segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Paôla Silva Gomes

Experiências de uma co-pesquisadora: uma reeducação do olhar
Paôla Silva Gomes[1]

Estudar Bakhtin é correr esse risco de perder-se para encontrar-se outro no fim do caminho, sem que a infinitude dos sentidos tenha sido visitada.
João Wanderley Geraldi    

               Provocada a expor minhas contrapalavras a partir da temática O Contemplador: vivências estéticas e responsividade, motivei-me a compartilhar as experiências vividas no Grupo de Pesquisa Linguagem, Interação e Conhecimento (LIC), no desenvolvimento da pesquisa “Computador-internet e cinema como instrumentos culturais de aprendizagem na formação de professores”[2] através do papel de co-pesquisadora.
Compreender o cinema na educação é uma tarefa inovadora. Criar nela, em específico na formação de professores, uma reeducação do olhar é uma tarefa desafiadora. Observar o cinema sob a lente de co-pesquisadora, emprestar meu excedente de visão ao pesquisador é uma tarefa intrigante. Olhar, analisar, me expressar e auxiliar na análise de uma pesquisa é me tornar pesquisadora também. Como bolsista de Iniciação Científica do CNPq, o Grupo de Pesquisa LIC, me proporcionou isso no período de outubro a dezembro de 2010 em que acompanhei o CINEDUCA, um Projeto de Extensão promovido pelo Grupo LIC juntamente com a coordenação de Articulação Acadêmica do Curso de Pedagogia da Universidade Federal de Juiz de Fora e que se constitui também como campo para nossa atual pesquisa. O projeto objetiva um espaço de fruição e de discussão das experiências com obras fílmicas, possibilitando o envolvimento com filmes fora do circuito comercial, com a finalidade de ampliar o repertório desse futuro professor, ainda em formação. Os filmes exibidos foram: Colcha de Retalhos, Cinema Paradiso, Verônica, Fale com Ela, A Língua das Mariposas e Bubble. O projeto contou  com a presença de alunos do curso de Pedagogia e Licenciaturas da UFJF.
Segundo Bergala (2008), o cinema tem a vocação de nos fazer trocar experiências, que antes dele não nos eram possibilitadas, dando acesso à alteridade. O sujeito se constrói na relação com o outro. Pensamento, consciência, visões de mundo, opiniões “se constituem e se elaboram a partir de relações dialógicas e valorativas com outros sujeitos, opiniões e dizeres” (Grupo de Estudos dos Gêneros do Discurso – GEGe, 2009, p. 13).
Bakhtin (2010) vê arte, vida e ciência como os três campos indissociáveis da cultura humana que formam o indivíduo. A arte deve transformar a minha vida, e a minha vida deve transformar a arte.
Conforme Freitas (1994), a arte, produto essencialmente social, se concentra na junção de três elementos: obra, criador, contemplador. “A obra só se torna arte no processo de interação entre criador e contemplador, constituindo-se no fator essencial dessa interação” (FREITAS, 1994, p. 143).
A arte é tudo aquilo que nos move e nos faz pensar, é atemporal. “É o que resiste, o que é imprevisível, o que desorienta num primeiro momento. A arte tem que permanecer, mesmo na pedagogia, um encontro que desestabiliza o conjunto de nossos hábitos culturais” (Bergala, 2008, p. 97). Ainda sob a visão de Bergala, a arte é acima de tudo um abalo pessoal, “o verdadeiro encontro com a arte é aquele que deixa marcas duradouras” (p.100).
Ainda que os efeitos não sejam imediatamente visíveis nem quantificáveis, ao longo do percurso do CinEduca percebemos o poder que os filmes exerceram sobre a vida desses futuros educadores. Perceptível pelos olhares, lágrimas, desespero, revolta, gestos, falas ou simplesmente silêncio total, captados por mim por trás da lente de uma filmadora sobre um tripé, por um olhar exotópico que captava cada detalhe do ocorrido com meu excedente de visão. Do meu lugar fora deles fui capaz de ver o que não podiam ver compreendendo aspectos que mostravam como eram afetados pelos filmes.
Interessante é que eu também como espectadora dos filmes fui também por eles afetada. O que mais me desestabilizou e me fez refletir foi “Verônica”, filme brasileiro dirigido por Maurício Farias, que retrata o drama de uma professora da rede municipal do Rio de Janeiro, que precisa enfrentar em seu trabalho assaltos, tráfico de drogas, roubo de equipamento escolar e homicídios. Trabalhando na função há 20 anos, ela está esgotada e sem paciência. Um dia, ao sair do colégio em que trabalha, nota que ninguém veio buscar Leandro, um aluno de 8 anos. Verônica decide levá-lo até sua casa, na favela, mas ao chegar descobre que traficantes mataram os pais de Leandro e agora estão atrás dele. Ela decide levá-lo consigo, buscando ajuda para escondê-lo. A trama mostra a realidade de nosso país, das professoras, de todo ser humano que vive uma rotina todos os dias e de repente se depara com uma novidade: um menino que não tem para onde ir porque seus pais foram assassinados e ele está muito perto de ser a próxima vitima. O filme me envolveu do início ao fim. Fiquei o tempo todo esperando qual seria a próxima atitude da professora e o que fariam com o menino. Intrigou-me refletir a partir do filme, os problemas da vida. Quantos problemas nós temos? Quando fugimos deles só estamos deixando de encará-los, mas eles continuam existindo, continuarão lá até que sejam resolvidos, nós é que estamos tentando escapar todos os dias. Após o filme fiquei pensando: o que fazer no lugar de Verônica? Fugir com o menino mesmo correndo de risco de perder a própria vida e a dele, ou entregá-lo à polícia que também o queria porque ele tinha provas contra ela? Difícil decisão.
Percebo que, através do CinEduca, meu olhar está em processo de reeducação e hoje, vejo o cinema muito além do olhar de uma simples espectadora. Hoje meu olhar é crítico, procuro ver através da película, me deixo seduzir pela grandiosidade que há por trás da obra. Minha visão foi ampliada. Passei a gostar de um cinema além dos filmes comerciais, um cinema que faz pensar, um cinema de Abbas Kiarostami, Giuseppe Tornatore, Pedro Almodóvar, José Luis Cuerda, e dentre tantos outros nomes que aprendi a conviver e a admirar.
Almejo que os futuros educadores que participaram ou ainda participarão de experiências como o CinEduca possam compreender que, o filme é uma arte que pode e deve estar cada vez mais presente no cotidiano escolar. Não somente como uma atividade recreativa, mas também como um momento de reflexão e discussão do que há alem do que se vê, do que há “por trás das câmeras”. “Não é a arte que deve ser exposta sem riscos aos jovens espectadores, eles é que devem ser expostos à arte e podem ser abalados por ela” (Bergala, 2008, p.98).
Por fim, será que podemos definir qual a função do cinema em nossas vidas? Desestabilizar? Fazer pensar? Criar reflexões? Imaginar papéis? Resolver conflitos? Alegrar? Emocionar? Cruzar linguagens? Formar sujeitos? Dialogar com a realidade? Será que é tudo isso junto? Assim como a vida, a arte está em constante devir. Como um processo em movimento, o diálogo dialógico com o cinema vem me formando desde então, com novos olhares passei a dar respostas aos filmes. Respostas estas que antes não existiam, e hoje são partes formadoras do meu eu. A partir do CinEduca, com o início de uma reeducação do olhar, minhas vivências estéticas, assim como trouxe Geraldi na epígrafe, estão se perdendo para se encontrar no fim caminho, mas temos um fim?

Referências:
BAKHTIN, Mikhail. A arte e a responsabilidade. In.: ______. Estética da criação verbal. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010. 5ª ed. p.33-34.
BERGALA, Alain. A hipótese-cinema: pequeno tratado de transmissão do cinema dentro e fora da escola. Rio de Janeiro: Booklink, 2008, 210p.
FREITAS, M.T.A. Bakhtin. In: ______. Vygotsky e Bakhtin – Psicologia e educação: um intertexto. São Paulo: Ática, 1994, p. 117-153.
Grupo de Estudos dos Gêneros do Discurso – GEGe. Palavras e contrapalavras: Glossariando conceitos, categorias e noções de Bakhtin. São Carlos: Pedro & João editores, 2009. 111p.
Grupo de Estudos dos Gêneros do Discurso – GEGe/UFSCar. Pensares Bakhtinianos: escritos impertinentes. São Carlos: Pedro & João editores, 2010, 300p.


[1] Graduanda do curso de Pedagogia pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Bolsista de IC-PIBIC/CNPq Ações Afirmativas do Grupo de Pesquisa Linguagem, Interação e Conhecimento (LIC). Orientadora: Maria Teresa de Assunção Freitas.
[2] Pesquisa financiada pelo CNPq e FAPEMIG

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