terça-feira, 11 de outubro de 2011

Cristiano José Rodrigues

Documentários Monológicos e Polifônicos
Cristiano José RODRIGUES[1]

           É fato que, apesar da marcante contribuição de Mikahil Bakthin para a área de literatura e linguagem, seus estudos jamais se referiram propriamente ao cinema. Autores como Robert Stam e Arthur Autran, procuram trazer as reflexões Bakthinianas para o universo das imagens em movimento, e assim essa apropriação ainda se mostra extremamente fértil e potente. Pensando nisso, procuro um paralelo entre as categorias do romance, traçadas por Bakthin, e seus possíveis correspondentes na produção de cinema documentário contemporâneo. Percebo que como no romance, podemos caracterizar algumas narrativas documentais como “monológicas” e outras como “polifônicas”.
          Essa percepção me ocorreu ao ver na mesma semana deste ano de 2011, dois filmes documentários de longa metragem, lançados no circuito comercial brasileiro. São eles: “Quebrando o Tabu” do diretor Fernando Grostein Andrade e “Família Braz: Dois Tempos”, dos diretores Arthur Fontes e Dorrit Harazin.
          O primeiro, procura traçar um histórico do combate ao consumo de drogas e defende a tese de que se houve um momento em que se declarou guerra às drogas, chegou o momento de se declarar a paz, e tratar o tema como de saúde pública e não de polícia. Para isso, recorre ao ex presidente Fernando Henrique Cardoso, como condutor da narrativa e elo entre as diversas entrevistas, em sua maioria com autoridades e celebridades, como Bill Clinton, Dráuzio Varella e o escritor Paulo Coelho.
          O segundo, propõe uma radiografia de uma classe social em ascensão no Brasil, através da volta dos diretores ao bairro de Brasilândia –periferia da cidade de São Paulo –  onde reencontram os personagens de um documentário feito ali mesmo, dez anos atrás, "A Família Braz".
          Segundo Paulo Bezerra (2005), à categoria de monológico, proposta por Bakthin, estão associados conceitos de autoritarismo e acabamento, elementos que podemos observar nas entrevistas e animações presentes na narrativa do filme “Quebrando o Tabu”. Apesar de extremamente diversificadas em termos de personagens (políticos, médicos, escritores e usuários ), as entrevistas são extremamente dirigidas e burocráticas, quase oficiais e todas procuram colaborar para justificar a tese defendida pelo filme. Além do formato oficial das entrevistas, que podemos observar no tipo de enquadramento (padrão telejornalístico), as opiniões ou vozes, são acabadas, conclusivas e de certa forma, autoritárias, pois não deixam espaço para o diálogo e diversidade de questões.
          Ainda segundo Bezerra (2005), à categoria bakthiniana de polifônico, estão associados conceitos de realidade em formação, inconclusibilidade, não acabamento, dialogismo e polifonia; exatamente o que podemos perceber na narrativa do filme “Família Braz: Dois Tempos”. Ao revisitar as personagens dez anos depois do primeiro encontro, os diretores procuram de forma fluida capturar nuances da mudança do padrão de vida da família. As entrevistas possuem enquadramentos mais abertos, deixando as personagens se locomoverem e há uma interação entre seus discursos e os espaços físicos e os deslocamentos. Vamos percebendo detalhes, não somente pela fala das personagens, mas pelas suas ações e interações, revelando um universo por vezes contraditório e cruel. Mais do que um discurso pronto, acabado, a narrativa apresenta uma “realidade em formação” aberta para diferentes entradas e percepções do expectador, que ao se colocar como agente ativo da narrativa, dialoga com a riqueza do universo apresentado na tela.
          Sem procurar traçar juízo de valor entre os diferentes formatos, cabe aqui observar que as categorias monológico e polifônico se justificam pelos objetivos dos filmes. Se no primeiro caso, “Quebrando o Tabu”, temos um filme tese, onde tudo corrobora para a justificativa de uma questão pronta, acabada, onde o expectador possui poucas entradas e se coloca numa posição mais passiva;  no segundo, “Família Braz: Dois Tempos”,  temos  um filme antítese, onde o universo das personagens é explorado em inúmeras possibilidades, inclusive contraditórias, abrindo para o expectador diversas entradas interpretativas e se posicionando ativamente diante da narrativa, constituindo-se como um expectador ativo, aberto e disponível para o diálogo.

Referências
Bezerra, Paulo.  In Brait, Beth . Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005.
“Quebrando o Tabu” -  2011. diretor Fernando Grostein Andrade.
 “Família Braz: Dois Tempos” – 2011. diretores Arthur Fontes e Dorrit Harazin.


[1] Professor da Facom/UFJF, doutorando do PPGE/UFJF membro do Grupo de Pesquisa LIC orientando da profª. Dra. Maria Teresa de Assunção Freitas.

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