola, não se casou com a amada Virgília, não virou ministro, não teve filhos e muito menos não ficou célebre pela invenção de seu emplasto. Quanto à Dostoiévski e seu narrador, aí estaria um relato também de fracassos, misérias e isolamento: a doença do fígado, a não aceitação nos círculos de amizades e nos restaurantes russos etc. Os dois narradores constroem uma ponte humana para a negação, possível tendência literária estabelecida no século XIX que se deslocará para o XX: “Seja o que quiserdes, mas é agradabilíssimo ouvir opiniões assim em nosso século de negação, meus senhores.” (DOSTOIÉVSKI, 2009, p. 32).
O remorso é o caminho para a rememoração. Como dissera o ensaísta alemão Walter Benjamin (1994), a rememoração é elemento decisivo na constituição do romance (em oposição à memória, da epopeia). O romance é um retrato da vida através do tempo (que tem na linha do horizonte a morte). Remorso, rememoração e romance são um tripé para os livros aqui apresentados.
As Memórias póstumas de Brás Cubas e Memórias do subsolo são a síntese de uma rememoração e lembrança, o traço distintivo organicamente materializado do gênero romanesco. São narrativas camufladas de memorial nas quais o autor-defunto e o autor-subterrâneo retomam (rememoram) a vida através de um ponto de vista não convencional: um pela morte do sepulcro, o outro pelo isolamento do subterrâneo. Na trama desses dois grandes autores, o leitor aparentemente preterido é, na verdade, elemento preferido para os relatos de memória; ocorre uma retro-alimentação: os narradores das memórias não escrevem para serem obliterados nas gavetas ou diários abandonados. Narram para não serem esquecidos, narram para se perpetuar (e perpetuarem-se na vida dos seus leitores). É a isso que chamamos de simbiose.
A simbiose empática leitor-autor é completa apenas no romance, pois é este o único gênero capaz de aprisionar um ser que, com uma vida a ser vivida coletiva e extra-literariamente, renuncia esta para acompanhar solitariamente os sucessos e fracassos de uma vida alheia. Walter Benjamin (1994) disse que o romance não é significativo por descrever pedagogicamente um destino alheio, "[...] mas porque esse destino alheio, graças à chama que o consome, pode dar-nos o calor que não podemos encontrar em nosso próprio destino.”
Além da por nós denominada simbiose, há em Dostoiévski e Machado de Assis uma qualidade extraordinariamente notável. Conforme Bakhtin (2010b), Dostoiévski inaugurou genuinamente o romance polifônico que, em um universo plural, representa as consciências dos personagens diversamente. A literatura machadiana é também partidária da polifonia (mais precisamente de uma linhagem carnavalizada da literatura). Escreve-nos Bezerra:
Tratando-se especialmente da literatura brasileira, uma leitura atenta de Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, de Incidente em Antares, de Érico Veríssimo, de Macunaíma e “Peru de Natal”, de Mário de Andrade, só para citar alguns, à luz de vários constituintes da sátira menipeia, provaria a grande atualidade do sério-cômico referida por Bakhtin. A tradição carnavalesca tem uma fortíssima presença na literatura brasileira (BEZERRA, 2010a, pp. VIII – IX) (grifo nosso).

O romance polifônico, com base na tradição carnavalizada e carnavalesca da literatura, inaugura uma percepção discursiva inovadora. Machado de Assis e Dostoiévski rompem com os limites do romance usual e anunciam uma linguagem polifônica, tendo aquele primeiro escrito um capítulo definitivo na formação da literatura e da cultura brasileira.
Entre o remorso póstumo e subterrâneo há um espaço decisivamente importante para o tecido mortuário e a mimese do isolamento  dos dois autores estudados. Isolamento este que não exclui a potencialidade da alteridade pois, afinal de contas, nossos dois narradores analisados não prescindem da leitura de suas biografias por um outro: o leitor. Há nos dois autores analisados uma confissão que se constrói na expectativa da palavra do outro. A representação do homem (e sociedade) oitocentista não se faz mais sem conjugar a rememoração de uma vida de negativas e o sentimento de catástrofe. Sob o signo da negação, os dois mestres da literatura mundial construíram um plano estético altamente sofisticado de sentidos das experiências mais intrigantes do homem: à roda da vida viajaram Machado de Assis e Dostoiévski. Ambos muito conscientes da condição decadente a qual o homem tem como legado: a voluptuosidade do nada, a doença, o ódio e o tédio...

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ASSIS, Machado de. Obra completa.Vol. 1. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006.
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução de Paulo Bezerra. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010a.
BEZERRA, Paulo. Prefácio: uma obra à prova do tempo. In: _____. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução de Paulo Bezerra. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010a.
______.Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. 6. ed. São Paulo: Hucitec, 2010b.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 4. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Memórias do subsolo. Tradução de Bóris Schnaiderman. 6. ed. São Paulo: 34, 2009.
MEYER, Augusto. Machado de Assis (1935-1938). 4. ed. Rio de Janeiro: José Olympio/ABL, 2008.
SCHNAIDERMAN, Boris. Prefácio do tradutor. In: Memórias do subsolo. Tradução de Bóris Schnaiderman. 6. ed. São Paulo: 34, 2009.


[1] Trabalho orientado pelo Prof. Dr. Augusto Rodrigues da Silva Junior, da Universidade de Brasília.
[2] Publicado na revista Rúskaia Litieratura, nº 2 de 1968 citado por E. I. Kiiko, numa nota ao vol. V das Obras completas de Dostoiévski.

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