terça-feira, 11 de outubro de 2011

Ana Clara Magalhães de Medeiros

Um romance polifônico entre a contemplação e a ação:
O ano da morte de Ricardo Reis, de José Saramago
Ana Clara Magalhães de Medeiros*

O gênero romanesco parece ser, desde a Modernidade, o que melhor possibilitou o equacionamento polifônico de vozes distintas, alcançando uma forma que, inacabada, permanece sempre plurisignificante. A trajetória do romance caminha no sentido de propiciar, cada vez mais, a inserção da voz do outro no discurso, como indicava Mikhail Bakhtin. O desembocar desse entrelaçamento utopista de vozes parece culminar no que a crítica latino-americana convencionou chamar de novo romance histórico[1].
O ano da morte de Ricardo Reis (1988) é obra de Saramago que se enquadra nessa tendência de fazer romance a partir de elementos históricos que, reconfigurados, transformam-se em matéria literária. Importa perceber como esse desdobramento romanesco – surgido a partir da década de 80 do último século, na literatura latino-americana e lusitana – compõe-se a partir de um todo dialógico possível somente a partir das condições criadas por gêneros antecedentes. A um só tempo, este novo tipo de romance dialoga com a tradição literária, com a cultura popular de que é reflexo, com o mundo prosaico em que se insere e com o passado que reconta.
O dialogismo começa no título e perdura por toda a obra: Ricardo Reis, poeta heterônimo criado por Fernando Pessoa, é aqui personagem que deambula por Lisboa sem encontrar modo de encaixar-lhe seus ideais de esteta neo-pagão. Saramago mantém o poeta em sua lírica e em sua biografia (inventada por Pessoa), mas recria as suas vivências e a ficção se reduplica:
Ora, Ricardo Reis é um espectador do espetáculo do mundo, sábio se isso for sabedoria, alheio e indiferente por educação e atitude, mas trémulo porque uma simples nuvem passou (...) Falta a Ricardo Reis um cãozito de cego, uma bengalita, uma luz adiante, que este mundo e esta Lisboa são uma névoa escura onde se perde o sul e o norte, o leste e o oeste, onde o único caminho aberto é para baixo, se um homem se abandona cai a fundo, manequim sem pernas nem cabeça (SARAMAGO, 2010, p. 87).

         O leitor, um pouco familiarizado com a poética de Reis, identifica com facilidade, nesse trecho, um dos mais célebres poemas do heterônimo: “Sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo”. O narrador – que é mais comentador que contador – joga com a possibilidade de relativizar a sabedoria de manter-se em posição contemplativa frente ao mundo. Lança as hipóteses de alheamento ou indiferença para os espectadores “do espetáculo do mundo”. Os trechos literais retirados das odes de Ricardo Reis invadem a narrativa de forma prosificada, em uma enxurrada discursiva que mescla narrador, poeta e quantas mais vozes o leitor consiga depreender.
         Falta, contudo, ao poeta que dá nome ao romance um cão guia de cego, uma bengala, alguma luz, algo que o guie no caminho enevoado de Lisboa. A capital lusitana é descrita como cidade sem direção “se perde o sul e o norte, o leste e o oeste”, que tem como sentido único um buraco ao fundo, em que se cai “se um homem se abandona”.
         A partir desse trecho, delimita-se a primeira grande problemática da obra, que é justamente o cerco político autoritário de Portugal à época Salazarista – mais precisamente, em 1936, ano da morte de Fernando Pessoa e ano do suposto retorno do heterônimo Ricardo Reis à capital portuguesa depois de longa estadia no Brasil – em contraste com a postura estoica, contemplativa, “sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz”[2] do heterônimo pessoano. Enquanto a matéria histórica denota o monologismo totalitário, a tessitura narrativa aponta para a polifonia democrática.
As possibilidades dialógicas no referido romance de Saramago são inúmeras. O leitor de Borges identificará uma pista no livro (não) lido por Reis, The god of the labyrinth[3]. A tradição literária portuguesa também é fonte de investidas dialógicas no livro, que tem no primeiro e no último parágrafo referência aos Lusíadas, além de aparecerem vestígios de Almeida Garret e Camilo Peçanha, como também dos outros heterônimos pessoanos Alberto Caeiro e Álvaro de Campos.
Embora essas relações com demais autores sejam abundantes e importantes no romance, aqui, a análise dos recursos polifônicos estará centrada no aparecimento de três vozes principais: a dos poetas Ricardo Reis e Fernando Pessoa e a das camadas populares representadas por Lídia. Esse recorte justifica-se pela tentativa de mostrar como duas poéticas distintas apontam para condutas ideológicas também discrepantes e como o discurso oficial pode ser desnudado pela fala popular autêntica, quando esta se redimensiona no espaço literário. O narrador apresenta-se como o elemento decisivo na garantia da permeabilidade de todas as vozes.
Ficou dito que, frequentemente, aparecem fragmentos de poemas de Reis. Com Fernando Pessoa a incidência não é menor. O ortônimo aparece como contraponto do poeta pagão, pois, na contramão do monarquismo sossegado e inerte de Reis, Pessoa é o poeta que já está morto. Condição que acentua seus traços de artista pensador, autoconsciente de Mensagem ou d’ “A Hora Absurda”. Os encontros entre os dois personagens são momentos privilegiados de dialogismo dentro da narrativa. Ressalte-se que os dois interlocutores são muito peculiares, pois um deles é heterônimo, e, portanto, existe apenas no âmbito ficcional. O outro, embora tenha sido poeta “real”, já se encontra morto. Saramago dá voz a quem não pode falar – o fictício e o morto – para criar, no romance, de forma exagerada e irônica, a utopia dialógica que parece esvair-se, ao longo da história:
 (...) é difícil a um vivo entender os mortos, Julgo que não era menos difícil a um morto entender os vivos, O morto tem a vantagem de já ter sido vivo, conhece todas as coisas deste mundo e desse mundo, mas os vivos são incapazes de aprender a coisa fundamental e tirar proveito dela, Qual, Que se morre, Nós, vivos, sabemos que morremos, Não sabem, ninguém sabe, como eu também não sabia quando vivi, o que nós sabemos, isso sim, é que os outros morrem, Pra filosofia, parece-me insignificante, Claro que é insignificante, você nem sonha até que ponto tudo é insignificante visto do lado da morte, Mas eu estou do lado da vida, Então deve saber que as coisas, desse lado, são significantes, se as há, Estar vivo é significante, Meu caro Reis, cuidado com as palavras, viva está a sua Lídia, viva está a sua Marcenda, e você não sabe nada delas, nem o saberia mesmo que elas tentassem dizer-lho, o muro que separa os vivos uns dos outros não é menos opaco que o que separa os vivos dos mortos, Para quem assim pensa, a morte, afinal, deve ser um alívio, Não é, porque a morte é uma espécie de consciência, um juiz que julga tudo, a si mesmo e à vida, Meu caro Fernando, cuidado com as palavras, você arrisca-se muito, Se não dissermos as palavras todas, mesmo absurdamente, nunca diremos as necessárias (IDEM, IBIDEM, pp. 278-279).
        
         O admirador das odes de Reis ficará surpreso com o acuamento do poeta e com sua visão limitada do existir humano. A percepção abrangente que dá conta das inquietações existenciais é justamente a de Fernando Pessoa morto. A atual condição de Pessoa – a de defunto – confere a ele uma visão mais ampla que o faz enxergar como tudo o que se valora em vida é insignificante. Mostra ao esteta pagão que crer no viver como algo “significante” e não conhecer nada da Lídia ou da Marcenda que o cercam, é existir de forma mesquinha. A discussão entre o poeta e sua projeção heterônima é longa e hermética, perpassa questões políticas, contudo as transcende, para problematizar a própria condição humana em um mundo que estabelece muros opacos entre os homens. O diálogo lembra a gravidade poética de um Pessoa ortônimo, que, personagem, proclama: “Se não dissermos as palavras todas, mesmo absurdamente, nunca diremos as necessárias” (IDEM, IBIDEM). Aqui, tem-se, em meio à discussão vulgarizada dos dois personagens, a sabedoria encontrada em sentença de pouco mais de uma linha. A frase justifica a falação de Pessoa, como consagra a prosa saramagueana, que é, consensualmente, a narrativa verborrágica: diz tudo para não deixar de dizer as palavras necessárias.
Neste trecho, flagra-se a conversação de dois poetas – sendo um projeção ficcional do outro – além do eco da voz do narrador que pode significar intromissão do que Bakhtin chamaria de “última instância autoral” (2006, p. 369), que é uma voz poderosa situada além dos limites formais do romance, entre o autor e a recepção no processo de validação da obra de arte.
Em Problemas da poética de Dostoiévski, Bakhtin, perscrutando a formação do gênero romanesco, afirma que o “diálogo dos mortos” é momento decisivo “no qual homens e ideias, separados por séculos, se chocam na superfície do diálogo” (2010, p. 127). Nesta ficção duplicada, acrescenta-se que, no limen dialógico, encontram-se não somente “homens e ideias separados por séculos”, mas também personagens emprestados, poetas reais ou imaginários e figuras históricas desautorizadas pelo nível de aterrissagem – outra expressão bakhtiniana, aparecida em Cultura popular na Idade Média e no Renascimento – que essa narrativa alcança.
No clima de “profundo utopismo popular” (BAKHTIN, 2008, p. 20), a silenciosa musa clássica Lídia, com quem Ricardo Reis liricamente enlaçava as mãos, transforma-se em figura genuinamente popular, mulher que se desloca com muita irreverência da posição de ninfa inspiradora para a de companheira amorosa do poeta. Lídia cria cenas e condições dialógicas possibilitadas somente por sua aproximação erótica, e o faz com a naturalidade de qualquer personagem folhetinesca:
[...] um hóspede de meia idade sorri, bem-disposto, e atrás dele, se não nos enganam os olhos, está uma mulher também a rir, mulher é ela, sem dúvida, mas nem sempre os olhos vêem o que deveriam, pois esta parece criada, e custa-nos acreditar que o seja mesmo e de condição, ou então estão a subverter-se perigosamente as relações e posições sociais, caso muito para temer repete-se, porém há ocasiões, e se é verdade que na ocasião se faz o ladrão, também se pode fazer a revolução, como esta de ter ousado Lídia assomar à janela por trás de Ricardo Reis e com ele rir igualitariamente do espetáculo que a ambos divertia. São momentos fugazes da idade de ouro, nascem súbito, morrem logo, por isso levou tão pouco tempo a cansar-se a felicidade (SARAMAGO, 2010, p. 55).
        
Lídia faz a revolução no sentido de que mantém, ao longo de toda a narração, uma postura ativa, que “subverte perigosamente as relações e posições sociais”, pois não se esgueira diante do iminente ativismo político. Mais que isso, Lídia revoluciona a tipologia da personagem quando, mesmo podendo “rir igualitariamente do espetáculo”, opta por redimensionar a musa neoclássica pela ação:
Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
Ouvindo correr o rio e vendo-o (PESSOA, 1986, p. 190)

         A Lídia romanceada recusa-se a ouvir e ver o rio correr. Querendo “trocar beijos e abraços e carícias”, o faz. Com um amor convulso, enlaça as mãos às de Reis e alça-se como o outro contraponto, ao lado de Fernando Pessoa, basilar na ambivalência ética que busca renovar a capacidade responsiva do heterônimo frente à vida.
         Essa conjuntura polifônica em que um todo de vozes se mescla tanto no âmbito ideológico como formal – gerando essa confusão discursiva ininterrupta que é a prosa saramagueana – não surge sem razão na literatura das últimas décadas. No esteio do pensamento bakhtiniano a respeito da trajetória literária que culminou na composição do romance, arrisca-se a dizer que o novo romance histórico é a reverberação máxima desse gênero que, como nenhum outro, trouxe a outridade para o mais alto grau de discussão estética.
         Ainda em Problemas da Poética de Dostoiévski, Mikhail Bakhtin encontra na sátira menipeia o principal embrião do romance moderno. “Aqui se forma um novo enfoque da palavra como matéria literária, característico de toda a linha dialógica de evolução da prosa literária” (BAKHTIN, 2010, p. 135). Englobando “elementos da utopia social”, “contrastes agudos”, “declarações inoportunas” (IDEM, p. 134), a menipeia foi alicerce poderoso na representação, a um só tempo, do inferno e da vida comum. Nesse sentido, criou condições para que se instaurassem os “diálogos dos mortos” e a literatura das “últimas questões” convertidas em fatos corriqueiros. São justamente os dois fenômenos representativos que configuram o romance de Saramago.
Fazendo-se brevíssimo percurso pelos modos de narrar apresentados pela literatura, percebe-se, com Auerbach (1994), que desde as narrativas bíblicas existia a representação realista. Cunhando o termo realismo moderno, o crítico húngaro apresenta o modo de narrar que faz do presente, história, ou seja, que eleva as trivialidades da vida comum à condição de motes narrativos tão importantes quanto fatos históricos tidos como grandiosos. Essa inserção da banalidade no literário refletirá, um século mais tarde, em uma narrativa lusitana em que sequer a forma literária escapou à prosificação da vida comum.
Possivelmente, o grande salto da representação realista do romance de Saramago e de outros romances contemporâneos portugueses seja a consumação de um processo literário de mimetização que leva aos últimos limites a polifonia alcançada anteriormente por um Cervantes, Rabelais ou Dostoiévski. Com o escritor português, o discurso polifônico se transforma em problemática máxima do romance e a autoconsciência faz com que o dialogismo salte a cada linha.
Segundo Carlos Reis, há uma espécie de “rearticulação da narrativa e das suas categorias fundamentais (...) uma espécie de desagregação do romance” (2005, p. 246) que é exatamente o que se vê em uma obra fragmentária como essa. Contudo, embora as categorias fundamentais desse gênero, como o narrador, sejam absolutamente transformadas em uma “dispersão discursiva”, o romance, seja ele de que período for, não perde a “correspondência entre obra literária e realidade que ela imita” (WATT, 2010, p. 11). Sendo assim, em um contexto histórico em que urge a polifonia na vida, a literatura fatalmente precisava de uma forma que trouxesse essa polifonia para o discurso prosaico, para assim, poder estar em sintonia com a realidade e transcendê-la.
“Nós não somos nada, porventura nascerá para nós o dia em que todos seremos alguma coisa quem isto agora disse não se sabe, é um pressentimento” (SARAMAGO, 2010, pp. 384-385). A arte é o pressentimento de que, pelo menos no instante do enlevamento artístico, todos podem ser “alguma coisa”. Ser no sentido de existir plenamente a ponto de cingir o nada prosaico a que a vida humana está condicionada.
O personagem Ricardo Reis não desiste da inação e opta pela morte por não mais conseguir contemplar o espetáculo do mundo. As Lídias permanecem vivas compondo a literatura que é responsiva à inércia conformista da vida comum. De um romance que deixa ressoar vozes múltiplas que consumam o anseio polifônico, faça-se ecoar a fala de um narrador que conhece o poder de sua palavra: “e ainda há quem duvide de que a arte possa melhorar os homens” (IDEM, p. 95).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 1994
BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. Tradução de Paulo Bezerra. 5. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.
______. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução Yara Frateschi Vieira. 6. ed. Brasília/São Paulo: Universidade de Brasília; Hucitec, 2008.
______. Problemas da Poética de Dostoiévski. Tradução de Paulo Bezerra. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Fernando Pessoa: aquém do eu, além do outro. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
PESSOA, Fernando. Obra Poética. (Org. de Maria Aliete Galhoz). 9. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986.
REIS, Carlos. História crítica da literatura portuguesa. Do neo-realismo ao post-modernismo. Lisboa: Verbo, 2005. Vol. 9.
SARAMAGO, José. O ano da morte de Ricardo Reis. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
SILVA, Teresa Cristina Cerdeira da. José Saramago entre a história e a ficção: uma saga de portugueses. Lisboa: Dom Quixote, 1989.
WATT, Ian. A ascenção do romance. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.


*Aluna do Curso de Letras da Universidade de Brasília – UnB. Pesquisadora do Grupo: Literatura e Cultura – CAPES. Bolsista REUNI. Trabalho orientado pelo Prof. Dr. Augusto Rodrigues da Silva Junior (TEL/UnB). E-mail: a.claramagalhaes@gmail.com. Eixo temático: “O contemplador: vivências estéticas e responsibilidade”.
[1] O termo “Novo Romance Histórico”, segundo Antônio Esteves (2010), foi utilizado primeiramente por Ángel Rama, em 1981, tendo sido aperfeiçoado por outros críticos como Seymour Menton e Fernando Aínsa.

[2] Trecho do mais difundido poema de Reis e que, possivelmente, melhor sintetiza a sua poética, “Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio”.
[3] Tal livro teria por autor Herbert Quain, o que remete às Ficções, de Borges, que analisa, em “Exame da obra de Herbert Quain”, a produção do irreal autor Quain. Borges faz uma reduplicação ficcional que aponta para a confusão identitária que aparece no Ano da morte. Esse diálogo é decisivo para o romance, entretanto, aqui fica inexplorado em função do privilégio que se dá, neste artigo, ao diálogo com a poesia pessoana e com a cultura popular ecoada na voz de personagens como Lídia. 

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