segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Sérgio A. Leal de Medeiros

Esquinas, temporalidades e surpresas na “meia-noite” de Woody Allen
Sérgio A. Leal de Medeiros[1]
                       
Os dispositivos audiovisuais, com sua acelerada e inexorável profusão e renovação tecnológica, desde o rádio, cinematógrafo, TV, vídeotape até aos tempos atuais das mídias digitais e da internet, vêm criando um ambiente tão inusitado na cultura humana que muitos pensadores e intelectuais, tomados por uma visão apocalíptica sobre o cinema chegam até mesmo a prenunciar o “fim do cinema”.
Em que pese a influencia do desenvolvimento das tecnologias sobre a expectatorialidade, as inferências cinematográficas estão presentes, embora de modo diferente, diante do efetivo impacto que as mídias digitais provocam com sua potencialidade técnica para dar forma a idéias abstratas e sonhos implausíveis. Uma das características intrínsecas dos dispositivos digitais é a incorporação, em sua linguagem e narrativa, dos elementos singulares de todas as mídias anteriores.
A imagem digital, diferente do dispositivo cinematográfico, não é uma cópia e não necessita de um modelo, de uma paisagem, de um objeto pro-filmico no mundo. A imagem adquire vida própria em um circuito virtual, heteroglóssico, interativo e livre das condições de tempo cuja modelação em ambiente virtual - tanto da temporalidade como das próprias emoções - se dá de forma pessoal, interativa, co-autoral. Nos jogos eletrônicos ou nos filmes baixados da internet o espectador define a duração, seqüência e trajetória. Alem disso as mídias digitais atuam sobre a expectatorialidade com sua infinita possibilidade de réplica que promove a circulação de videofilmes de forma multicentrada e a produção e conservação das imagens na forma de pixels e não mais relacionadas a nenhum “original”, a nenhuma materialidade deteriorável.
Com todo o impacto que estas tecnologias audiovisuais vêm provocando sobre as formas de fruição, apropriação e produção das imagens, o cinema na contemporaneidade se reinventa a cada avanço tecnológico e reafirma seu papel de campo enunciativo da cultura, pois não apenas agenda e propõe debates, mas, igualmente, intervém no desejo, na memória e na fantasia das pessoas. No âmbito da cultura contemporânea, os instrumentos midiáticos e a linguagem imagética participam não só na produção e circulação de informações diversas como também operam um dispositivo de produção simbólica que tende a se impor ao imaginário coletivo pela conjugação ordenada de diversos signos. Todo filme, qualquer filme, também é um produto industrial e é, como uma mercadoria, que circula pelas telas, locadoras e sites de todo o mundo. Os melhores filmes não fogem à esta condição econômica-industrial-financeira, para sua produção, distribuição e circulação, mesmo quando se trata de filme-arte, como no caso dos filmes de alguns diretores, dentre eles o diretor norte americano Woody Allen. O último de seus filmes, “Midnight in Paris” (Título original e no Brasil traduzido por “Meia Noite em Paris”), lançado recentemente, é um filme provocativo que movimentou a reflexão, mexeu com o espectador e provocou a crítica especializada. Diante do filme de Woody Allen o espectador não fica incólume. Alguns, publicamente, celebram o filme considerando-o um grande encontro para qualquer espectador, outros, menos eufóricos, são reticentes quanto ao filme se considerado no contexto da obra fílmica do diretor americano. E ainda, há aqueles que não gostaram do filme.
De todo jeito, de alguma maneira somos tocados pelo filme em tela. Umas das razões das potências deste filme - alem é claro de toda a genialidade de direção, fotografia, iluminação, cenografia, refinada trilha sonora e notável atuação do elenco – alem de tudo isto, está a genialidade do diretor em criar movimentos narrativos inusitados e desconfortantes provocando, com as imagens, com os diálogos, e com os personagens, inevitáveis e incontroláveis deslocamentos deflagrados no e pelo espectador. O que mobiliza o expectador não é tanto a identificação com a “moral” do filme que mostra o quanto as pessoas são nostálgicas e saudosistas a ponto de vangloriar épocas passadas; nem  a implícita ou explicita, mas presente, referencia política à paranóica e antipatizada direita republicana, arrivista e reacionária, bem representada pelo “Tea Party” norte-americano e pelos tipos da personagem Inez (Rachel MacAdams) e, principalmente, por seu pai John (Kurt Fuller) e Helen (Mimi Kennedy) sua mãe. A maestria do diretor americano transborda na personagem de Gil (Owen Wilson). A genialidade do artista, e o que faz sua obra ser uma obra de arte, é o fato de conseguir realizar a diferença entre a possibilidade e a realização, entre o potencial e o real, entre o virtual e o atual. Gil é personagem condutor da trama do filme e apresenta ao espectador  outras camadas de tempo e espaços deixando transbordar a surpreendente  genialidade estética do autor- criador.
Inez e Gil, na trama do filme, formam um jovem casal. Gil é um escritor de roteiros de “filmes pipoca” encomendados pelos estúdios hollywoodianos. Embora bem pago devido ao sucesso comercial deste tipo de filme, o que almeja é ingressar no mundo literário e acadêmico na condição de escritor de romance. Gil tem uma ambição intelectual e para realizá-la talvez tenha que renunciar à vida modelar e previsível do american way of life: casamento, estabilidade financeira, filhos... O jovem casal visita Paris na companhia dos pais de Inez, que estão na cidade francesa para fechar um grande negócio
 Apesar dos compromissos de negócios, Paris se oferece ao olhar turístico dos americanos, clicados pelas câmeras fotográficas que enquadram os monumentos da memória da humanidade como cenários imóveis e apenas expostos à contemplação e aos flashs frenéticos dos olhos digitais. Mas a Paris do americano Woody Allen reserva surpresas e se revela do interior de suas memórias, das  entranhas do passado de épocas que não se sucedem mas se entrelaçam numa grande temporalidade onde passado/presente/futuro estão implicados um no outro, responsivamente de modo que um responde pelo outro. A cidade-luz reinventa-se, vivifica e realiza sua memória da Idade de Ouro, quando Gil, à meia-noite, na esquina entre a década de 20 do século XX e o século XXI, nos conduz para outro filme por meio do nonsense criativo do diretor de cinema.
O espectador é provocado por esta intensidade de flutuação do tempo. Já nos acostumamos e até naturalizamos a relação com o tempo representado no filme e que, no momento da fruição, nos leva a outro tempo, diferente do nosso e de nossa vida. Enquanto vemos um filme, penetramos na sua trama e o nosso tempo, o tempo que é vivido por nós naquele momento é o tempo da trama do filme. Esta é uma das faces da  sedutora magia do cinema. Mas o filme “Meia Noite em Paris” coloca o espectador em outra situação, inusitada, tira-o da zona de conforto que o olhar protocolar e domesticado pela saturação o costuma situar. Naquela esquina nostálgica e enigmática, à meia noite, Gil espera um táxi que não o leva ao século passado, mas já é o próprio passado à procura tanto de Gil como do espectador.
 Situados na condição de espectadores, em alguns momentos do filme, somos levados pelas mãos do diretor e das personagens pelos mais atraentes e ensolarados e conhecidos pontos turísticos da capital francesa. Mas Gil é tocado por outras intensidades, outras forças que estão inscritas em outras paisagens que não se revelam à luz do dia, mas nos recônditos das noites, nas esquinas sombrias, no vaudeville, na calçada das ruas estreitas e ladeadas de cafés esfumaçados exalando o cheiro da ebúrnea que boêmios e intelectuais promoviam para esquentar as noites frias e os debates literários. Penetramos no devaneio de Gil e, de dentro do filme o personagem nos conduz a outro tempo e a criação de outros personagens. Com Gil nos encontramos com Ernest Hemingway, Scott Fitzgerald, Pablo Picasso, Gertrud Stein, Cole Porter, Henri Matisse, Buñel e Salvador Dali. Personagens anacrônicos e criações alucinatórias de um outro personagem, no caso Gil, e que penetraram no espaço do filme, se tornando presença e nos envolvendo com seu cronotopo alucinantemente reais para nossa percepção.
Sentado na poltrona, o espectador dilui-se numa dimensão de tempo incontrolável e não fragmentado ou compartimentado em passado, presente, futuro. Não é uma imagem, ou uma história com suas personagens que se passa em Paris e que é contada por imagens organizadas e projetadas na tela. Mas uma imagem de outra cidade, com personagens de outro tempo ao qual acessamos pelas imagens alucinatórias de um personagem. De quem é a alucinação? Nossa? Ou de Gil? Ou de Woody Allen? Talvez de todos nós. Ou talvez os personagens habitem espaços e tempos em nós. Ou, ao contrário, esse auditório presumido de espectadores, para o qual o diretor endereça sua obra, participa da construção dos personagens trazendo para eles os índices sociais, as tensões e as contradições da cultura e na construção de suas paisagens em nossa fruição-autoral de uma obra fílmica.
A vida das imagens fílmicas acontece no momento da expectação, entre sujeitos, entre consciências que comparecem nas imagens e dialogam com o autor que se faz falante, com a criação de seus signos e, ao mesmo tempo, se faz mudo nos fios de significações e de sentidos que e expectação reorienta com seu olhar, com sua criação e imaginação. Da poltrona, diante do filme, o sujeito é desalojado da condição de sujeito racional, uno e consciente, se deslocando para o interior da eventicidade, entrelaçando passado-presente e futuro no movimento de devir, de outrar-se.
“Se o ser fosse algo determinado, acabado e petrificado com relação ao seu conteúdo, ele destruiria a multidão dos mundos pessoais unicamente válidos, mas é justamente esse Ser que produz pela primeira vez o evento unitário” (Bakhtin, 2003, p.63).

Gil é personagem construída pelo autor-diretor do filme que, com base nas relações temporais e espaciais entre ele (Gil) e os outros personagens, situados em outro tempo/espaço, estabelece, em relação a eles, um “excedente de visão” em função da distância que permite a Gil criar outros personagens, dando-lhes acabamento ainda que momentâneo. Gil, e os personagens criados a partir de sua própria condição de personagem, por seu lado, têm acabamento que é dado pelo autor, pois:
 “(...) a consciência do autor é a consciência da consciência, isto é, a consciência que abrange e conclui esta consciência da personagem com elementos transgredientes a ela mesma e que, sendo imanentes, a tornariam falsa. O autor não só enxerga e conhece tudo o que cada personagem em particular e todas as personagens juntas enxergam e conhecem, como enxerga e conhece mais que elas, e ademais enxerga e conhece algo que por principio é inacessível a elas, e nesse excedente de visão e conhecimento do autor, sempre determinado e estável em relação a cada personagem, é que se encontram todos os elementos do acabamento do todo, quer das personagens, quer do acontecimento conjunto de suas vidas, isto é, do todo da obra” (Bakhtin, 2003, p.11).

            Para os estudiosos da obra fílmica de Woody Allen, Gil é personagem construído como um alterego do diretor. Gil dobra as esquinas do tempo para cruzar as ruelas da alteridade nas sombrias e cinematográficas noites da Belle Époque parisiense A personagem se movimenta continuamente entre o eu e o outro, entre a América e a Europa, entre tempos e personagens, entre sonhos e fantasias e, nesse movimento vai ganhando completude. É um personagem que está sempre se fazendo, está sempre inconcluso e nunca é igual a si mesmo não encontrando jamais uma integralidade confortante. No filme é o personagem que convoca o expectador ao desconforto, à diferença, ao filme...

Referencias:
BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. Martins Fontes, São Paulo, 2003
____________Para Uma Filosofia do Ato Responsável. Pedro&João, São Carlos, 2010
WOODY Allen. Meia-Noite em Paris. EUA/Espanha, 2011


[1] Orientando da Profª Drª Maria Teresa Freitas no programa de Doutorado da Faculdade de Educação da UFJF.

Nenhum comentário:

Postar um comentário