terça-feira, 11 de outubro de 2011

Giovanna Maíra Scoparo, Luciane de Paula

Contemplação do corpo: uma atitude estética responsiva?
Giovanna Maíra Scoparo[1]
Luciane de Paula[2]

            O olhar, os dedos que passam pelos cabelos, o sorriso. O corpo e o seu discurso. Uma sutileza presente no dia-a-dia do homem que nem sempre é percebida por ele: a materialização da linguagem presente no sujeito.
Cada movimento tem sua explicação. Explicação essa, muitas vezes, desconhecida pelo “outro” que contempla, mas (in)conscientemente consciente por parte daquele (“eu”) que age.
Muito embora haja a perspectiva de outro-contemplador e eu-agente, não se deve deixar de perceber que ambos desempenham os dois papéis, numa segunda e mais abrangente perspectiva que permite observar um “outro”-agente-contemplador e um “eu”-contemplador-agente. Isso se dá porque a manifestação do “eu” nunca está dissociada da do “outro”: ele sempre responde àquilo que foi previamente contemplado.
Segundo Bakhtin,
“Cada enunciado deve ser visto antes de tudo como uma resposta aos enunciados precedentes de um determinado campo (aqui concebemos a palavra “resposta” em seu sentido mais amplo): ela os rejeita, confirma, completa, baseia-se neles, subentende-os como conhecidos, de certo modo os leva em conta. Porque o enunciado ocupa uma posição definida em uma dada esfera de comunicação, em uma dada questão, em um dado assunto, etc. É impossível alguém definir sua posição sem correlacioná-las com outras posições. Por isso, cada enunciado é pleno de variadas atitudes responsivas a outros enunciados de dada esfera da comunização discursiva.” (2003, p. 297).

            O discurso do corpo, como todo e qualquer discurso, não se dá ao acaso, mas sim, como dito anteriormente, de maneira (in)conscientemente consciente. Isso porque o sujeito pode não se dar conta do que o seu discurso corporal apresenta e pode até ser enganado por ele. Clássico caso daqueles que não conseguem mentir: o discurso verbal diz algo que é desmentido pela estranheza e nervosismo dos movimentos do corpo. Uma situação menos traumática é o próprio discurso corporal do flerte, que, com movimentos bastante sutis, mostra que o eu (contemplador-agente) se sente atraído por aquele outro (agente-contemplador) que atrai e, muitas vezes, o primeiro nem percebe o quão evidentes são os seus sinais – de natureza muito mais fisiológica do que consciente. Porém, para Bakhtin, a existência é caracterizada por um não-álibi, e, portanto, por mais incoscientes que os atos dos sujeitos possam parecer, ele detém completa responsabilidade e responsividade sobre eles - responsabilidade pelo ato e responsividade aos outros sujeitos no âmbito das práticas em que são praticados os atos, segundo Sobral (2005, p. 20-21).
            De volta ao exemplo da mentira. Há ainda a possibilidade de frieza e indiferença nos movimentos, a fim de não deixar vestígios de que se está mentindo. Nesse caso, o sujeito tem plena consciência dos discursos verbal, não-verbal e sincrético que apresenta. A partir disso, é possível concluir que o ser humano controla, consciente ou apenas fisiologicamente, até o seu discurso corporal, a fim de atingir um determinado objetivo. Isso se dá tanto no cotidiano quanto nas esferas de atividades mais elaboradas – espetáculos de arte, no meio acadêmico, etc.
Para Bakhtin (2003), as esferas cotidianas constituem o gênero primário enquanto os gêneros secundários se referem aos gêneros mais elaborados, que apresentam determinado acabamento, mas, claro, sempre advindos dos gêneros primários. Mas, e ao que diz respeito o discurso corporal, como ele se comporta? A que gênero pertence? A resposta é: o discurso corpóreo (ou corporal) se comporta da mesma maneira que os demais, ou seja, o sujeito possui consciência de seus atos, segundo o filósofo russo. Isso, tanto nas esferas cotidianas quanto em esferas específicas, como as das artes – isto é, organizados em gêneros primários ou secundários. Pensemos, por exemplo, nas artes cênicas ou performáticas. Em especial, no teatro e na dança.
O teatro e a dança, bem como o circo, a ópera e tantos outros gêneros discursivos das esferas das artes, são bons exemplos do controle do enunciado corporal, que se dá de maneira mais estética do que aquela presente no cotidiado.
O enunciado das artes cênicas é minusciosamente organizado, a fim de produzir determinado efeito no seu outro, seu público. Tomando o teatro como exemplo inicial, podemos pensar que ele pode provocar tanto o riso, quanto um efeito catártico. Para tal, o ator, com ajuda de um diretor teatral e até mesmo de outros atores, deve analisar e ter total controle sobre sua expressão corporal, para que produza em seu público o exato efeito que procura. Deve tomar o extremo cuidado para que o discurso de seu corpo não contradiga o discurso da fala da personagem ou mesmo de toda a peça. Uma má execução pode causar o efeito contrário e fazer o público rir quando se esperava que ele chorasse. Este deve ser um dos maiores medos dos atores e, portanto, aquilo que mais os impulsiona para que trabalhem arduamente.
De acordo com a teoria bakhtiniana, o produtor é também contemplador discursivo e vice-versa, uma vez que “eu” e “outro” dialogam e respondem um ao outro. Nesse sentido, pode-se dizer que o ator é, antes de tudo, um contemplador, pois ele deve estar atento aos enunciados corporais, seus e dos “outros”, mais cotidianos e a como eles respondem a determinadas situações. Feito isso, aplica, segundo a necessidade do texto teatral, seu estudo ao discurso de sua personagem.
O trabalho dramático não é idealista – o ator não “encarna” seu personagem e vive, ele mesmo, a catarse ou qualquer outro efeito que queira provocar no “outro” como seu. Pelo contrário, ele tem plena consciência de sua posição dentro e fora da peça. Um exemplo: o clássico Romeu e Julieta, de Shakespeare. O sujeito ator (atriz), ao interpretar Julieta, não estará completamente de fora da peça, uma vez que entrará em cena sabendo que irá sofrer por um amor impossível e, enfim, morrer; mas também não se encontrará completamente inserida na personagem, de modo que sofra e se mate de fato. O que garante a veredictoriedade daquilo que contemplamos é, justamente, a enorme preocupação que a atriz tem em escolher, minusciosamente, quais os elementos que consituirão seu enunciado corporal de Julieta. O movimento corporal, bem como o cenário, o figurino e a maquiagem respondem à proposta do texto e à reação do público. Assim, para produzir determinado efeito, exigido pelo discurso teatral, o ator primeiro contempla os corpos (seu e dos outros), num estudo minucioso dos movimentos que melhor constroem o efeito de sentido desejado para, então, produzi-los no ato dramático da encenação. Em cena ação responsiva e responsável, consciente.
A dança é um pouco mais específica. Ela não se baseia tão amplamente no cotidiano, como faz o teatro. Os movimentos corporais do dia-a-dia são aproveitados pela dança de maneira estilizada (elaborada, estética – com determinado acabamento) e adaptada para o seu gênero, com maior amplitude, na maioria das vezes, e embalados por uma certa musicalidade. O andar na rua não é o mesmo andar na dança.
Ao se pensar na especificidade de cada gênero, pode-se imaginar como o bater das asas de um pássaro representado no ballet clássico é completamente diferente daquele representado na dança moderna. Cada tipo de dança, cada gênero (relativamente estável), tem sua própria maneira de representar aquilo que se vê no mundo, de acordo com a sua proposta, sempre pensando em como este ou aquele movimento surte determinado efeito de sentido no outro, elaborado a partir da observação dele (do outro), em resposta a ele, à vida. Por isso, a arte representa a vida, segundo Bakhtin/Voloshinov (o que aparece em “Discurso na vida e discurso na arte”).
Quanto mais próximo o movimento da plateia, maior a nitidez da responsividade das artes cênicas e do sujeito que as produz (o ator, o dançarino). A dançarina, qualquer que seja seu tipo de dança, quando próxima do público, tende a responder ainda mais claramente aos seus estímulos – com olhares, sorrisos ou outros gestos que evidenciam essa interação e criam o efeito de sentido desejado pelo texto artístico (musical, no caso). Essa é a grande marca, também, do improviso, que responde completamente às manifestações do público (o “outro”) e que está presente na maioria das artes cênicas.
Quando se pensa no clássico comentário “Dançar faz bem para a auto-estima”, uma pergunta persiste em ser feita: será que o discurso corporal transforma o interior daquele que dança ou seria o interior quem transforma o discurso? O artista é responsável e responsivo mesmo a seus próprios desejos e necessidades. É possível que, num dia ruim, triste ou estressante, não tenha uma boa performance. É o interior transformando o discurso – o que é um problema nas artes cênicas, onde se deve ter o maior controle possível sobre o corpo e sua expressão.
O artista deve ter consciência de que ele detem o poder sobre seu enunciado. Mas, e o contrário (o enunciado deter poder sobre o sujeito), existe? Costuma-se dizer que a dança do ventre, por exemplo, faz com que a mulher se sinta mais feminina. Leveza e delicadeza nos movimentos são fatores que podem ser trabalhados, mas que necessitam um /querer/ – partem, portanto, do interior daquela que dança. A dança não /faz/ (trans-forma) o sujeito, mas age ao despertar sua feminilidade latente. O corpo responde mesmo a uma necessidade da própria dança e se manifesta ainda mais claramente em resposta ao eu-outro.
Liapunov (apud BAKHTIN, 1993), em seu prefácio ao livro Para uma filosofia do ato, na edição americana[3], explica essa bilateralidade do ato responsivo:
“E entretanto o ato inteiro, integral, da nossa atividade, da nossa experimentação real, tem dupla face: ele se dirige tanto para o conteúdo quanto para o ser (a real execução) do ato. O plano unitário e único onde ambos as faces do ato mutuamente se determinam (isto é, onde eles formam um todo individido) é constituído pelo evento em processo, único, do Ser. Para refletir-se em ambas as direções (no seu sentido e no seu ser) o ato precisa, portanto, ter a unidade da responsabilidade ou respondibilidade[4] bilateral: precisa responder tanto pelo seu conteúdo sentido quanto pelo seu ser.” (1993, p. 13-14).

Sobral completa, dizendo que:
“(...) a filosofia do ato ético (ou ato “responsível” ou ato responsável) de Bakhtin é, em termos gerais, uma proposta de estudo do agir humano no mundo concreto, mundo social e histórico e, portanto, sujeito a mudanças, não apenas em termos de seu aspectomaterial, mas das maneiras de os seres humanos o conceberem simbolicamente, isto é, de o representarem por meio de alguma linguagem, e de agirem nesses termos em circunstâncias específicas.” (2008)

            Em suma, pode-se dizer que o discurso corporal, assim como todo discurso, é completamente responsivo a uma interação com o outro – seja esse outro um ser humano, o mundo, o gênero ou o próprio corpo. Seu caráter ideológico se apresenta por meio da escolha dos movimentos, no cotidiano e nas artes cênicas, assim como a escolha do léxico, no cotidiano e na literatura. E seu caráter ético, enquanto (inter)ação, marcada por responsabilidade e responsividade.

Bibliografia:
BAKHTIN, M. M. / VOLOSHINOV. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1997.
___. Discurso na vida e discurso na arte. Tradução de Carlos Alberto Faraco e Cristóvão Tezza feita para fins acadêmicos. Mimeo, sem referência.
BAKHTIN, M. M. / MEDVEDEV. El método formal en los estudios literarios. Madrid: Alianza, 1994.
BAKHTIN, M. M. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
___. Para uma filosofia do ato. Tradução de Carlos Albero Faraco e Cristóvão Tezza para fins acadêmicos, 1993. Mimeo, sem referências.
______. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos: Pedro e João, 2010.
SOBRAL, A. “O Ato ‘Responsível’, ou Ato Ético, em Bakhtin, e a Centralidade do Agente”. Signum: Estudos da Linguagem. Londrina, n. 11/1, 2008, pp. 219-235.
______. “Ato/atividade e evento”. In: BRAIT, B. (Org.). Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005. p. 11-36.



[1] Graduanda do curso de Letras da UNESP – Câmpus de Assis; PIBIC; GED; gscoparo@gmail.com
[2] Orientadora; Professora de Linguística da UNESP – Assis; GED; lucianedepaula1@gmail.com
[3]  A tradução utilizada, feita por Carlos Alberto Faraco e Cristovão Tezza, destina-se exclusivamente para uso didático e acadêmico.
[4] Faraco e Tezza utilizam o termo “respondibilidade” para designar aquilo que chamamos de “responsividade”. Em uma nota, dizem ainda preferir a palavra “responsabilidade” a “respondibilidade” pelo fato de “seu uso corrente em português conservar etimologicamente a ideia de ‘resposta’, num sentido mais amplo e concreto, moralmente enraizado, mantendo-se portantofiel à ideia fundamental do termo bakhtiniano.”.

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